“Let’s Talk About Children.” Vamos falar sobre crianças, na tradução, LTC na sigla, é uma metodologia baseada na intervenção psicossocial (comportamentos e interacções com as pessoas que nos rodeiam) que surgiu há mais de vinte anos na Finlândia, onde está estabelecida e consolidada. É uma abordagem que contempla a formação de profissionais de saúde e de educação, que contactam e lidam com famílias com crianças e jovens, para que detetem fragilidades e reforcem potencialidades, adquiram competências e reconheçam precocemente algumas necessidades das crianças e do seu núcleo duro – necessidades de amor, de afeto, de segurança, de autoestima, de atenção.
A Comissão Europeia decidiu replicar o LTC a outros países num projeto europeu. Portugal é um deles. O programa está a ser implementado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra com a participação do hospital local.
Joaquim Cerejeira, médico psiquiatra, coordenador do projeto LTC em Portugal, explica que o método foi desenvolvido para ajudar famílias, onde há crianças, profissionais de saúde (psicólogos, psiquiatras, pedopsiquiatra, médicos, enfermeiros, assistentes sociais, entre outros) e profissionais de educação, professores e educadores, a apoiarem o bem-estar e a saúde mental, a aprendizagem e o desenvolvimento dos mais novos, num quotidiano sem muitos sobressaltos. “Para prevenir problemas de saúde mental nas crianças, futuros adultos, atuando precocemente nas famílias e nas crianças”, concretiza.
O LTC consiste, na prática, em treinar profissionais para sessões de conversa com os pais, e pessoas identificadas por eles, no sentido de explorar oportunidades de apoio à criança ou jovem. Os participantes identificam os pontos fortes e as fragilidades da vida dos mais novos. É uma intervenção focada na família, com uma perspetiva otimista, sem medo de falar, segundo Joaquim Cerejeira. “Os profissionais falam, os professores também falam de problemas de saúde mental, mas não é sempre e não é de uma forma estruturada.”
“No fundo, é uma conversa, uma entrevista estruturada, que o profissional tem com a família onde há crianças. A abordagem passa sempre por tentar promover os pontos fortes das famílias, tentando aproveitar o que são as suas potencialidades numa perspetiva positiva”, diz Joaquim Cerejeira. Por exemplo: se uma criança se porta mal na escola e tem boas notas, o professor pode elogiar a parte do aproveitamento escolar numa conversa com pais para que esse ponto os ajude, em conjunto, a resolver a questão do mau comportamento.
Outro exemplo: uma mãe com uma depressão pode criar o seu filho, percebendo que não está sozinha nessa conversa estruturada que tem vários itens — se a família acorda bem ou maldisposta, se há relações tensas entre pais e filhos, o que gera frustração nas crianças e nos adultos. “A ideia é tentar resolver problemas do dia a dia, as pessoas até podem ter vergonha em falar de algumas situações, há pequenas coisa que parecem insignificantes e que têm um grande impacto na saúde mental.” O treino, nessa metodologia, ensina a estar atento ao detalhe.
“Procurar soluções para questões difíceis”
A promoção do bem-estar das crianças e a prevenção da transmissão intergeracional de problemas de saúde mental são objetivos do projeto LTC que, em Portugal, arrancou em fevereiro de 2023. A ideia é implementar o programa em escolas do primeiro e segundo ciclos ciclos da região de Coimbra e em serviços de psiquiatria e saúde mental para crianças e adultos a nível nacional, depois dos programas de capacitação que terminam no fim do próximo ano. A intenção é, até lá, treinar 180 profissionais neste projeto que é financiado pelo programa europeu EU4Health e envolve 14 instituições de nove países: Portugal, Finlândia, República Checa, Bélgica, Itália, Estónia, Grécia, Polónia e Roménia.
Há trabalho a ser feito. A primeira edição do programa de capacitação para a metodologia LTC, que terminou em junho, envolveu 13 profissionais: médicos psiquiatras, pedopsiquiatras, psicólogos, enfermeiros, professores e educadores de infância. A participação está aberta a profissionais de todo o país, que se podem inscrever num link criado para o efeito.
Maria João Simões é psicóloga, participou na primeira edição, e realça a componente de prevenção e esse olhar para o que é positivo. “A possibilidade de vermos as famílias no sentido mais positivo e construtivo, do que irmos à procura do que está mal, do que é o desvio”, diz. A metodologia LTC abre várias possibilidades. “É uma perspetiva mais organizada e dirigida numa entrevista em que não vamos à procura de críticas, vamos à procura de soluções.” As famílias envolvem-se, refletem sobre situações que apresentam, procuram-se caminhos. “Como psicóloga, vermos a família desta forma, de uma perspetiva diferente e envolvê-la no processo, é muito interessante.”
Sara Pedroso é pedopsiquiatra, faz parte da equipa que coordena o projeto, participou na primeira edição do treino de capacitação LTC. Há 13 anos que é pedopsiquiatra e este método mostra-lhe que há formas diferentes de conversar com as famílias sobre o dia a dia, rotinas, áreas em que têm mais dificuldades. “Muitas vezes, na área da saúde, de apoio social, e mesmo nas escolas, quando se pede para falar com os pais, eles pensam imediatamente que os seus filhos fizeram alguma coisa, que se estão a portar mal.” Nem sempre é assim.
“Este método põe-nos como parceiros e numa atitude de não julgamento. Não só olhamos para os problemas como ajudamos a perceber que há pontos positivos nas famílias”, diz Sara Pedroso. Se o filho se levanta a horas, se faz a higiene sozinho, se colabora nas tarefas de casa, se tem amigos, se não falta às aulas, por exemplo. “São pontos positivos e as famílias percebem que há muita coisa boa a acontecer em casa.” O plano de ação é feito em conjunto com as famílias, que podem decidir atividades em conjunto, como ver um filme uma vez por semana todos juntos. A abordagem não é olhar para uma família como um poço de problemas, mas ajudá-la a lidar com as suas dificuldades sem juízos de valor, sem apontar o dedo.
Joaquim Cerejeira lembra que todas as famílias têm aspetos positivos e únicos, que nem sempre reconhecem ou valorizam. “O LTC é um recurso que ajuda as famílias a identificarem e a desenvolverem os seus pontos fortes na vida quotidiana e a encontrar soluções para as questões difíceis.” Há situações que são abordadas nas sessões: uma criança com o pai ou a mãe em depressão, a viver num ambiente isolado, pode ser mais reservada na escola; uma criança com personalidade forte pode ter dificuldades de comportamento e aprendizagem e mostrar irritação em casa se tiver um grupo de colegas mais agitado e influenciável; famílias em que há casos de doença mental, carências económicas, em contextos vulneráveis, podem ter filhos pouco integrados socialmente.
Profissionais partilham experiências e discutem casos
Cristina Ribeiro também frequentou a primeira edição do LTC. A professora de Educação Especial há 24 anos, integra uma equipa local de intervenção precoce do Agrupamento de Escolas de Arganil, trabalha com crianças dos zero aos seis anos, a maioria com espetro de autismo, está habituada a lidar com famílias, casos particulares, contextos complexos. Viu a formação no site do Ministério da Educação, gosta de abordagens fora da caixa, inscreveu-se, foi chamada. “Esta parte da saúde mental está muito presente no meu trabalho, na intervenção precoce trabalhamos muito com as famílias.”
A abordagem preventiva e a perspetiva positiva do LTC encaixam no dia a dia profissional de Cristina Ribeiro. “Com este projeto, e com o que faço, podemos dar uma voz ativa ao desenvolvimento e educação das crianças. É dar voz a estas famílias.” Por vezes, diz, há pessoas com problemas de saúde mental que, realça, “são remetidas para um canto pela própria família.” E não pode ser. As sessões do LTC permitem trocar experiências, partilhar histórias. Foi o que fez. Realçar o que as famílias têm de bom tem vantagens. “Destacar as forças e as capacidades que cada família tem, e envolvê-la nesse processo ativo, é importante.” Para, em conjunto, resolver problemas.
O programa de capacitação LTC consiste em duas sessões presenciais, sessões online de acompanhamento e discussão, o equivalente a oito dias de trabalho distribuídos por um período de seis meses, em horário laboral. Há uma parte teórica e sessões de partilha e debate de casos. Em setembro, arranca o programa de formação para formadores, ou seja, com os profissionais que participaram na primeira edição para que sejam formadores e capacitem as próximas equipas. Na mesma altura, começa a segunda edição de capacitação.
Ana Paula Silva, investigadora da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e do Instituto de Investigação Clínica e Biomédica de Coimbra, na área das neurociências, faz parte da equipa do projeto, está mais ligada à dinamização de atividades de literacia em saúde mental em escolas de Coimbra e zonas envolventes. “A recetividade é enorme e as pessoas estão mais sensibilizadas para as questões da saúde mental”, diz. Nesse contexto educativo, uma das componentes do projeto, centra-se nas questões mais biológicas, de como funciona o cérebro.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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