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MARIO CRUZ/EPA

MARIO CRUZ/EPA

O primeiro livro de António Lobo Antunes saiu há 40 anos. Como é que tudo começou?

“Memória de Elefante” marcou a estreia de António Lobo Antunes, escritor que muitos apontam para Nobel. Editores, amigos e académicos lembram histórias inéditas de 1979.

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Assírio Bacelar tem 80 anos, é editor de livros há mais de 47 e em 1976 fundou uma pequena editora que por estes dias merece ser recordada. No verão de 1979, foi a Vega quem publicou o primeiro romance de António Lobo Antunes, Memória de Elefante, a que se seguiu Os Cus de Judas, poucos meses depois. Aos 36 anos, um médico psiquiatra de um hospital de Lisboa iniciava uma vida literária que veio a tornar-se fenomenal, a ponto de muitos a quererem distinguir com o Nobel da Literatura – e este ano, com a Academia Sueca a divulgar não apenas um, mas dois laureados, o que acontecerá já a 10 de outubro, regressa a esperança de que Lobo Antunes seja um deles.

Quatro décadas passadas, Assírio Bacelar (que também esteve na génese da conhecida Assírio & Alvim, em 1972, com José Antunes Ribeiro e João Carlos Alvim), revela pormenores sobre como lhe chegou o manuscrito de Memória de Elefante. E lamenta que o autor tenha acabado por se transferir para a Dom Quixote, em 1983, casa editorial onde se mantém. Mas há outras histórias.

Uma vez que Lobo Antunes prefere, para já, não dar entrevistas, o Observador pediu a editores, amigos e académicos que recordassem como começou ele a escrever, como foi recebido pelas editoras e o que se passou nos primeiros anos. Os depoimentos foram recolhidos e editados nos últimos dias.

O mote é a data redonda que se assinala e também o colóquio em Lisboa “António Lobo Antunes: 40 Anos de Vida Literária”, organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Dom Quixote. Aconteceu este sábado: o escritor francês Bernard-Henri Lévy, a professora universitária Maria Alzira Seixo e os médicos Daniel Sampaio e Nuno Lobo Antunes foram alguns dos convidados.

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A capa da edição original de “Memória de Elefante”, de 1979

Daniel Sampaio, amigo

“Conheci o António em 1973, quando ele regressou da Guerra Colonial. Tínhamos começado a fazer a especialidade em psiquiatria, no Hospital de Santa Maria. Eu sabia que ele escrevia e falávamos disso de vez em quando. Aliás, é muito curioso: na “Memória de Elefante”, consta uma descrição minha, uma personagem que está sempre a perguntar “quando é que escreves?”. De facto, eu incentivava-o muito a escrever. Em 1979, disse-me que tinha um livro pronto, mas não sabia o que fazer para ser publicado, e eu respondi que iria tratar do assunto. Como o meu primeiro livro era de 1978, já tinha contactos com editoras e peguei no manuscrito do António e levei-o a uma primeira editora e depois a uma segunda. Ambas recusaram.

A primeira, recusou porque achou a linguagem muito crua; a segunda, nem sei se chegou a ler, mas recusou pelo título, que era D’este Viver Aqui Neste Papel Descripto, uma frase que o António tinha tirado do poeta Ângelo de Lima.

Entretanto, um amigo nosso disse-nos que deveríamos tentar uma editora pequena, que tinha um editor com um grande sentido do que é oportuno. Foi assim que me dirigi ao Assírio Bacelar. Foi ele quem lançou o António Lobo Antunes. Mais tarde, tiveram um problema por causa das edições, mas o Assírio Bacelar foi o homem que pegou no livro e disse “sim, vou publicar”. Não gostou do título, falou com o António e o título mudou. O segundo livro publicado, Os Cus de Judas, na verdade chamava-se Memória de Elefante. O António pegou nesse título e deu-o ao que veio a ser o primeiro livro publicado e que originalmente teria o título de um verso de Ângelo de Lima.

“Acho que ele sempre foi mais escritor do que médico”, diz Daniel Sampaio

Não tive um papel relevante, nem o quero reivindicar, embora o António generosamente recorde estas histórias. O meu único mérito foi a persistência. O António, naquela altura, jamais iria com um manuscrito a uma editora, porque tinha horror a ser recusado.

Acho que ele sempre foi mais escritor do que médico. Tinha o sonho de ser um escritor conhecido, de fazer melhor, de apurar a escrita. No entanto, é preciso dizer que foi um bom psiquiatra e fez toda a carreira no Miguel Bombarda. Tinha muito talento para trabalhar como terapeuta de grupo e fez uma vasta clínica. A certa altura teve de abandonar, com a pressão da escrita e do reconhecimento internacional.”

Assírio Bacelar, editor dos primeiros livros

“Quem me apresentou o original de Memória de Elefante foi um psicólogo chamado Luís Soczka, amigo do psiquiatra Daniel Sampaio. Por o livro ter sido recusado pela Bertrand, com a qual ele e Daniel Sampaio colaboravam, esse psicólogo, sabendo que eu me preparava para criar uma coleção de autores portugueses [O Chão da Palavra], trouxe-o consigo e deu-mo a ler. O que me levou a decidir publicar foi o facto de ter gostado do livro e me parecer que o modo de escrever de António Lobo Antunes trazia sangue novo à literatura portuguesa. Dos autores que mais se vieram a projetar na nossa literatura, tivemos também no catálogo da Vega o João de Melo e o Mário de Carvalho.

No mesmo ano, em 1979, publicámos Os Cus de Judas. O êxito imediato e surpreendente do primeiro livro, e o muito que o autor tinha na gaveta e queria publicar, foram uma razão para termos editado dois livros seguidos. De Lobo Antunes, saíram também pela Vega Conhecimento do Inferno [1980] e Explicação dos Pássaros [1981], tendo tido, cada um deles, nove edições.

"A Feira do Livro era muito frequentada à noite, ao contrário do que acontece hoje, e lembro-me de haver noites em que não se conseguia fechar, por causa das filas intermináveis de pessoas a pedirem autógrafos ao António."
Manuel Alberto Valente, primeiro editor de Lobo Antunes na Dom Quixote

Os temas de Os Cus de Judas e O Conhecimento do Inferno, Guerra Colonial e loucura, fui eu que lhe sugeri, por o autor ter vivido o drama dessa guerra em Angola e por trabalhar em Portugal num hospital de alienados mentais [Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa]. Em 1983, Lobo Antunes passou a publicar pela Dom Quixote. Não há editor que não lamente perder um bom autor. E a fidelidade de um autor a quem o descobre e lhe dá vida é coisa rara no nosso país e em todo o lado.”

Manuel Alberto Valente, primeiro editor de Lobo Antunes na Dom Quixote

“Entrei para as Publicações Dom Quixote em 1981, a seguir à morte da Snu Abecassis, que tinha sido fundadora e diretora editorial. A família quis vender a empresa a alguém que respeitasse a memória e a linha editorial que a Snu tinha criado e, por um acaso, quem acaba por comprar é o Nelson de Matos, que foi pagando a compra com os resultados futuros da própria empresa. É então que entro para diretor editorial.

Em determinado momento, não recordo já a data ou o local, fui a uma festa em Lisboa, levado por uns amigos, e aí estava o Lobo Antunes. Apesar do sucesso que tinha feito a saída dos primeiros livros, o António não era uma pessoa que toda a gente conhecesse. Eu não o conhecia, foi aí que falámos pela primeira vez. Disse-lhe qualquer coisa como “você merecia estar numa editora com mais peso e prestígio do que a Vega”. Fiz o paleio normal de um editor e ele dispôs-se a conversar sobre isso.

“Os Cus de Judas”, 1979

Dias mais tarde, marcámos uma reunião, já com o Nelson de Matos presente, e a partir daí ficou acordado que a obra passaria para a Dom Quixote, incluindo os livros que já tinham saído pela Vega. Quisemos trabalhar com ele porque se percebia desde logo que estava ali um grande escritor. Já era e continuaria a ser. Para nós, que estávamos a construir um catálogo de autores portugueses, foi ouro sobre azul.

A popularidade dele foi imediata, desde os primeiros anos. Ainda hoje, o António é dos poucos escritores que levam as pessoas a fazer filas na Feira do Livro de Lisboa, mas nada comprável com o que acontecia naquela época. Era uma loucura. A Feira do Livro era muito frequentada à noite, ao contrário do que acontece hoje, e lembro-me de haver noites em que não se conseguia fechar, por causa das filas intermináveis de pessoas a pedirem autógrafos ao António.”

Maria da Piedade Ferreira, atual editora de Lobo Antunes

“Estranhamente, não conheci o António em Portugal, mas em França. Foi-me apresentado num Salão do Livro de Paris pelo editor francês dele, Christian Bourgois, provavelmente em 1996, quando da edição francesa de Manual dos Inquisidores. Mas só comecei a trabalhar com ele em 2009, depois de a editora Tereza Coelho ter morrido. Ele pediu-me que me ocupasse da obra, foi no ano em que saiu Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar?.

Como leitora, tive a mesma impressão inicial que quase toda a gente teve no fim da década de 70: os primeiros livros eram muito inovadores e rompiam com a literatura politizada da época. A não-ficção política e mesmo a ficção em Portugal eram ainda muito marcadas pelo contexto do pós-25 de Abril.

Nessa fase, trabalhei na Bertrand, que curiosamente foi uma das editoras em que o manuscrito de Memória de Elefante foi entregue, antes de chegar à Vega. Mas ninguém pegou no livro. A Bertrand era a maior editora de todas, uma empresa enorme, e, tal como outras, passou por uma crise e não tinha uma estratégica. Vivia-se um dia a dia difícil na editora e penso que terá sido por isso que o livro passou despercebido, se bem que não tenha sido eu uma das pessoas que leram o original.

"Os primeiros romances de Lobo Antunes foram recebidos de forma muito díspar. Tiveram grande aceitação por parte dos leitores, mas rejeição generalizada da crítica, o que hoje já não acontece. Com os anos, a obra tornou-se consensual entre críticos, tanto em Portugal como lá fora, enquanto os leitores passaram a ter alguma dificuldade em conseguir entrar."
Norberto do Vale Cardoso, revisor filológico

O António acabou por se estrear numa pequena editora, a Vega. Nesse aspeto, teve um início comum. A pequena editora é a que está mais atenta, porque recebe menos manuscritos e arrisca. Depois, inevitavelmente, torna-se pequena para um autor com muito sucesso, que precisa de ser promovido internacionalmente e passa para uma editora com mais contactos e meios. No meu caso, tem sido um trabalho muito intenso.”

Norberto do Vale Cardoso, revisor filológico

“A minha tese de doutoramento, em 2007, foi sobre a obra de Lobo Antunes, em particular o tema da Guerra Colonial, que surge nos primeiros romances. Também fui revisor filológico dos três últimos livros, incluindo A Outra Margem do Mar, agora publicado. Um revisor filológico procura dar coerência à obra, para que, por exemplo, palavras ou expressões próprias do autor apareçam escritas com a mesma ortografia, de livro para livro.

Creio que os primeiros romances de Lobo Antunes foram recebidos de forma muito díspar. Tiveram grande aceitação por parte dos leitores, mas rejeição generalizada da crítica, o que hoje já não acontece. Com os anos, a obra tornou-se consensual entre críticos, tanto em Portugal como lá fora, enquanto os leitores passaram a ter alguma dificuldade em conseguir entrar.

No princípio, tínhamos romances muito diretos e explícitos, até com uma linguagem oralizante, mas hoje as coisas passaram a flutuar na obra de Lobo Antunes, já não se encontra uma linha narrativa fixa, o nome das personagens e a ordem dos acontecimentos são mais herméticos.

“Conhecimento do Inferno”, de 1980

Note-se que no romance Até que as Pedras se Tornem Mais Leves que a Água, de 2017, ele fez uma espécie de correção de Os Cus de Judas, o segundo livro. Há um regresso a Angola e ao tema da guerra, com muitas ideias e até frases parecidas às do livro de 1979. Não posso garantir que ele tenha tido essa intenção, mas comparei as duas obras e diria que Lobo Antunes corrigiu o segundo livro em 2017.

As personagens anómalas, a paisagem de Lisboa, África, a divagação, tudo isso já estava nos livros iniciais, incluindo Conhecimento do Inferno. Acho que uma das riquezas de Lobo Antunes é ter uma obra local, é isso que a torna global. Ao pegar no que é pitoresco, único e exclusivo, o autor acabou por se singularizar. Se o arranque da vida literária tivesse sido com outros temas, ainda que com o mesmo tipo de linguagem, talvez não tivesse tido o mesmo impacto junto dos leitores. Foram os leitores que lhe deram o impulso inicial.”

Lídia Jorge, escritora

“Os meus primeiros três livros saíram pelas Publicações Europa-América e em 1988 passei para a Dom Quixote, já o Lobo Antunes era autor da casa. Recordo-me de que muitos leitores tinham a perceção de que ele era uma voz literária absolutamente singular. Ao mesmo tempo, alguma crítica exprimia um sentimento de estranheza. Falámos quando ele publicou As Naus [1988] e lembro-me de que estava desgostoso. Se estou a interpretar bem, a crítica entendia que o Lobo Antunes tinha um estilo entornado e que a parte narrativa, o ‘plot’, surgia muito disperso. Havia um desencontro entre o leitor crítico e o leitor comum.

Pela carreira que tem e pela força estilística – digo ‘estilística’ no melhor sentido do termo –, Lobo Antunes é quem vai à frente, mas do ponto de vista da temática penso que se inscreve numa geração. Tem um conceito de si mesmo de grande singularidade e por vezes diz que não se parece com ninguém. É verdade, mas há laços com uma geração de escritores, na qual me incluo.

Lídia Jorge: “No caso do Lobo Antunes, a fortuna dele foi ter casado perfeitamente essa experiência modernista, que ampliou, com uma temática absolutamente localizada”

Nas décadas de 70 e 80, esboçavam-se duas correntes: uma, achava que falar da portugalidade era arcaico e procurava temas supostamente mais universais; outra, queria confrontar a história do país e fazer um enfrentamento da memória recente. Lobo Antunes integrou esta segunda corrente.

Ainda hoje há cinco ou seis autores que prosseguem em torno dessa experiência fortíssima. Juntámos o que era a experiência da portugalidade a uma escrita moderna, oriunda do modernismo da literatura do início do século XX. No caso do Lobo Antunes, a fortuna dele foi ter casado perfeitamente essa experiência modernista, que ampliou, com uma temática absolutamente localizada.”

Sérgio Guimarães de Sousa, investigador na área da literatura portuguesa

“A minha ligação a Lobo Antunes tem uma data precisa: fevereiro de 2006, logo depois de ter defendido na Universidade do Minho a minha tese doutoramento, sobre Camilo Castelo Branco. No dia a seguir, reuni-me com um dos elementos do júri, a professora Maria Alzira Seixo, que estava a trabalhar num dicionário sobre a obra de Lobo Antunes. Fui convidado a integrar a equipa e comecei a ler intensamente a obra, de que até então conhecia apenas dois ou três títulos. Desde então, passei também a debruçar-me sobre ele de forma ensaística.

Nos primeiros livros, Lobo Antunes foi uma voz perfeitamente nova, ou talvez a voz que faltava na nossa literatura. Estávamos praticamente no início do período democrático e a sociedade esperava um escritor que falasse da Guerra Colonial como ele falou. Até então, o tema aparecia nos livros como elegia patriótica empastelada. Ele fez um corte. Foi o primeiro a usar entre nós uma linguagem nua e crua, a recorrer a temas obscenos, a abordar a realidade traumática da Guerra Colonial. Na linha de alguém que o terá marcado, como o escritor francês Louis-Ferdinand Céline, Lobo Antunes apresentou a realidade sem paninhos quentes.

"Com os anos, a escrita tornou-se rarefeita, os adjetivos foram desaparecendo, a frase foi-se tornando muito elíptica e cortada, mas também muito mais cirúrgica. Penso que ele sempre foi um escritor em busca de uma utopia, ou seja, do absoluto literário, da perfeição expressiva."
Sérgio Guimarães de Sousa, investigador na área da literatura portuguesa

Memória de Elefante é o percurso de um dia na vida de uma personagem, ironicamente um médico psiquiatra, a braços com uma depressão, embebido de memórias pessoais e culturais. Tanto aí como no livro seguinte, Os Cus de Judas, a escrita já era densa, mas tínhamos uma voz narrativa, era possível acompanhar o curso do texto. Pautava-se sobretudo por metáforas impossíveis, imagens curiosas e jogos de linguagem. Era quase barroco.

Com os anos, a escrita tornou-se rarefeita, os adjetivos foram desaparecendo, a frase foi-se tornando muito elíptica e cortada, mas também muito mais cirúrgica. Penso que ele sempre foi um escritor em busca de uma utopia, ou seja, do absoluto literário, da perfeição expressiva, do dizer aquilo que as palavras não alcançam. Cada vez é mais notório: aspira ao livro feito de silêncios, para atingir a expressividade máxima.”

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