Discurso de Pedro Sánchez
Como sabem, na passada quinta-feira escrevi uma carta dirigida a toda a cidadania. Nela, ponderava se valia a pena suportar o assédio que desde há dez anos sofre a minha família em troca de presidir ao governo de Espanha. Hoje, após estes dias de reflexão, tenho a resposta clara. Se aceitamos todos como sociedade que a ação política permita o ataque indiscriminado a pessoas inocentes, então não vale a pena. Se consentimos que a contenda política justifique o exercício de ódio, a insídia e a falsidade destinada a pessoas terceiras, então não vale a pena. Se permitimos que as mentiras mais grosseiras substituam o debate respeitoso e racional baseado em provas, então não vale a pena. Por muito alto que seja, não há honra que justifique o sofrimento injusto das pessoas.
O chefe do governo espanhol, Pedro Sánchez, começa o discurso à nação desde o Palácio da Moncla a lembrar a carta à cidadania que escreveu e publicou na passada quarta-feira, em que abria a possibilidade de demitir-se. Na missiva, o socialista lembrava o caso judicial aberto por um tribunal de Madrid contra a mulher, Begoña Gómez, suspeita de tráfico de influências e corrupção. Ora, o líder espanhol começa por recordar que este “assédio” à família não é novo e faz referência a “dez anos” — ou seja, desde 2014, em que se tornou secretário-geral do PSOE e não líder do governo (isso foi apenas em 2018). Adicionalmente, Pedro Sánchez reitera a inocência da mulher e sublinha que o processo judicial em que está envolvida se baseia em “mentiras grosseiras”, que o fizeram repensar “se vale a pena” continuar a exercer o cargo que ocupa.
Tal como anunciei, necessitava de parar e refletir sobre tudo. E eu sei que a carta que enviei pôde desconcertar, porque não obedece a nenhum cálculo político. E está certo.
Sobre a especulação que esta ameaça de demitir-se foi apenas tática política, Pedro Sánchez recusa esse cenário. Desde a passada quarta-feira, os adversários acusavam o socialista de querer obter ganhos políticos, principalmente nas eleições catalãs, que ocorrem a 12 de maio. Ou seja: com esta dramatização do discurso, o presidente do governo espanhol esperava cerrar fileiras na Catalunha, diminuindo o peso político do líder do Junts, Carles Puigdemont — aliado no Congresso nacional, mas adversário na região. Mesmo que Pedro Sánchez tenha garantido que não fez isto por tática política, certo é que a campanha catalã se centrou praticamente sobre a permanência ou não do chefe de governo, passando as exigências e ameaças de Carles Puigdemont para segundo plano. Uma vitória expressiva na Catalunha seria bastante importante para o líder espanhol: não só veria validada nas urnas a lei da amnistia (passando a ser um argumento para a “pacificação da sociedade”), como também fragilizaria o líder do Junts, dando-lhe menos margem de manobra para fazer exigências na megacoligação que o socialista montou após as eleições de 23 de julho. Neste momento, a lei da amnistia, destinada a perdoar todos os envolvidos em ações independentistas na Catalunha — incluindo os autores do referendo pela autodeterminação catalã em 2017, onde se inclui Puigdemont — está ainda a ser ultimada.
Sou consciente de que mostrei um sentimento que num político não é costume ser admissível. Reconheci perante aqueles que procuram quebrar-me, não por quem sou, mas pelo que represento, que dói viver nesta situação, que não desejo a ninguém. Também porque seja qual for a nossa função, a nossa responsabilidade laboral, vivemos numa sociedade que nos ensina e que nos exige que continuemos a todo o custo. Mas às vezes a única forma de avançar é parar, refletir e decidir com clareza para onde queremos caminhar.
Nesta passagem, Pedro Sánchez procura bipolarizar o debate político e tentar conetar-se emocionalmente com os espanhóis:. “Aqueles que o procuram quebrar” — leia-se, a direita — não mostram qualquer piedade em atacá-lo. Além disso, o chefe do governo espanhol, ciente de que esta pausa para refletir pode debilitá-lo politicamente, tenta argumentar que estes cinco dias foram essenciais para tomar uma decisão clara sobre a sua permanência no cargo.
Atuei com uma convicção clara. Ou dizemos basta, ou esta degradação da vida pública determinará o nosso futuro, condenando-nos como país. É certo que tomei este passo por motivos pessoais, mas são motivos que todos podem entender e sentir como próprios, porque respondem a valores fundamentais de uma sociedade solidária e familiar como é espanhola. Porque isto não é uma questão ideológica. Estamos a falar de respeito, de dignidade, de princípios que estão muito mais além das opiniões políticas e que nos definem como sociedade. Isto não tem nada a ver com o legítimo debate entre opções políticas. Tem a ver com as regras do jogo: se consentimos que mentiras deliberadas dirijam o debate político, se obrigamos às vítimas dessas mentiras a ter que demonstrar a sua inocência contra a regra mais elementar do nosso Estado de direito, se permitimos que se relegue o papel da mulher ao âmbito doméstico, tendo que sacrificar a sua carreira profissional em benefício da do marido. Se permitimos que a irracionalidade se converta em rotina, a consequência será um dano irreparável à nossa democracia.
Pedro Sánchez tenta novamente conetar-se emocionalmente com os espanhóis e colar os adversários políticos a um ataque através da Justiça. O chefe do governo espanhol tenta passar a mensagem que toda a população pode entender os “valores fundamentais” — “o respeito e a dignidade” — que motivaram o seu período de reflexão, não sendo uma “questão ideológica”. Dito doutro modo, o líder espanhol reitera que ele e a mulher estão a ser vítimas de uma cabala e que é necessário, para Pedro Sánchez, que os espanhóis vejam o quão flagrante é esta injustiça. Numa fase em que a sociedade espanhola está cada vez mais dividida, o socialista parece tentar reconciliar-se com alguns eleitores que se sentem desagradados com o atual rumo do partido — e até com os espanhóis em geral. Neste sentido, o socialista relembra novamente o caso da mulher e sugere que Begoña Gómez tem direito a ter uma carreira — e não deve “relegar-se ao âmbito doméstico”, em mais uma farpa à direita.
Exigir resistência incondicional aos líderes alvo dessa estratégia é pôr o foco nas vítimas e não nos agressores. E confundir liberdade de expressão com liberdade de difamação é uma perversão democrática de desastrosas consequências. Portanto, a pergunta é simples: queremos isto para Espanha? A minha mulher e eu sabemos que esta campanha de descrédito não parará. Já a sofremos há dez anos. É grave, mas não é o mais relevante. Podemos com ela.
Num tom novamente emocional, o secretário-geral socialista volta a criticar o que diz ser a difamação de que é alvo. No entanto, contrariamente a quarta-feira — em que falava num “ataque sem precedentes e grave” que o obrigaram à reflexão —, Pedro Sánchez já parece estar disposto a aguentar as mentiras que, refere o socialista, estão a ser difundidas pela direita e pela comunicação social alinhada com o PP e com o Vox. É uma mudança bastante significativa na argumentação do socialista em apenas cinco dias: passa de um cenário em que se mostra completamente saturado do pântano judicial em que foi envolvido para assumir-se como um resistente.
O importante, e o verdadeiramente transcendente, é que queremos agradecer de coração às manifestações de solidariedade e de empatia que recebemos, de todos os âmbitos sociais. Logicamente, vão permitir-se um agradecimento especial ao meu querido Partido Socialista. Em todo o caso, obrigado a esta mobilização social que influiu decisivamente na minha reflexão e que volto a agradecer.
Apesar de se ter isolado no Palácio da Moncla com a família nos últimos cinco dias, Pedro Sánchez esteve atento ao que se passava na atualidade política. O socialista argumenta que um dos motivos para permanecer no cargo se deve às manifestações de apoio nas ruas, em que participaram milhares de pessoas durante os últimos cinco dias. Agradece particularmente ao PSOE, mas realça que a “mobilização social” foi muito além dos socialistas. Ou seja, Sánchez quer sublinhar que não foi apenas entre os seus correligionários que foram cerradas fileiras; foram também entre os seus parceiros de governo (onde se inclui o Sumar e os independentistas catalães) e alguns espanhóis moderados.
Quero partilhar com todos o que finalmente decidi. Informei previamente o chefe de Estado esta mesma manhã. Decidi continuar e continuar com mais força, se possível, à frente da presidência do governo espanhol.
Pedro Sánchez menciona, de forma dificilmente inocente, o nome do Rei Felipe VI. Mostrando-se como líder com sentido de Estado, o socialista quis reforçar a importância da sua decisão e a sua legitimidade para governar. No entanto, para o líder do Partido Popular (PP), Alberto Núñez Feijóo, o socialista instrumentalizou a figura do monarca, usando-o “como ator secundário no seu último filme”.
Esta decisão não supõe um ponto final, é um ponto final parágrafo. Garanto. Por isso, assumo ante todos o meu compromisso de trabalhar sem descanso, com firmeza e serenidade, pela regeneração pendente da nossa democracia e pelo avanço e a consolidação de direitos e liberdades. Assumo a decisão de continuar com mais força, se possível, à frente da presidência do governo de Espanha.
Esta passagem sugere que Pedro Sánchez se sente mais forte politicamente após este episódio. Contrariamente ao seu estado de espírito abatido na semana passada, o socialista mostra-se disponível para “trabalhar sem descanso”, desvanecendo todas as dúvidas que tinha sobre se iria continuar no cargo. É, novamente, uma mudança de posição drástica face aos argumentos apresentados na passada quarta-feira e dão robustez à tese de que terá sido uma estratégia política para ganhar capital político antes das eleições catalãs.
Só há uma maneira de rever esta situação: que a maioria social, como fez nestes cinco dias, se mobilize numa aposta pela igualdade e pelo senso comum, colocando um travão à política da vergonha que sofremos há demasiado tempo, porque isto não é apenas [sobre] um dirigente em particular. Isso é o menos. Trata de se decidir que tipo de sociedade queremos ser. E acredito que o nosso país precisa de fazer esta reflexão coletiva. De facto, durante estes cinco dias, já começamos a fazê-la.
Mobilizada com a possibilidade de demissão do chefe do governo, Pedro Sánchez espera que esta onda de apoio se mantenha — e que dirija a sua revolta contra a “política de vergonha”. Indiretamente, o socialista volta a bipolarizar a cena política espanhola e apresenta-se como o representante de uma determinada fação: a que, a seu ver, é a que está do lado da razão. Assim, o socialista tenta distanciar-se do Partido Popular, que acusa de ser parte ativa neste processo de difamação. E há ainda uma farpa à Justiça, que precisa de fazer também uma “reflexão”, no que diz respeito à forma como tem gerido o processo judicial de Begoña Gómez.
Uma reflexão coletiva que abra caminho à limpeza, à regeneração e ao jogo limpo. Já estamos há demasiado tempo a deixar que o lamaçal colonize impunemente a vida política, contaminada por práticas tóxicas inimagináveis há uns anos. Apelo, em consequência, à consciência coletiva da sociedade espanhola. Uma sociedade que, desde o acordo generoso, soube sobreviver às terríveis feridas do pior dos seus passados
De forma mais explícita, Pedro Sánchez apela o poder judicial não se deixe afetar pelo lawfare — ou seja, a politização da Justiça. As referências às “práticas tóxicas inimagináveis” são uma farpa ao juiz de instrução de Madrid que abriu o processo contra Begoña Gómez. O magistrado aceitou uma queixa de uma associação civil que algumas acusações de ter ligações políticas — a Manos Limpias — que se baseia em artigos na comunicação social, alguns deles que Sánchez dizem ser enviesados. Ora, o socialista denunciou, na carta à cidadania, que existe uma “galáxia de meios digitais” que inventam notícias para denegrir a sua imagem. E não é só o processo da mulher de Sánchez; também envolve outros episódios, como o caso Koldo (em que um antigo assessor do ex-ministro dos Transportes, Koldo García, terá beneficiado de uma rede de negócios na compra de máscaras). E não só no PSOE; também no PP existem suspeitas de corrupção, particularmente num caso de fraude fiscal que envolveu o marido da presidente da comunidade autonómica de Madrid, Isabel Díaz Ayuso. Neste ambiente, o chefe do governo espanhol pede à população que se indigne contra certas práticas judiciais. E evoca, no coletivo imaginário espanhol, a imagens da Guerra Civil Espanhola e a ditadura de Francisco Franco.
Uma sociedade que conseguiu vencer de maneira exemplar todos os desafios democráticos que sofreu, que superou com êxito uma pandemia […] e o difícil contexto geopolítico que sofre com as guerras no Médio Oriente e na Ucrânia e que vive um muito bom momento económico e respira paz social. Uma sociedade que espantou o mundo pela sua aceitação entusiasta dos direitos e liberdades, passando de ser um país escuro a um referente internacional de liberdades de democracia, de progresso e convivência
No apelo à sociedade espanhola, o chefe do governo lembra a obra feita durante os seus mandatos: a gestão da pandemia e a maneira como Espanha geriu diplomaticamente as guerras. Além disso, puxando dos galões, frisa o “avanço de direitos” que o país empreendeu recentemente, tal como a eutanásia. Noutra menção à ditadura de Franco, o socialista compara aqueles tempos — um “país escuro” — a um Estado que está hoje em dia na vanguarda “da defesa da democracia e do progresso”.
Hoje peço à sociedade espanhola que volte a ser um exemplo, inspiração num mundo convulso e ferido. Porque os males que nos afetam não exclusivos de Espanha. Formam parte de um movimento reacionário mundial que aspira impor a sua agenda regressiva mediante a difamação, a falsidade, o ódio e o uso a medos e a ameaças que não têm correspondência nem com a ciência, nem com a racionalidade
Após as eleições de 23 de julho, há algo que Pedro Sánchez se orgulha: que a extrema-direita espanhola, representada pelo Vox, nunca tenha conseguido governar Espanha. Este é um dos principais motivos pelo qual o socialista retrata Espanha como um “exemplo e uma inspiração” no mundo. Novamente num ataque ao PP, que admitiu coligar-se com o partido de Santiago Abascal após as eleições de 23 de julho, Pedro Sánchez fecha completamente a porta a uma solução de governação com a oposição, pois imporia uma “agenda regressiva”. Embora a situação governativa seja favorável à esquerda, esses “males” podem afetar Espanha. Tal como tinha feito na carta à cidadania, o secretário-geral do PSOE relaciona o “movimento reacionário mundial” com o processo judicial de que é alvo a mulher. Tentando novamente bipolarizar o discurso político, Pedro Sánchez acusa os adversários políticos de práticas que não têm “correspondência” nem na “ciência, nem na racionalidade”.
Mostremos ao mundo como se defende a democracia. Ponhamos fim a este lamaçal da única maneira possível: mediante a rejeição coletiva, serena e democrática, mais além de siglas e ideologias, que eu comprometo-me a liderar com firmeza como presidente do governo de Espanha. Obrigado
No final do discurso, Pedro Sánchez deixa mais ou menos claro que é o único capaz de liderar Espanha contra a extrema-direita, daí não se demitir — e é mais uma forma de bipolarizar e crispar o debate político em Espanha. Adicionalmente, tal como tinha feito anteriormente, o socialista volta a apelar aos espanhóis para que rejeitem coletivamente os “movimentos reacionários” — onde parece colocar quer Vox, quer PP — e que esse esforço vá “mais além de siglas e ideologias”. Isto é: que todos os cidadãos moderados se juntem e apoiem, sempre de forma “serena”, o projeto político que o socialista representa.