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Queria afirmar-se como a voz das “reformas profundas” que o país reclamava e o defensor de “todos aqueles que [ousavam] fazer aquilo que [tinha] de ser feito”, perante o “silêncio ensurdecedor” e o “fogo intenso” dos opinion makers. Cedo se transformou num defensor assumido dos governos de José Sócrates e crítico feroz de todos os que se lhe opunham. Atacou procuradores e juízes, meios de comunicação social e jornalistas, e os principais protagonistas da cena política portuguesa mais à direita: Marques Mendes, o “piolho metido nas costuras“, e Paulo Rangel, o “Manelinho“, o filho do merceeiro do universo da “Mafalda”; Manuela Ferreira Leite, “a dra. Manuela”, e José Pacheco Pereira, o “historiador da Marmeleira“; Paulo Portas, “vice-pantomineiro-mor“, e Pedro Passos Coelho, o “alegado primeiro-ministro”; Cavaco Silva, a “mão atrás do arbusto“, e Marcelo Rebelo de Sousa, “conhecido desde tenra idade por traquinices que se transformaram paulatinamente em velhacarias“.
O blogue Câmara Corporativa nasceu oficialmente em setembro de 2005, num tempo em que a blogosfera começava a despontar e a conquistar influência no país político português. O nome original — Corporações — denunciava a intenção inicial da página: atacar os alegados privilégios de vários lóbis, desde a magistratura às farmacêuticas. As primeiras publicações centravam-se, de resto, nessas denúncias — as farmácias e os juízes foram precisamente o primeiro choque frontal de Sócrates como primeiro-ministro.
O blogue foi uma das principais armas de comunicação do período socrático: além fazer um permanente levantamento dos artigos de opinião mais favoráveis a José Sócrates e ao seu Governo, os autores da página nunca se coibiram de criticar fortemente todos os adversários do ex-primeiro-ministro — e sempre sob a proteção do anonimato. A perda de influência da página coincidiu com a diminuição do fulgor da blogosfera, mas a verdadeira identidade de “Miguel Abrantes”, o misterioso pseudónimo que assinava grande parte das publicações, e as alegadas ligações da página ao aparelho socrático chegaram ao radar dos investigadores da Operação Marquês.
Durante muito tempo, especulou-se sobre a identidade de “Miguel Abrantes”. Os adversários diziam que era, na verdade, um assessor do Governo de José Sócrates. Outros sugeriam que não era um, mas vários autores com informações diretamente sopradas da presidência do Conselho de Ministros e de outros gabinetes ministeriais estratégicos (há quem conheça o processo por dentro e continue a afirmar que era demasiado trabalho para um homem só). Seja como for, as acusações coincidam num ponto: o autor — ou autores — do blogue tinha uma relação com o poder socialista e estava ligados a gabinetes governamentais.
Houve, no entanto, quem garantisse o contrário: Fernanda Câncio, jornalista e então namorada de José Sócrates, foi uma das primeiras pessoas a assegurar que “Miguel Abrantes” existia (e até já tinha jantado com ele, como revelou então). Eduardo Pitta, blogger, poeta e escritor, apoiante do ex-primeiro-ministro, garantiu o mesmo.
Hoje sabe-se que “Miguel Abrantes” era, na verdade, António Costa Peixoto. Como explicou o Observador, o Ministério Público suspeita que Carlos Santos Silva terá ordenado, em nome de José Sócrates, o pagamento de avenças a António Costa Peixoto (que o Observador não conseguiu contactar) e ao seu filho António Mega Peixoto. Entre 2012 e 2014, os dois terão recebido cerca de 76 mil euros da empresa RMF Consulting — Gestão e Consultadoria Estratégia, uma sociedade gerida por Rui Mão de Ferro, um economista que era colaborador de Carlos Santos Silva e igualmente arguido na Operação Marquês.
Ministério Público em busca de mais pagamentos a bloggers socráticos
Foi o próprio António Costa Peixoto quem admitiu ao procurador Rosário Teixeira, durante a sua inquirição a 20 de outubro de 2016, que o contrato com a RMF tinha sido intermediado por Carlos Santos Silva através de um amigo comum já falecido. Depois do contacto com Santos Silva, Peixoto encontrou-se com Rui Mão de Ferro e foi estabelecido um contrato de assessoria técnica que lhe valeria 3.500 euros mensais.
No depoimento prestado no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), António Costa Peixoto afirmou que conheceu José Sócrates no Natal de 2012 por intermédio de Filipe Batista, ex-secretário de Estado adjunto de Sócrates e professor na Faculdade de Direito de Lisboa. Peixoto disse que, na sequência desse encontro, o ex-líder do PS lhe enviou a sua tese de mestrado feita em Paris para que o economista — que se encontra reformado desde 2013 –, realizasse um trabalho de revisão. Peixoto terá admitido igualmente contactos com Pedro Silva Pereira, braço direito de Sócrates e amigo de Filipe Batista.
No entanto, e como revelou o Observador, o Ministério Público está a tentar encontrar mais pagamentos a bloggers socráticos. António Costa Peixoto é, para já, o único identificado, mas os indícios apontam para a existência de outros autores. Essa, de resto, foi sempre a convicção de quem acompanhou (e enfrentou) o Câmara Corporativa durante os anos de atividade mais intensa do blogue.
“Ninguém na blogosfera sabia quem era “Miguel Abrantes”, mas toda a gente sabia que era mais do que uma pessoa. Era uma amálgama de gente, com estilos de escrita diferentes. “Miguel Abrantes” talvez fosse o pseudónimo de quem coordenava toda a informação que chegava ao blogue”, conta ao Observador um ex-blogger, que assumia a defesa de Pedro Passos Coelho e do PSD nos blogues do outro lado da barricada. Viviam-se tempos em que a luta política também se fazia intensamente naquelas páginas criadas para o efeito, antes de o Facebook ter engolido o fenómeno. “Era um ambiente muito, muito crispado“, relata.
Entre os adversários da Câmara Corporativa corria a tese de que só era possível manter um blogue daqueles com acesso privilegiado a informação sensível transmitida pelo Governo. “Muita da informação que era colocada no blogue não era de fontes públicas. E era colocada quase em tempo real. Só podia vir de dentro da Presidência do Conselho de Ministros”, especula a mesma fonte.
Os homens de Cavaco Silva desconfiavam do mesmo. O ex-Presidente da República foi um dos protagonistas mais atacados pelos autores do blogue, sobretudo depois do caso das alegadas escutas em Belém. No dia em que anunciou que ia encerrar atividade, “Miguel Abrantes” não foi particularmente meigo: com “Cavaco com os pés para a cova” parte da missão estava cumprida.
“Era do conhecimento de Cavaco Silva aquilo que se escrevia no Câmara Corporativa”, assegura um dos homens do ex-Presidente ao Observador. “Tínhamos mais ou menos uma ideia da identidade dos autores do blogue. Sabíamos que tinha de ser alguém com informações privilegiadas porque escrevia comentários quase em tempo real. Mas isso permitia-nos perceber quais eram as críticas do Governo a Belém e antecipar a estratégia“, explica a mesma fonte.
No livro Na Sombra da Presidência — Relato de 10 anos em Belém, Fernando Lima, antigo assessor de imprensa e um dos elementos de maior confiança do ex-Presidente da República até setembro de 2009, sugere isso mesmo: “Impressionava-me a poderosa e invisível máquina dos socialistas para denegrir os seus adversários e todos aqueles que se atravessavam no seu caminho. (…) Em todo este processo, o mais significativo é que não havia nenhuma outra entidade ou força política capaz de competir com a imensa capacidade do poder socialista de atingir os outros”.
Fernando Lima explicou no seu livro como era vista esta estratégia dos socialistas no núcleo duro cavaquista: “Em Belém, e por uma questão de atitude, devíamos ignorar esse tipo de guerra psicológica, mas não podíamos deixar de lhe dar atenção como fonte de informação sobre quem estava na manobra. Admitia-se que fosse gente bem colocada na estrutura governativa, pelo acesso a informação de qualidade. De resto, à medida que aumentavam as críticas dos socialistas, pelo desagrado das suas políticas e comportamentos, endurecia o tom dos seus ataques, desferidos, normalmente, contra alvos precisos, com o claro intuito de intimidação dos visados, o que contribuía largamente para que se vivesse num insuportável clima de crispação”.
Ao Observador, membros do gabinete de José Sócrates recordam esses tempos e garantem que, pelo menos durante o período em que foi primeiro-ministro, o socialista não tinha qualquer influência pessoal sobre o que era escrito no Câmara Corporativa e noutros blogues pró-Governo. A descrição que fazem é de um homem pouco dado às tecnologias. Tinha um telemóvel sem ligação à Internet, nem sequer existia um computador no gabinete — as secretárias imprimiam tudo –, e José Sócrates fazia gala em não perceber nada do assunto.”Era um analfabeto digital“, asseguram as mesmas fontes.
Um dos membros do gabinete de José Sócrates que falou com o Observador diz que não se lembra de haver informação exclusiva a ser passada ao blogue. Outro responsável recorda que se irritou quando o gabinete do secretário de Estado adjunto (não se recorda se no tempo de Filipe Batista ou de Almeida Ribeiro) partilhou com o Câmara Corporativa informações sobre medidas que o Governo estava a preparar — embora um elemento do gabinete do secretário de Estado negue que houvesse acesso do blogue a informação privilegiada que não fosse do domínio público. O ex-secretário de Estado adjunto de Sócrates terá sido o responsável por apresentar António Costa Peixoto (“Miguel Abrantes”) ao ex-primeiro-ministro, em 2012. Filipe Batista não respondeu às tentativas do Observador de obter um comentário.
Às vezes era identificável no blogue o argumentário preparado no gabinete do primeiro-ministro sobre determinados assuntos, revela a mesma fonte do gabinete de José Sócrates. Iam longe de mais, reconhece. Entre alguns elementos do gabinete do ex-primeiro-ministro, os autores do Câmara Corporativa eram vistos como “fanáticos”, que defendiam a posição do Governo até às últimas consequências, o que nem sempre beneficiava o Executivo quando estavam a decorrer negociações e era preciso fazer pontes.
“A partir de determinada altura, era um foco de confronto demasiado faccioso, que prejudicava negociações que andávamos a fazer e acentuava o que de pior tinha Sócrates, era muito abrasador e agressivo“, conta este ex-membro do gabinete de José Sócrates.
Segundo a versão contada por António Costa Peixoto ao Ministério Público, o blogger só conheceu José Sócrates no Natal de 2012, já depois de o socialista ter deixado o Governo. Terá sido aí que começou a alegada relação contratual entre os dois. Durante os governos socráticos, a máquina na blogosfera teria, assim, de acordo com esta versão, sido alimentada sem a influência direta do ex-primeiro-ministro.
A 17 de fevereiro de 2010, o Correio da Manhã trazia um texto sugestivo: “Campanha com meios públicos — Sócrates foi apoiado por blogues alimentados em informação e argumentários feitos por assessores”. O jornal citava vários emails enviados a partir da hierarquia do Governo e garantia que os documentos a chegar aos blogues pró-Sócrates eram criados a partir da rede informática interna do Governo. Hugo Mendes, assessor de José Almeida Ribeiro (então secretário de Estado e ex-chefe de gabinete de Sócrates), era referenciado como um dos mais ativos na distribuição do material de propaganda. O próprio Almeida Ribeiro, formado em Filosofia e Marketing Político, ex-funcionário do Serviço de Informações de Segurança (SIS), seria o grande estratega de toda a máquina de propaganda. Mas refutou sempre essa acusação.
Um dia depois da notícia do Correio da Manhã, no Público, Carlos Santos, professor na Universidade Católica do Porto e ex-colaborador de outro blogue pró-Governo, o Simplex, revelava uma rede que funcionava na blogosfera e utilizava meios e recursos do Estado para “ações de propaganda política”.
A lista de nomes identificados era vasta, mas estariam envolvidos assessores e chefes de gabinete de ministros como Augusto Santos Silva e Mário Lino e mesmo secretários de Estado. Estas informações nunca foram confirmadas e Carlos Santos seria duramente criticado nos blogues próximos do Governo socialista, tratado como mentiroso ou bufo.
Os ataques ao “gato constipado” e o caso da licenciatura
Durante o período em que funcionou o Câmara Corporativa, todos os adversários de José Sócrates foram tratados sem piedade. Um a um, do ex-Procurador-Geral da República, Souto Moura, a Cavaco Silva, todos mereceram duras críticas dos autores. António Costa Peixoto (o misterioso “Miguel Abrantes”) seria o principal autor dos disparos.
Souto Moura foi, de resto, um dos primeiros alvos do Câmara Corporativa. São numerosas as referências ao ex-Procurador-Geral da República, o “gato constipado” ou o “arquivador-geral da República“, como chegou a ser descrito no blogue. Os atrasos na Justiça e o desenrolar do célebre caso do “Envelope 9”, um envelope que constava na investigação do processo Casa Pia e que continha alegadamente os registos detalhados de milhares de chamadas telefónicas de alguns dos principais protagonistas políticos portugueses, mereceram vários textos de análise e crítica.
Cândida Almeida, então diretora do DCIAP, António Cluny (ex-presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público), apontados como possíveis sucessores de Souto Moura, também não foram poupados. A saída do ex-Procurador-Geral da República e a escolha de Pinto Monteiro, “uma agradável surpresa“, para o substituir foi amplamente aplaudida por “Miguel Abrantes”.
O semanário Expresso (aqui citado pelo Público) acabaria por divulgar o conteúdo das escutas telefónicas obtidas no âmbito do caso Portucale, onde é possível entender que José Sócrates terá proposto, em 2005, ao então Presidente da República, Jorge Sampaio, a demissão de Souto Moura e a sua substituição por Rui Pereira, ex-ministro da Administração Interna. Souto Moura estava a um ano e meio do fim do mandato, um período marcado em grande medida pelo processo Casa Pia. Jorge Sampaio não terá acedido.
A decisão não terá agradado ao ex-primeiro-ministro. No Câmara Corporativa, o desconforto com a escolha de Jorge Sampaio era manifesto: “[O] Dr. Sampaio, enquanto Presidente, disse que extrairia todas as consequências constitucionais se o Dr. Souto Moura não esclarecesse cabalmente o problema. O que aconteceu a esta promessa feita de madrugada em Belém? Foi transmitida ao novo Presidente da República? Talvez o livro de memórias sobre as matérias da justiça venha a esclarecer tudo isto. Sem estados de alma”, escreve “Miguel Abrantes”, num texto intitulado “Estilhaços atingem Belém“.
Mas o primeiro caso a atingir diretamente José Sócrates seria a polémica em torno da sua licenciatura, com acusações de que teria sido obtida de forma irregular. Também aí, a defesa feita por “Miguel Abrantes” do ex-primeiro-ministro foi incansável. O autor do blogue desdobrava-se em textos a explicar o caso:
“Nada põe em causa a licenciatura do primeiro-ministro e tudo prova uma sanha persecutória invulgar”. (Os bufos e o jornalismo, 22 de março, 2007) “A universidade é desorganizada? Não interessa, a culpa é de Sócrates. Os serviços administrativos são trapalhões e data documentos a domingos? Não interessa, a culpa é de Sócrates. Não apareceu o parecer que lhe deu equivalência com base num curso que anteriormente frequentou e concluiu? Não interessa, a culpa é de Sócrates”. (Beyond Citizen Kane, 3 de abril, 2007) “Todos perceberam que José Sócrates concluiu a sua licenciatura numa universidade que não é um modelo de organização e de academia, a que acresce agora a existência de conflitos entre professores e proprietários que não auguram grande futuro à Universidade Independente”. (O dia do Senhor, 22 de março, 2007)
O Freeport era uma “palhaçada”
José Sócrates ver-se-ia depois envolvido no Caso Freeport. Aqui, mais uma vez, a defesa de “Miguel Abrantes” foi permanente e acutilante. A idoneidade e independência dos meios de comunicação social que publicavam novos dados sobre a investigação eram imediatamente colocados em causa. O mesmo com os comentadores que se pronunciavam sobre o caso: Pacheco Pereira, um dos alvos preferenciais do blogue, mas também Marcelo Rebelo de Sousa não escaparam aos ataques do autor. Sobre o atual Presidente da República, “Miguel Abrantes” chegou a escrever:
“É preciso, na verdade, alguém com a capacidade de um Sherlock Holmes para orientar a investigação no caso Freeport. Mas não é preciso procurar mais. Esta noite, atento e venerando como quase sempre às crónicas do Prof. Marcelo, vi a luz. Ali estava Sherlock Holmes reencarnado. Com a inteligência fria e rigorosa da personagem de Conan Doyle, Marcelo esmagou-nos com a verdade. No caso Freeport, diz o professor depois de ter estado a refletir na baía de Luanda, ou todos meteram o dinheiro ao bolso ou foram só alguns a fazê-lo ou nenhum meteu dinheiro ao bolso” (Elementar, meu caro Watson, 24 de janeiro, 2009).
Nem Francisco Louçã escapou. “Miguel Abrantes” não se limitava a atacar meios de comunicação social e comentadores políticos. Era a Justiça e os magistrados, que em conluio com o poder político queriam retirar José Sócrates do poder, que estavam em causa. Era uma campanha suja orquestrada para atingir o então primeiro-ministro, escrevia o autor. “Miguel Abrantes” sugeria que o Freeport era uma reedição do processo Casa Pia, uma tentativa de destruir o PS.
“Há, na história do Freeport, um pecado original. Um erro de cálculo fatal, irreversível. José Sócrates deveria ter sido morto pelo processo Casa Pia. Vejam bem: eliminaram, de uma assentada, Ferro Rodrigues (o líder) e Paulo Pedroso (o delfim do líder), e até tentaram eliminar aquele que a própria cúpula do PS ‘elegeu’ para líder, por umas escassas horas — Jaime Gama. Falhou-lhes o pormenor Sócrates. Quando tentaram, já era tarde. Ainda se atravessaram com a sua vida pessoal, mas não pegou. O Freeport é já um caso de desespero, como se percebeu logo com a palhaçada de 2005. Procurem as coincidências entre o processo Casa Pia e o caso Freeport… Vão ver que não são tão poucas. Com algumas derivações curiosas. (O erro fatal, 30 de janeiro, 2009).
As alegadas escutas em Belém e os ataques a Cavaco Silva
No verão de 2009, José Sócrates ver-se-ia envolvido em nova polémica: Belém tinha suspeitas de estar a ser vigiada por São Bento. O episódio das alegadas escutas seria decisivo no quebrar da pouca confiança que restava entre o então primeiro-ministro e o ex-Presidente da República. Para o antigo líder socialista, tudo não passou de um esquema orquestrado para o prejudicar nas eleições legislativas. O caso foi largamente discutido no Câmara Corporativa, com acusações recorrentes de que Cavaco Silva teria dado cobertura ao caso, no sentido de prejudicar deliberadamente o PS nas eleições legislativas.
A troca de acusações durante o período eleitoral foi particularmente intensa. Entre os socialistas, crescia a convicção de que Cavaco Silva estava a fazer de tudo para garantir a eleição de Manuela Ferreira Leite, sua ex-ministra da Educação e protegida. Cedo começaram a circular rumores de que assessores de Belém tinham colaborado diretamente na elaboração do programa do PSD. O Câmara Corporativa ajudou a dar força a essas insinuações, colando a então presidente do PSD a Cavaco Silva, para derreter a candidatura da social-democrata.
A 20 de setembro, a poucos dias das eleições legislativas, “Miguel Abrantes” era particularmente contundente e acusava o então Presidente da República de ter demonstrado falta de “sentido de Estado” em todo o processo das alegadas escutas em Belém: “[Um dia] todos quantos o ainda não sabiam, ficarão a par do sentido de Estado [de Cavaco Silva], da sua isenção política e da forma como conduz a sua tão apregoada cooperação estratégica”, escreveu então o autor.
Dois dias depois das eleições legislativas de 2009, que resultaram na perda da maioria absoluta de José Sócrates, Cavaco Silva falou ao país, naquela que foi uma das declarações mais sensíveis que fez enquanto Presidente da República. Quebrando o tabu sobre o caso das escutas e da ligação de Belém ao programa do PSD, Cavaco Silva foi taxativo: “Foram ultrapassados os limites do tolerável e da decência”.
O que restava da relação institucional entre Belém e São Bento ruía ali, depois de o então Presidente da República ter sugerido que o PS o tinha colado deliberadamente ao caso das escutas. No Câmara Corporativa, a reação foi violenta: “Mais uma vez, portanto, Cavaco colocou-se bem no centro da luta político-partidária, tentando prejudicar – com suspeições infundadas a poucos dias das eleições – o partido do Governo”, escreveu “Miguel Abrantes”, num longo texto onde se propunha esmiuçar a declaração do Presidente da República.
O Face Oculta era uma “marosca”
Cavaco Silva seria sempre um alvo recorrente dos ataques do blogue, com vários textos a explorar as ligações do antigo Chefe de Estado ao BPN e à Casa da Coelha. Mas o envolvimento de José Sócrates noutro caso — o Face Oculta — desviaria as atenções dos autores do blogue: conversas entre o ex-primeiro-ministro e Armando Vara tinham sido intercetadas e parcialmente divulgadas na comunicação social. A investigação tinha várias nuances e envolvia também a alegada tentativa de compra da TVI pela PT, uma forma que o ex-primeiro-ministro tinha alegadamente encontrado para tentar condicionar a estação de Queluz e o incómodo telejornal de Manuela Moura Guedes.
Durante todo o processo, “Miguel Abrantes” não poupava os adversários de José Sócrates. De José Pacheco Pereira, o “filósofo da Marmeleira“, a Manuela Ferreira Leite, Paulo Rangel e José Manuela Pureza, passando pelo comentador Marcelo Rebelo de Sousa, ninguém foi poupado. Sobre Marcelo, “Miguel Abrantes” escreveria:
“Na sua homilia costumeira, o Prof. Marcelo referiu dúvidas quanto ao carácter de Sócrates e afirmou que este tem uma relação difícil com a verdade. Todos nos lembramos de que Marcelo era o tal adolescente que tocava a altas horas da noite à campainha do prédio do padre Melícias para lançar as culpas em Guterres. Marcelo foi o jornalista que, sob anonimato, chamou lelé da cuca ao seu patrão e protetor, Francisco Balsemão, exatamente no jornal de que ele é proprietário — o Expresso. Marcelo é o político maduro que garantiu que nunca assumiria a liderança do PSD e que, pouco depois, assumiu mesmo, num exercício de salta-pocinhas, em que trocou o papel de comentador pelo de líder. As qualidades do comentador que lança o labéu sobre Sócrates não deixam dúvidas. As suas dificuldades de relacionamento e os seus problemas de carácter são sobejamente conhecidos”. (O carácter do escorpião, 6 de dezembro, 2009)
Em novembro de 2009, e depois de Pinto Monteiro ter concluído que não existiam “indícios probatórios que levassem à instauração de procedimento criminal” — contrariando o entendimento do procurador e do juiz de instrução — e de Noronha de Nascimento, então presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ter ordenado a destruição das escutas que envolviam José Sócrates e Armando Vara, “Miguel Abrantes” elogiava a atuação de ambos:
“Ambos perceberam a marosca que estava por detrás desta qualificação fantasiosa de uma conversa privada como atentado contra o Estado de direito. Ambos perceberam que a simples abertura de um processo contra o primeiro-ministro seria um grosseiro disparate, seria o pretexto abusivo e golpista para personagens como Manuela Moura Guedes ou José Maria Martins se constituírem assistentes e montarem um número de circo na comunicação social, em benefício de forças que não conseguem lutar com lealdade na arena democrática”. (Independência e autonomia, 31 de dezembro, 2009).
A vitória de Passos e o declínio de José Sócrates
As eleições de 2011, que resultariam na queda de José Sócrates, marcaram uma intensa batalha na blogosfera entre os dois lados da barricada: nos blogues afetos ao PSD e a Pedro Passos Coelho, orquestravam-se ataques contra os socialistas e contra o então primeiro-ministro; nos blogues pró-Governo, fazia-se exatamente o inverso. O Câmara Corporativa e “Miguel Abrantes” desempenharam um papel importante neste processo: o mês que antecipou a corrida eleitoral, em maio, foi o período de maior atividade do blogue, com 515 publicações. Passos era invariavelmente retratado como impreparado e súbdito de Angela Merkel.
Todos os temas em discussão na campanha eram apaixonadamente analisados no blogue, sempre a favor da atuação do Governo. Os comentadores que defendiam a posição do PSD e de Pedro Passos Coelho eram criticados com violência. Em contrapartida, todos os que defendiam a posição dos socialistas tinham espaço de destaque. Mas José Sócrates acabaria por perder as eleições.
O Câmara Corporativa sobreviveu, mas sem a intensidade anterior. Continuavam os ataques acutilantes ao PSD, mas sem o mesmo alcance. A blogosfera também foi perdendo influência. Passos foi sempre tratado como “alegado primeiro-ministro” e Paulo Portas como “vice-pantomineiro-mor”. As crises governamentais eram celebradas efusivamente e alimentadas na rede. As primárias socialistas acabariam por animar novamente o blogue: António José Seguro era o alvo a abater — José Sócrates nunca o viu como um aliado.
“Três anos de oposição confirmaram o vazio de ideias. Três meses de campanha para as primárias estragaram a imagem do bom rapaz. Ontem, no último debate na RTP, António José Seguro confirmou amplamente uma e outra coisa, pondo em evidência que não reúne as condições políticas e psicológicas para dirigir um porta-aviões como o PS. O ainda secretário-geral encerra uma carreira da pior maneira possível: não hesitou em lançar lama indiscriminadamente sobre o partido de que faz parte, aproveitando uma lamentável entrevista para tentar conspurcar o seu opositor, como se António Costa fosse responsável pelas palavras ou pelos actos daqueles que se dizem seus apoiantes” (Efeito de boomerang, 24 de setembro, 2014).
António Costa venceria as eleições primárias do PS. Meses antes, a 22 de novembro de 2015, com a detenção de José Sócrates no aeroporto de Lisboa, começava a Operação Marquês e o início do período mais difícil da vida do ex-primeiro-ministro como protagonista político. A partir daí, o Câmara Corporativa passou a fazer eco de todas as manifestações de apoio a José Sócrates: todos os artigos de opinião que defendiam o ex-primeiro-ministro e/ou criticavam abertamente o modo de atuação do juiz Carlos Alexandre e do procurador Rosário Teixeira tinham lugar de destaque na página — de Miguel Sousa Tavares a Clara Ferreira Alves e Fernanda Câncio, passando por Augusto Santos Silva, Pedro Silva Pereira ou Vital Moreira; as várias declarações públicas de Sócrates e da defesa do ex-secretário-geral do PS eram publicadas na íntegra; os meios de comunicação social que publicavam dados sobre a investigação eram criticados, como o Correio da Manhã e a “sua doentia perseguição a José Sócrates”; e “Miguel Abrantes” continuava a escrever textos a defender o socialista, alimentado a tese, partilhada por Sócrates, de que esta era uma “campanha suja” e política contra o antigo primeiro-ministro.
Uma das publicações mais relevantes de “Miguel Abrantes” no âmbito da Operação Marquês é de 18 de outubro de 2015, altura em que o autor compara o ex-primeiro-ministro ao ativista angolano Luaty Beirão — o mesmo José Sócrates comparar-se-ia a Luaty Beirão dois dias depois, numa das primeiras intervenções públicas que fez depois da detenção.
“O respeito pelos Direitos Humanos é um dos critérios fundamentais para averiguar se determinado país é, verdadeiramente, um Estado de direito. Mas a defesa dos Direitos Humanos não pode ser uma atividade intermitente ou ao sabor das conveniências. Convém, porém, lembrar que, em Portugal, Direitos Humanos básicos continuam a ser violados quotidianamente, num ambiente de lamentável apatia cívica. É o caso, por exemplo, da crescente pobreza infantil. Ou da detenção de cidadãos, durante meses e meses, sem que contra eles seja formulada qualquer acusação. A indiferença com que uma sociedade lida com o desrespeito dos Direitos Humanos no seu seio fragiliza enormemente qualquer protesto que essa mesma sociedade possa fazer acerca da violação dos Direitos Humanos noutros países. Convém não esquecer”. (Direitos Humanos, 18 de outubro, 2015)
Quando anunciou o fim do blogue, em dezembro de 2015, “Miguel Abrantes” justificava-se com o início do novo ciclo: “Com um Cavaco com os pés para a cova, um Passos à nora para conseguir afivelar uma nova máscara, enquanto tira proveito dos encontros do Partido Popular Europeu para fazer queixas à madrinha, e um Portas, esfarrapadas todas as suas bandeiras (pescadores, lavradores, combatentes, contribuintes, pensionistas, etc.), a ultrapassar largamente o prazo de validade, a direita faz um compasso de espera que poderá desembocar numa remodelação dos líderes”.
E terminava: “Neste contexto, virar a página não será uma tarefa sem riscos. O Governo merece, por isso, ter direito a um estado de graça. O Câmara Corporativa aproveita para fazer um intervalo. Tendo em conta a infinitesimal participação do blogue para arriar a direita, perdoe-se alguma fanfarronice: missão cumprida”.
Em janeiro de 2017, o jornal i trazia novos dados: durante o verão de 2014, meses antes de José Sócrates ter sido detido, o ex-primeiro-ministro tinha decidido escrever um livro para repor a sua narrativa e para provar que não tinha sido ele o responsável pela crise portuguesa e pela intervenção da troika. De acordo com as comunicações intercetadas pelos investigadores, referidas pelo jornal, António Costa Peixoto (“Miguel Abrantes”) terá sido o homem escolhido para ajudar a escrever o livro.
Quando foi interrogado pelos investigadores do Ministério Público, António Costa Peixoto revelou que os pagamentos de Rui Mão de Ferro cessaram na altura da detenção de José Sócrates e de Carlos Santos Silva. No mesmo dia em que foi noticiado o início da Operação Marquês, Peixoto terá ligado a Mão de Ferro para confirmar a detenção de Santos Silva. Perante isso, solicitou ao seu interlocutor que interrompesse o pagamento da avença mensal, ao que Rui Mão de Ferro, segundo Peixoto, terá respondido que também já não estava em condições de continuar a fazer os mesmos pagamentos. José Sócrates sempre negou esta versão.
“Miguel Abrantes” não era o único autor que alimentava o blogue. Havia, de resto, vários pseudónimos a escrever em simultâneo — como Afonso Mesquita, João Magalhães, João Reinhart e José Soares. E é esse o rasto que o Ministério Público está a seguir: quem eram os outros bloggers alegadamente avençados por Carlos Santos Silva ou José Sócrates?