Em Pessoa Revisitado, um livro “triunfal”, que Eduardo Lourenço teria escrito em três semanas, para se libertar de Pessoa, o autor de O Lugar do Anjo — Ensaios Pessoanos, que nunca terminou de se libertar de Pessoa, propõe um cenário hipotético que me parece fulcral para o surpreender. Diz: “Suponhamos um leitor que certo dia cai sobre estas linhas:
‘Não meu, não meu é quanto escrevo.
A quem o devo?
De quem sou o arauto nado?
Por que, enganado,
Julguei ser meu o que era meu?
Que outro mo deu?’
Ou sobre estas:
‘Súbita mão de algum fantasma oculto
Entre as dobras da noite e do meu sono
Sacode-me e eu acordo, e no abandono
Da noite não enxergo gesto ou vulto.
Mas um terror antigo, que insepulto
Trago no coração, como de um trono
Desce e se afirma meu senhor e dono
Sem ordem, sem meneio e sem insulto.
E eu sinto a minha vida de repente
Presa por uma corda de Inconsciente
A qualquer mão nocturna que me guia.
Sinto que sou ninguém salvo uma sombra
De um vulto que não vejo e que me assombra,
E em nada existo como a treva fria'”.
O leitor que caiu sobre estes versos um dia, foi, a meu ver, Lourenço, que incapaz, como explica, de os ler apenas como mais uma informação suplementar, entre tantas que enchem a diário os informativos, ficou entenebrecido, “destilando um pavor feliz na falsa infinitude da sua consciência sonâmbula”. Pessoa marcou umas semanas triunfais de Lourenço, por volta de 1967, e os seus poemas serviram o crítico para defender um entendimento da poesia que não tem perdido actualidade e ainda menos hoje em que ainda é preciso combater, como disse Pessoa na sua nota biográfica de 1935, “a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania”.
Qual é esse entendimento? Lourenço, leitor de Pessoa, afirma que a poesia só existe quando um poema abre em nós “avenidas para nenhum jardim, inundando de luz nenhum espaço que possa ser nomeado mas de tal modo que claramente percebemos que devimos outro, quer dizer, o mesmo, mas como iluminado por dentro e sem fim. É a ‘joy for ever’ de Keats, a existência do poema em nós e nós nele”. Pessoa deveio outro depois de Caeiro (daí que o tenha considerado o seu Mestre), Lourenço deveio outro depois de ler Pessoa (daí que tome a sério a sua natureza genial) e eu devim outro depois de ler Caeiro, Pessoa e Lourenço. O que me surpreende, em retrospectiva, é que Lourenço, por um lado reconhece que deve “uma mais alta existência, ou existência outra”, a Pessoa, e por outro, renega a supremacia do crítico que se situa num ponto em que domina a obra em apreço.
Lourenço não quer ser lido como autoridade na matéria, não quer uma ensaística isenta de paixão, mas não de pendor pedagógico, e defende que, no caso da poesia — e da poesia pessoana — há razões para um “salutar reflexo de humildade” que “a nossa mais modesta razão de críticos desconhece”. Daí uma frase famosa: “Não temos nem queremos outro guia que o próprio Pessoa”. Daí uma certa embirração com um crítico que declarou ser o mais lúcido comentador de Pessoa. Daí esta conclusão: “Mas sempre Pessoa e o que se costuma considerar como as suas ‘antinomias’ ou ‘contradições’ ou paradoxos, ou mesmo aberrações, nos pareceram mais luminosos que as considerações em torno deles”.
Pensar o lugar de Lourenço, o sentido do verbo exacto do crítico (“nada há de real na vida que o não seja pelo simples facto que foi bem escrito”) no âmbito dos estudos pessoanos, passa por considerar a singularidade de Lourenço, que, depois de ler a monstruosa Pessoana toda, essa hidra bibliográfica de inúmeras cabeças, precisou de escrever umas “Considerações pouco ou nada intempestivas”, de fôlego nietzscheano (talvez como eu precisei de escrever um texto intitulado “Pessoa existe?”…), para encontrar palavras com as quais alargar a fortuna crítica de Pessoa e contribuir para uma “crítica-outra“, que soubesse honrar a “literatura-outra” pessoana.
Cito o ensaio que abre Fernando, Rei da Nossa Baviera: “Esta perspectiva desloca e organiza — ou tenta organizar— as outras perspectivas em nome de um ‘partis-pris’ de adesão à ‘demarché’ do próprio Poeta, o qual, segundo ela, precisa menos de ser esclarecido por uma luz crítica heterogénea à fonte da sua inspiração do que esposar, aderir de imediato à intrínseca luminosidade da poesia-conhecimento que Pessoa nos revela”. Esta perspectiva é também uma visão, um entendimento, para voltar a um termo ao qual já fiz referência: “É a visão de uma Linguagem que não consegue falar o Ser e de um Ser que não pode ser plasmado na Linguagem”; é a proposta de uma crítica “que se assume e se pensa, por mimetismo, metacrítica, jogo de espelhos (…) jogo no limite do silêncio”. Quem quer discutir se a crítica de Lourenço é demasiado clara ou, porventura, algo hermética, por causa da sua linguagem, devia regressar aos textos em que Lourenço entra nessa discussão, com a poesia de Pessoa em mente, para concluir: “De uma maneira geral, toda a poesia é a mais alta ‘claridade’ de uma época e no seu espelho é o resto que é obscuro”.
Aliás, Pessoa tem um texto fundamental para pensar a antinomia claridade / obscuridade. Diz em “‘A Literatura da Decadencia’ — Notas ao livro de M[ax] N[ordau]”: “É caso de distinguir, como apontasse e fizesse Edgar Poe, a expressão da obscuridade da obscuridade de expressão. O obscuro em si lucidamente expresso permanece o obscuro em si; o obscuro não claro, mas claramente obscuro. A arte que dá ao obscuro uma expressão lúcida não o torna claro — porque o que é obscuro de essência só por erro de interpretação podia deixar de o ser — mas torná-lhe clara a obscuridade. Assim Antero de Quental dá, nos seus sonetos, a mais consumada expressão poética aos assuntos mais abstractos e obscuros. Torná-lhes luminosa a obscuridade; vemos mais lucidamente do que nunca quanto essa obscuridade é obscuridade, quanto essa obscuridade é obscura. O mais alto poeta na mais alta expressão que dê ao mistério do universo, não no-lo torna claro; o que nos torna claro — na proporção em que a sua arte é sublime — é o quanto esse mistério é mistério. Exigir mais do poeta, e não saber o que ao poeta se deve exigir”. Estas palavras tanto podem invocar-se para pensar em Pessoa, que tornou mais claras tantas obscuridades, como em Lourenço, que, sem ser obscuro na expressão, soube lucidamente expressar as suas ideias e criar uma crítica que nunca minimizou o mistério da poesia.
“Como um mineiro da pura Noite”, disse Lourenço, Pessoa extraiu “os poemas, as frases, com que fabricou aquelas constelações que continuam a desfraldar por ele o esplendor nenhum da vida”. Há certo mimetismo, de facto, Lourenço utiliza palavras que evocam versos do autor da “Ode Marítima” (cf. “Desfraldando ao conjunto fictício dos céus estrelados / O esplendor do sentido nenhum da vida…”) e recorre a contínuas negações. Mas aquilo que me parece mais notável é o facto de o ensaísta querer preservar o mistério do mistério. “Pleonástica evocação” termina assim: “Isso o devemos todos a Pessoa: deixá-lo ao seu enigma para resistir à tentação de imaginar que decifrámos o nosso”.
A melhor crítica não é aquela que pretende, para citar um título de João Gaspar Simões, chegar a O mistério da poesia através da “interpretação da génese poética”, leitura psicologista preocupada pelo que o autor terá sentido (daí a resposta de Pessoa: “Sentir? Sinta quem lê!”); também não é uma crítica de exigências ideológicas, que entende a literatura como um reflexo do real, da identidade ou da existência, conceitos que o próprio Pessoa questionou; mas uma crítica informada e modesta como a de Lourenço, que sem querer ser um mandarim (desses referidos no “Ultimatum” de Álvaro de Campos), e sem nunca esquecer a “joy for ever” de Keats, e ainda, “compreendendo a essencial inexplicabilidade da alma humana” (Pessoa dixit), cerca de “uma leve aura poética de desentendimento” as tentativas todas de análise da obra pessoana.
Quanto celebro que Lourenço não tenha tentado análises encaminhadas a provar as supostas automitificações, os alegados absurdos da criação poética, e que não tenha considerado relevante que o nihilismo grandioso de Pessoa respondesse “diante do tribunal da Sinceridade, da Ordem Moral, da Ordem Ideológica”. Antes da silly season actual, em que obrigamos às obras e às produções a responder diante de tais tribunais, Lourenço afirmava que aquilo que a poesia é, anulava tais instâncias, tornava-as inadequadas. “Devemos resistir”, disse, “à tentação de nos desembaraçar da singularidade do mundo de Pessoa oferecendo-lhe como espelho a luz trivial e cega de uma visão de boa companhia, onde justamente não há lugar nem para a sua compreensão nem para a compreensão de coisa alguma”.
Quando fui convidado para escrever um texto sobre a importância de Eduardo Lourenço para os estudos pessoanos, soube logo que voltaria a abrir alguns dos meus livros e a procurar o antigo leitor desses volumes. Um dos exercícios que a contingência sanitária multiplicou foi aquele de voltar a abrir livros lidos (em Medellín os alfarrabistas insistem muito neste ponto: nós não temos, dizem, livros velhos nem usados; temos livros “lidos”). Reler Lourenço permitiu-me verificar a sua actualidade, quer para ler Pessoa, quer para ler outros poetas (como Camões e Antero, que fazem parte de Poesia e Metafísica). Precisamente neste último livro, que é de 1983, encontramos um artigo, de 1960, que foi proibido pela censura. Nele Lourenço elogia com veemência Um Fernando Pessoa (1959), de Agostinho da Silva: “A nenhum leitor escapará este acordo íntimo entre a intuição metafórica iluminante e a sua perfeita tradução estilística (…) não conhecemos outras páginas mais dignas de emparelhar com o verbo genial do qual pretendem servir de paráfrase superior (…) O máximo elogio que se lhe pode fazer será o de imaginar que Fernando Pessoa, ele mesmo e o seu cortejo de fantasmas imortais, o teriam amado”.
Para Lourenço, apenas Agostinho teria dado um equivalente, no seu livro, “dessa formação espiritual prodigiosa que leva o nome de Fernando Pessoa”. Lourenço, na esteira de Agostinho, também o fez, e parece-me que em Agostinho encontrou uma confirmação do tipo de crítica que mais lhe interessava. Sem dúvida, Pessoa teria ficado secretamente comovido pelo ensaísta de São Pedro de Rio Seco. Na crítica pessoana, Lourenço ocupa o lugar do Anjo.