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O aspeto geral do que resta da RARET, maior complexo de retransmissão europeu da Radio Free Europe, que tinha o objetivo passar propaganda anti-comunista para o bloco de leste durante a Guerra Fria
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O aspeto geral do que resta da RARET, maior complexo de retransmissão europeu da Radio Free Europe, que tinha o objetivo passar propaganda anti-comunista para o bloco de leste durante a Guerra Fria

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

O aspeto geral do que resta da RARET, maior complexo de retransmissão europeu da Radio Free Europe, que tinha o objetivo passar propaganda anti-comunista para o bloco de leste durante a Guerra Fria

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"O mau foi a Guerra Fria ter acabado". A história, as ruínas e os sobreviventes de uma Glória transformada em série portuguesa da Netflix

Foi criado em 1951, desenvolveu a região ribatejana e fechou ao fim de 45 anos. Esta é uma visita guiada à história e ao que resta do posto de retransmissão pró-EUA que agora é uma série.

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“Aqui pusemos relva verdadeira, foi plantada. Já desapareceu”. Pedro Lopes, autor da primeira série portuguesa na Netflix, “Glória”, lembra-se perfeitamente de como estavam as casas do bairro habitacional da Rádio RETransmissão (RARET) até há bem pouco tempo. Por dentro e por fora. Agora, a vegetação está alta, chega à anca, a estrada está repleta de gravilha e uns quantos buracos, o sol destapa o abandono. Ao pisar-se a terra, ouve-se o som de outra vida. Afinal, entre setembro de 2020 e janeiro de 2021, o guionista esteve neste espaço, onde foram rodadas parte das cerca de 600 cenas que tiveram como cenário a Herdade da Nossa Senhora da Glória, propriedade ribatejana onde foi instalado o posto de retransmissão pró-EUA, a 4 de julho de 1951. Foi possível reconstruí-las. E foi possível visitá-las. Não é todos os dias que acontece.

Ao entrar numa das habitações, dá-se conta que a casa escolhida foi a usada em “Glória” por João Vidal, filho da elite lisboeta ligada ao Estado Novo tornado espião português do KGB, interpretado por Miguel Nunes, que tem a missão de desmontar uma das antenas do maior complexo de retransmissão europeu da Radio Free Europe (RFE), que tinha o objetivo de passar propaganda anti-comunista para o bloco de leste durante a Guerra Fria.

[o trailer da série “Glória”, com estreia marcada para 5 de novembro:]

Tem também outra missão: não ser apanhado, jogar com a empatia de quem vai encontrando, dominar os conflitos internos de quem percebe lentamente que está do lado errado da história. Ainda assim, toda a ação, que se torna maior do que a personagem, desde estar naquela casa sozinho com o mundo a explodir ou cenas físicas [treinadas com David Chan] com os inimigos, nunca assustou Miguel Nunes. “O projeto foi-me dizendo tanto que me fui abstraindo do que estava à volta daquela grande produção. O João quer perceber como participar na sociedade, foi isso que o fez aliar-se ao KGB para, no fundo, derrubar o regime salazarista”, revela ao Observador em Lisboa.

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De volta à RARET. Na casa usada como décor principal para João Vidal viver, percebe-se que pouco se quis derrubar. Nota-se o toque milimétrico da direção de arte. Ainda dá para visualizar quando o espião toma o seu último copo de whisky, fuma o cigarro ou engole mais um comprimido. Alguém esteve aqui e reformulou o espaço. A seguir, foi embora. O papel de parede foi colocado de propósito, mas o tempo não dá tréguas: está a descolar-se. Há ainda folhas no chão com o aviso de “décor: não mexer”, feito pela equipa de produção. Os vidros das janelas, que João Vidal tantas vezes abre para fumar um cigarro e exercitar a tensão da missão que tem pela frente, são de acrílico. A câmara assim não apanha o reflexo. Estamos dentro do seu refúgio, filmado por Tiago Guedes, que outrora pertenceu a um operador, um guarda fios ou serralheiro. Mas e as escadas, que parecem ter levado uma demão recente? “Não mexemos”, diz ao Observador.

Este foi um sonho americano, financiado pela CIA na sombra, com o aval do governo norte-americano, para “os chibos” (glorianos) que viram cair nas suas mãos uma oportunidade para ter "educação, condições de vida e de trabalho dignas, tempo de lazer". Em troca, tinham de trabalhar, levantar poucas ondas e ajudar a fazer cair o Muro de Berlim.

À saída, um baloiço castanho chama a atenção. Está sem assento. Houve, a certa altura, um destes para cada uma das dezasseis moradias dali, cada uma com determinada tipologia. Houve ainda um alojamento para solteiros, o BOQ (“Bachelor Officer Quarters”), corte de ténis e piscina, estes mais à frente, que também eram usados pelas crianças que estudaram na escola da RARET, ou que nasceram na maternidade criada ali. No primeiro episódio de “Glória”, é no BOQ que alguns funcionários se juntam para uma cerveja pós-laboral. Se após a saída da equipa da série portuguesa ficou o papel de parede, garrafas e caricas nem vê-las. Mas isso fica na ficção onde todas as personagens foram criadas, palavra de Pedro Lopes. Esta zona é só uma das peças do puzzle geográfico montado por aqui. A visita guiada à RARET  tem de continuar. Há 196 hectares de história real para ver.

RARET: uma pequena cidade americana no meio da Glória rural

Se agora toda aquela herdade abandonada serve para treinos do grupo de intervenção da GNR, antes, além de toda a operação de radiodifusão controlada pelos norte-americanos, era uma autêntica comunidade em construção. Este foi um sonho americano, financiado pela CIA na sombra, com o aval do governo norte-americano, para “os chibos” (glorianos) que viram cair nas suas mãos uma oportunidade para ter “educação, condições de vida e de trabalho dignas, tempo de lazer”. Em troca, tinham de trabalhar, levantar poucas ondas e ajudar a fazer cair o Muro de Berlim. Já as ondas hertzianas, transmitidas por antenas que chegavam aos 190 metros de altura, eram o ponto mais alto do terreno. A potência era tal que quem se encostasse com uma bicicleta, podia ouvir o que transmitiam. Metal com metal, resultava. Umas vezes apanhava-se uma missa, um relato de futebol, publicidade à Coca-Cola, à Sopa Campbell ou a livros proibidos. Com sorte, ficava-se a conhecer o Sgt. Peper’s Lonely Hearts Club Band, álbum dos Beatles.

Se fora da RARET nem saneamento básico ou eletricidade existia à época, dentro era até possível ver televisão. Havia quase tudo: um restaurante, um bar, uma maternidade, court de ténis. Dentro do edifício maior, onde estavam os grandes emissores, escritórios, rodeados por cabos e cabos e a sala blindada de controlo (“a gaiola”), era onde a ação acontecia. Hoje não resta nada. Cá fora, do lado direito, está o que sobra de um posto da GNR. Situava-se dentro da Herdade, mas não na Glória. Um sinal da importância deste espaço. Restam papéis. Muitos. Uns parecem ser boletins clínicos da Caixa de Previdência e Abono de família do distrito de Santarém. Outros são recortes do Diário da República. Quem chegou lá primeiro encontrou fotografias de antigos funcionários entre o entulho. Logo à entrada dá-se de caras com uma cela. “Parece um western, não é?”, questiona Pedro Lopes. É, sem dúvida. Na série, João Vidal, mesmo como engenheiro fundamental, só pôde entrar no complexo depois de se ser revistado por um agente da autoridade. Desta vez, não há revista. Não há ninguém para a fazer.

O que em tempos foi uma comunidade construída de raiz é hoje uma herdade abandonada utilizada para treinos do grupo de intervenção da GNR

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

O estado avançado de degradação impediu que “Glória” fosse filmada na principal infraestrutura. O maior orçamento português para uma série de ficção não permitiu. Ficaram as paredes, lixo e pouco mais. Quem não esteja atento ao chão, acaba com o pé preso ou cortado pelos estilhaços. O objetivo dentro deste edifício é simples de explicar mas era complexo de concretizar: retransmitir a propaganda anti-comunista que chegava da Maxuqueira (centro recetor), que tinha sido enviada pela sede da RFE em Munique, de onde tinha chegado o conteúdo norte-americano. Pelo meio, havia outra peça na engrenagem: a sede da RARET em Lisboa, situada no edifício da Auto-Monumental no Areeiro, que mais tarde serviu para gravar transmissões in loco.

Ao mesmo tempo, tentava-se impedir que os soviéticos interferissem com a operação. Como símbolo máximo desta “cruzada pela liberdade”, está um obelisco à entrada do edifício principal da herdade. Figuravam lá duas dedicatórias alusivas à aliança entre os dois países: uma dos EUA, outra portuguesa, assinada por Salazar. Essa foi apagada. O único “ato subversivo” dentro do complexo durante a revolução de 25 de Abril. “Grande número de países europeus, ameaçados na sua vida e liberdade, contam desde agora com o auxílio dos Estados Unidos e uns com o auxílio dos outros para a defesa do seu património de divulgação. Pareceu difícil em tais circunstâncias estarmos ausentes”, lia-se. Sim, escrito pelo antigo ditador português.

Em miúdo, Pedro Lopes ouvia falar da RARET na sua casa de família em Salvaterra de Magos, vindo de uma família com um passado ligado à rádio. O avô trabalhou na Emissora Nacional e chegou a estar no complexo algumas vezes mas nunca como funcionário. O argumentista pouco mais adianta sobre o avô. Terá sido ele o espião português que a série retrata? Esticado. Garante que também contactou de perto com o engenheiro António Manuel Bivar, um dos responsáveis pelos estudos técnicos que dariam vida a este centro de retransmissão em Portugal assim que os EUA tiveram luz verde do governo de António Oliveira Salazar para avançar. Assim que, depois de todas as condições técnicas e políticas estarem asseguradas, se determinou a Glória era o melhor local, tal como se lê no documento da visita de inspeção conduzida por técnicos da firma norte-americana Westinghouse a que o Observador teve acesso. A administração tinha 60% de portugueses, o resto eram norte-americanos. A primeira concessão só duraria dez anos inicialmente. Mas a Guerra Fria exigiu mais.

"Víamos que se ia degradando, já não eram precisos funcionários novos. Deixou de dar capital à região. Dizemos entre os camaradas que os funcionários eram tão bons que acabámos com o serviço num instante."
Carlos Cardoso, ex-operador da RARET

Toda as negociações foram feitas longe do olhar do público. A imprensa só entraria nas instalações décadas depois, já a ditadura tinha caído. Mas as memórias ficaram. Contavam-se histórias entre os amigos do argumentista sobre a RARET mas pouco mais. Ninguém sabia bem o que se passara.

A vida no campo, sem luz, sem estradas alcatroadas, a distância psicológica para Lisboa foi uma realidade presente para o argumentista que nasceu em 1976. Licenciou-se em História, foi construindo o guião na cabeça, recolhendo material, mas a ideia ficou na gaveta ano após ano. Estamos em 2017. Pedro Lopes está no Festival de Berlim e estabelece contacto com a Netflix. O pitch é feito em Madrid. O episódio piloto tem o OK para avançar em Miami. Eis que chegamos a 2021 e Pedro Lopes pode finalmente mostrar o que esteve na sua cabeça todo este tempo. “Raramente conseguimos ter acesso aos locais onde a ação se passou. Aqui não. Mais de duas décadas depois da RARET ser desativada, o edifício ainda cá está”, refere.

“Ninguém pensava na política, aquilo era o nosso meio de subsistência”

Mas o argumentista não viveu o que ali se passou. Foi no Centro Emissor de Onda Curta, propriedade da RTP, em Pegões, no Montijo, que se replicou a base principal do complexo, onde foi preciso recriar o ambiente no interior daquela estrutura que está agora abandonada. Foi preciso pensá-lo mas também foi necessário conversar com quem lá esteve. Carlos Cardoso, ex-operador da RARET de 68 anos, tem algumas pistas. Está num café em Salvaterra com o fato de treino vestido. Faz jogging todas as manhãs com um amigo. Não falha um. É conhecido na zona, sabe que vem aí uma série portuguesa sobre a RARET, mas torce o nariz quando percebe que é preciso pagar para ver. Entrou para lá em 68 com 14 anos. Os pais meteram uma cunha. Havia a telescola e depois a escola industrial, que logo se transformaria numa escola secundária. Os cursos iam da serralharia a técnicas de rádio. O pai deixava-o à porta ou apanhava o autocarro da Rodoviária Nacional. A palavra de honra dentro da escola era “rigor”. E os americanos? “Eram nossos amigos, facultavam tudo”, diz. Quanto ao que se fazia por lá, Carlos Cardoso “não se preocupava”. Nem mesmo quando tinha aulas no centro emissor.

Série "Glória"

"Glória", escrita e realizada por Pedro Lopes e Tiago Guedes, é a primeira série portuguesa produzida para a Netflix e conta a história de um espião infiltrado na RARET

PAULO GOULART PHOTOGRAPHY

Saiu cinco anos depois, escapou à chamada para a Guerra Colonial porque quem tinha estudado na RARET era convidado por um professor a trabalhar noutros sítios, como em Alverca, nas oficinas gerais de material aeronáutico. Mas Carlos não foi por outra razão: tinha problemas de visão. Assim aconteceu. Tornou-se reparador de recetores de aviões. Já tinha conhecimentos como montador técnico de rádio, queria tirar o curso superior. Fê-lo no ISEL. Voltou para a RARET em 1983 onde ficaria até ao seu desmantelamento em 99. “Eles queriam gente que tivesse lá estudado. Quando regressei, já se sabia o que faziam, já não era o tempo em que o Estado Novo não deixava ouvir as notícias da BBC. Mas ninguém pensava na política, aquilo era o nosso meio de subsistência, queríamos era ganhar o nosso salário. Nunca fiquei inclinado e mesmo que aquilo fosse segredo, não sabia nada de checo ou polaco, nunca aprendi”, afirma.

Enquanto conta a sua história, Carlos Cardoso explica o que é que fazia: tinha de mexer num emissor com “o tamanho de uma casa daqui de Salvaterra”, afirma, apontando para um edifício. Era composto por válvulas, componentes eletrónicos, tendo de estar tudo sintonizado na mesma frequência.

Em “Glória”, a série, a cronologia aponta para os anos 50, a época das válvulas. Havia 13 transmissores e 90 frequências para passar propaganda durante 21 horas, tal como descreve a revista RCA Broadcast News de junho de 1957, que veio a Portugal acompanhar o início do projeto. Com o desenvolver da operação, aliada ao progresso tecnológico e à renovação do contrato de concessão, a potência dos emissores da RARET foi aumentando — o recorde são 7 mil Kw — assim como a introdução de novos meios informáticos, como computadores, transístores ou chips. Logo no primeiro episódio, vemos o percurso que é preciso fazer para levar bobines até à RARET. Na altura de Carlos Cardoso, o conteúdo já chegava de Munique via satélite, onde depois se injetavam os programas nos emissores. Já não havia Estado Novo, Portugal era quase obrigado a acompanhar o tal progresso. “Dantes não era assim, os dissidentes soviéticos iam até aos estúdios do Areeiro gravar, esse material ia para a Maxuqueira, depois era preciso desbobinar, traduzir, não deixar que os russos interferissem. E logo seguia para a Glória”, confirma. A primeira retransmissão em Portugal ainda foi mais arcaica: foi feita numa carrinha móvel, a “Bárbara”.

"A revolução ficou à porta, não entrou. Muita gente não tinha noção do que se passava, mesmo no pós revolução. E estamos a falar de uma zona que está entre dois grandes polos de resistência anti-fascista."
Roberto Caneira, técnico superior de história na Câmara Municipal de Salvaterra de Magos

Todos os dias o ex-operador recebia um sketch, uma espécie de guião que tinha de ser cumprido a determinada hora, com uma determinada língua para se poder retransmitir para países como a Polónia, a Hungria ou a então Checoslováquia. Havia escalas para cumprir, entre as 7h00 e as 15h00 e das 23h00 às 8h00, por exemplo. 24 horas a funcionar sem parar. Até no Natal e na passagem de ano se trabalhava. Pior só mesmo os guarda fios, que tinham de subir às antenas, apontadas para cada país-alvo, para as reparar, fizesse frio, sol ou chuva. A cortina de ferro não esperava. Aos feriados recebia-se mais. Tudo pago pelos norte-americanos. “Passava-se tudo ao segundo, passei muito tempo sem ver a família”, recorda.

Entre episódios de que já não se recorda e memórias bem presentes, Carlos Cardoso tem duas certezas: não era possível existir um espião português naquele lugar (como suspeitam) e o pior que aconteceu à região ribatejana “foi a Guerra Fria ter acabado”. Quanto à espionagem, não há, de facto, registo de ter havido um João Vidal. Mas é também previsível que, em existindo, não se soubesse. Já a segunda questão é mais dura, quase incompreensível, mas tem um significado. “O nosso mal, e para muita gente na Glória, foi quando a guerra acabou. Caiu o muro de Berlim, acabou a RARET. Víamos que se ia degradando, já não eram precisos funcionários novos. Deixou de dar capital à região. Dizemos entre os camaradas que os funcionários eram tão bons que acabámos com o serviço num instante”, conta. Um instante que durou mais de 40 anos. Já na presidência de Bill Clinton, surgiu a hipótese de prolongar a concessão além da viragem do século. Não se concretizou.

Ao contrário das centenas de casos conhecidos em que a empresa não respeita os direitos dos trabalhadores, do outro lado do oceano Atlântico quis-se acordar os termos de saída dos funcionários de outra forma. Se nas décadas anteriores toda a operação quis dinamizar a economia da região para cair nas boas graças dos glorianos, não podia terminar a operação sem cumprir o prometido. Mas o melhor era mesmo que nada falhasse. Mais lucro para a empresa. Mais propaganda a passar. “Foi tudo bem negociado, dos estatutos aos termos. Colegas mais velhos, à beira da reforma, começaram a sair. Houve quem saísse com 40 mil contos no bolso. As contas faziam-se com três salários por cada ano de casa. Eu, que fui dos últimos a sair, trouxe cerca de 18 mil euros, deu para pagar parte de uma casa. Comecei por receber 16 contos”, diz.

Há um plano pormenor na autarquia do concelho para construir um complexo turístico com hotéis e campos de golfe na Herdade de Nossa Senhora da Glória

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Além da indemnização, Carlos Cardoso trouxe uma régua metálica de escala. Comprou uma secretária e armário de lá a “preços irrisórios”. Saiu com 45 anos, ainda teve de ir trabalhar. Muitos dos seus camaradas já morreram. Alguns deles levaram parte da maquinaria para as Ilhas Marianas, onde começaria a Radio Free Asia. Tal como disse Pedro Lopes na apresentação da “Glória” à Netlifx e na resposta ao Observador sobre a hipótese remota de uma segunda temporada, “o muro só caiu em 1989”. Ou seja, há ainda muita história para contar sobre a RARET, mas quanto a Carlos Cardoso, o seu capítulo fechou nos anos 90.

“Muita gente não tinha noção do que se passava, mesmo no pós revolução”

Uma das pessoas que encostava a bicicleta às antenas para ouvir as transmissões a caminho da escola secundária que estava dentro da Herdade de Nossa Senhora da Glória era Roberto Caneira, coordenador da revista Magos e técnico superior de história na Câmara Municipal de Salvaterra de Magos. Apanhava de tudo. Num dia bom, podia ouvir os Beatles ou os Dire Straits. Nasceu no único sítio que está fechado na RARET hoje em dia: a maternidade, que funcionou desde a década de 60 até 74, onde nasceram mais de uma centena de bebés. Ao contrário de Carlos Cardoso, Roberto Caneira só foi estudante. Teve familiares que trabalharam lá. Não voltou mais à casa mãe. Só agora, a propósito da comemoração dos 70 anos da primeira retransmissão, é que volta a recordar aqueles tempos com mais pormenor, ajudando a coordenar as cerimónias.

Encontramo-lo no renovado “Hotel Jackson”, já na Glória. Parede pintada com um vermelho à entrada, com um mural representativo da RARET ao lado, onde se veem os “chibos” a cavalo, com radiotransmissores às costas. Atrás, estão senhoras a fazer a limpeza de um espaço que parece imaculado, ao contrário do abandono que espreita, em toda a linha, na herdade. Para lá chegar é preciso atravessar a EN367, que liga aquela região a Marinhais. Distam, ao todo, 3,74 quilómetros. À volta vê-se um campo de futebol, a Casa do Povo ou um ringue desportivo. Tudo doado à RARET, já que aqueles metros quadrados pertenceram ao complexo de radiodifusão.

"Raramente conseguimos ter acesso aos locais onde a ação se passou. Aqui não. Mais de duas décadas depois da RARET ser desativada, o edifício ainda cá está"
Pedro Lopes, argumentista de "Glória"

Lá dentro, surge um auditório. Mas todo aquele perímetro já foi outro lugar, daí o seu nome. Os primeiros funcionários da RARET, portugueses e norte-americanos ficaram ali hospedados. Antes, receberam outro tipo de hóspedes: trabalhadores rurais que iam para a Nossa Senhora da Glória, vindos principalmente do norte, porque o Ribatejo mobilizava muita mão de obra. O nome? É simples. “Foi dado por causa do Charles Douglas Jackson, presidente da Radio Free Europe. Veio cá ver as instalações e disse, que a partir de agora, todos teriam as melhores condições de trabalho e de vida”, afirma Roberto Caneira ao Observador.

Em 1951, o Hotel Jackson perdeu a sua função porque as moradias começaram a ser erguidas, mas estava dado o ponto de partida. O isolamento daquele meio rural foi interrompido. Quem trabalhava no campo transferiu-se para a herdade. A escola “mudou mentalidades”, porque permitiu aos mais jovens ter acesso ao ensino. “Revolucionou tudo, começámos a pensar por nós próprios”, diz.

O rigor na escola, sempre o rigor, continuava tal e qual se passava no tempo do operador Carlos Cardoso. Como acontece sempre numa terra pequena, toda a gente se conhecia, a proximidade com os professores era diária. A sala de geografia tinha vários mapas do mundo, a sala de desenho possuía “enormes estiradores”. Havia também laboratórios de físico-química, com microscópios, tubos de ensaio e outros materiais. Na sala de eletrotécnica, aquela que acabaria por dar início à formação de futuros funcionários, deu “bases fundamentais em eletricidade” ainda hoje usadas por Roberto Caneira. Mas o melhor de tudo eram as atividades extracurriculares, tão badaladas nos últimos anos. “O que mais impressionava era as condições para a prática desportiva”, conta. Lá fora, nada disto. Nem luz, nem água. O contraste era absoluto.

Imagens da rodagem de "Glória". A série é protagonizada por Miguel Nunes, Joana Ribeiro, Victoria Guerra, Afonso Pimentel, Carolina Amaral e Adriano Luz, entre outros nomes

PAULO GOULART PHOTOGRAPHY

E namoricos? No caldeirão suave que era a RARET, entre o modernismo norte-americano e o olhar atento do Estado Novo, os alunos podiam deixar transpirar as hormonas? Sim, meio às escondidas. Quem fosse apanhado a incumprir as regras, como fumar ou chumbar mais do que 2 anos, tinha consequências pesadas. Primeiro ainda se levava uma repreensão escrita para casa. O pior era mesmo quem pisasse o jardim do diretor Bragança. “Não nos deixava lá entrar, se alguém não cumpria, atirava pedras. Mas tudo isso só nos fez bem”. Sobre se era possível contornar o controlo apertado da GNR para espreitar as operações, a resposta é simples: não. Essa vistoria acontecia até à entrada. Depois de um atentado falhado às antenas nos anos 80, decidiu-se revistar toda a gente que entrasse nas instalações. Até os alunos. O terreno foi vedado.

Por causa de um professor foi levado a seguir a área de História. Licenciou-se na universidade de Évora. Abandonou a RARET com 16 anos, de onde seguiu para Salvaterra. Aí, as condições de ensino pioraram drasticamente. Ficou-lhe o que já tinha aprendido. “Toda a gente se levantava na sala de aula quando alguém entrava. Quando fui para Salvaterra fiz o mesmo”, afirma. O que fica do que se passou.

Roberto Caneira tem 47 anos. Quando estava a dar os primeiros passos, aconteceu o 25 de Abril. Salazar já tinha morrido, Marcelo Caetano estava de saída, um país em convulsão social, económica e civil. Ninguém sabia para onde se ia, mas todos sabiam que já não se voltava para trás. Mas na RARET tudo isso passou praticamente ao lado. “A revolução ficou à porta, não entrou. Muita gente não tinha noção do que se passava, mesmo no pós revolução. E estamos a falar de uma zona que está entre dois grandes polos de resistência anti-fascista: o Couço e Alpiarça. Conta-se até a história de um trabalhador comunista que, para não prejudicar os camaradas, resolveu não ir mais. “A empresa aceitou, mas pagou-lhe na mesma.”

António Pote, o senhor que trabalha para o novo dono, é quem tem a chave e abriu os portões à Netflix para as filmagens. Fez as limpezas da rodagem, está contratado para a manutenção do espaço. Nada mais. Diz-nos que a esperança é que a série "Glória" volte a despertar a curiosidade para a história rica da RARET.

A lógica está certa com o rumo que a história daquele lugar foi tendo. Se algum funcionário estivesse contra, “era fácil boicotar” uma transmissão. Portanto, era fácil fazer aquilo que a personagem de João Vidal quer — aliás, tem de fazer na série “Glória”. Mas as boas relações ditaram um destino contrário. “Porque é que iam arranjar problemas se a RARET lhes dava tudo?”, questiona.

E o tudo, é mesmo tudo. Até a criação da junta de freguesia da Glória, que teve um funcionário da RARET como primeiro presidente. Em épocas festivas, a RARET distribuía o bodo, uma espécie de cabaz natalício, aos mais carenciados. Com a reformulação de 2012, àquela região juntou-se o Granho. No final da EN367 há uma rotunda com antenas. Depois do Hotel Jackson, junto ao campo de futebol, há uma exposição comemorativa. Curiosamente, tal como as moradias, está num terreno sem vegetação, com pedras. Uma peça de museu ao ar livre.

Quanto à Herdade de Nossa Senhora da Glória, mantém-se à espera, numa espécie de imbróglio jurídico. Há um plano pormenor na autarquia do concelho para construir um complexo turístico com hotéis e campos de golfe. Mas o terreno é privado, pertence a um sindicato bancário, que o comprou a uma empresa que, entretanto, abriu insolvência. Um empresário tentou levar para a frente um projeto de agricultura intensiva. A câmara impediu. António Pote, o senhor que trabalha para o novo dono, é quem tem a chave e abriu os portões à Netflix para as filmagens. Fez as limpezas da rodagem, está contratado para a manutenção do espaço. Nada mais. Diz-nos que a esperança é que a série “Glória” volte a despertar a curiosidade para a história rica da RARET.

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