Uma mulher e um homem, ambos na casa dos 30 anos, uma relação marcada por violência doméstica, psicológica e física, anos de desentendimentos até ao divórcio. Separam-se com um passado pesado. No meio, uma filha de sete anos. O caso arrasta-se em tribunal e a situação chega ao For2Parents, programa de intervenção da Escola de Psicologia da Universidade do Minho para pais separados ou divorciados, em conflito coparental, por questões relacionadas com a guarda ou custódia dos filhos. A filha estava sinalizada pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens.
O apoio começa com resistência dos dois lados. Numa das sessões, a mulher lê uma carta de uma criança, que podia ser a sua filha (mas não é), sobre como está a viver um divórcio. As palavras mexem com aquela mãe, que também é filha de pais separados, experiência ali revivida de perdas afetivas, o mergulho na sua própria história. Para ela, é o clique para perceber que é necessário encontrar formas de entendimento. E é precisamente isso o que acontece com a ajuda do projeto For2Parents, que ajuda ex-casais a identificarem questões relacionais e emocionais não resolvidas que interferem com o exercício efetivo da coparentalidade. Um caso com desfecho bem sucedido: a filha deixou de ser considerada uma criança em risco.
Nesta história — real — não há nomes divulgados nem referências geográficas e temporais, não há detalhes de idades, nem contextos profissionais. Os ex-casais que são acompanhados no For2Parents não querem reviver momentos difíceis, não querem voltar a lugares onde estiveram, não querem lembrar anos duros de discussões e de desentendimentos, de violência até. Não querem expor os filhos. Mesmo que, depois do apoio, estejam bem e as feridas saradas.
É essa uma das funções de Marlene Matos e Judite Peixoto: protegerem esses pais nesses silêncios, nessas vontades, nessa reserva maior de lhes salvaguardar a privacidade. As duas psicólogas, ambas doutoradas e especialistas em Psicologia da Justiça, são coautoras deste programa de apoio especializado que procura soluções para dificuldades e disfuncionalidades que os pais enfrentam, na condição de ex-casais. O objetivo é abrirem um contexto facilitador e de mudança coparental para proteger os filhos de desajustamentos emocionais e psicológicos, poupando trabalho ao sistema judicial e custos ao erário público. É uma intervenção na área da saúde mental, altamente exigente, altamente desafiante, altamente flexível que lida com várias camadas de diversas realidades.
“Antes de começarmos a trabalhar com os pais temos um mapeamento muito completo de como aquela separação trouxe consequências para a criança, senão não estariam aqui”, diz Marlene Matos. “A criança foi sinalizada, manifesta uma série de disfuncionalidades na escola e na família.” A intervenção centra-se nas causas, nos pais, no ensaio de possibilidades, em caminhos alternativos. Atuando nas causas e no conflito dos adultos chega-se aos sintomas e às repercussões nos filhos. “Se debelarmos a causa dos problemas e a coparentalidade dos pais altamente disfuncional, vamos ter crianças ajustadas psicologicamente, a beneficiarem de dois pais, em pleno funcionamento na sua parentalidade”, reforça a professora da Escola de Psicologia da Universidade do Minho.
“Acreditamos que a mudança cabe aos pais e a evidência que temos é que, mudando as dinâmicas relacionais, nomeadamente alterando o padrão de conflito, temos também alterações do ponto de vista do bem-estar, do ajustamento e do comportamento dos próprios filhos”, diz Judite Peixoto.
Os casos que chegam através dos tribunais
A intervenção é feita em salas da Escola de Psicologia da Universidade do Minho, no Campus de Gualtar, em Braga. Compartimentos sem muitos artifícios mobiliários, apenas o que deve estar. Ali há emoções à flor da pele. “Os pais centram-se no que são as emoções difíceis que resultam do divórcio. E uma das emoções mais difíceis é não só a perda, mas também, e muitas vezes, a hostilidade que sentem em relação ao outro”, conta Marlene Matos. São pais em transição que têm de se adaptar.
Cada caso é um caso. Os desentendimentos constantes sobre a guarda dos filhos, os boicotes permanentes, a marcação de visitas, a pensão de alimentos, as despesas, a escola, as férias, a forma de vestir, os estilos educativos. Há resistência e hostilidade. Raiva, frustração, depressão, quadros de ansiedade nos pais. E crianças, os filhos, a viver duas realidades distintas. Por vezes, com forças policiais à porta de casa para fazer prova judicial da recusa de visitas. Muita turbulência, bastante litigância, imensas disputas. A esmagadora maioria dos casos que chegam ao For2Parents, segundo as responsáveis, é encaminhada por tribunais, sobretudo da região Norte do país, por questões logísticas. São situações em fim de linha, sem soluções à vista, muitos já passaram por outras respostas e intervenções. Uma percentagem muito residual é de quem procura ajuda por iniciativa própria.
Há vários riscos nestas histórias. “Sabemos que a saúde mental destas crianças será afetada”, diz a psicóloga Judite Peixoto. “Falamos de perturbações mentais que podem surgir a médio e longo prazo, depressões, quadros de ansiedade, perturbações de personalidade, incapacidade de manter relações saudáveis e de confiança, vínculos mais inseguros, ambivalentes, até desorganizados, um potencial de risco de desajustamento psicológico.” O conflito de lealdade da criança, por exemplo, a necessidade de ser leal a um e a outro, à mãe e ao pai, é de uma enorme exigência.
As crianças precisam de segurança, estabilidade e confiança. É isso que diz a ciência. E um divórcio litigioso pode desestabilizar estes pilares e acarretar impactos a nível escolar, psicológico e relacional. Se deixar de conviver com pessoas que eram referência, todo o seu desenvolvimento pode ficar comprometido. “Muitas vezes, estes casos acabam na perda de figuras significativas que seriam importantes para um crescimento salutar e equilibrado”, diz Judite Peixoto. Deixar de ter acesso à avó, ao avô, aos tios e primos pode ser muito traumático. E, por vezes, há até irmãos separados por duas casas.
As dificuldades e as alternativas. O que dizer, o que fazer
O projeto For2Parents, marca nacional certificada pelo Instituto Português de Propriedade Industrial desde outubro de 2022, tem três fases, sessões semanais, quatro a cinco meses de duração, avaliação de continuidade até um ano através de questionários que os participantes preenchem e um questionário-entrevista final. A primeira etapa é individual, a segunda em grupo, a terceira com o ex-casal na mesma sala — a mesma onde Marlene Matos e Judite Peixoto nos falam do projeto.
Há uma fase pré-intervenção, presencial, com cada um dos elementos do ex-casal, para verificar se os casos encaminhados cumprem as condições para a inclusão no programa. Pais muito desajustados com o seu funcionamento, pouco comprometidos, incapazes de realizar atividades e tarefas da intervenção são excluídos. Situações de violência doméstica são analisadas caso a caso.
A fase 1 é motivacional. Três a cinco sessões individuais, hora e meia por semana, com intervenção focada nas soluções — e não nos problemas que os trouxeram ali. Em sessões separadas, os pais são convidados a selecionar fotografias dos filhos para partilharem com Judite Peixoto, leem relatos de crianças, que não os filhos, que estão a passar por um divórcio conflituoso. “Mesmo que venham com uma postura altamente defensiva, pouco colaborativa, resistentes, muito céticos e com poucas expectativas relativamente ao que vai acontecer, esta fase é altamente decisiva para entenderem que a resposta que terão aqui vai ter impacto efetivo nas suas vidas e na vida dos filhos”, explica Marlene Matos.
A fase 2 acontece em grupo. Seis sessões com as duas psicólogas que gerem dinâmicas, dois grupos com o máximo de seis pessoas cada um, os dois elementos de um ex-casal não estão na mesma sala. São grupos heterogéneos de idades, de sexo, formação, que residem e não residem com a criança. Partilham-se experiências, há histórias visualizadas em vídeos. Como é que a criança se está a sentir ao ser colocada numa determinada posição? Que consequências pode ter? O que dizer? Trabalham-se pensamentos, emoções e comportamentos. Aprende-se por observação e por identificação. Cada sessão desta fase tem uma dinâmica-problema, uma dificuldade exposta. Como a criança que é usada como espia para contar o que acontece na casa do outro, ou a criança mensageira que é aproveitada no conflito para queixas sobre a pensão de alimentos. Aqui é usado o programa “Crianças no Meio do Conflito (Children in Between)”, desenvolvido pela professora Filomena Gaspar, da Universidade de Coimbra, investigadora nas áreas da educação familiar e parental.
A fase 3 é de coordenação parental. São três sessões, no mínimo, ou cinco, no máximo, em que é desenhado um plano coparental com o ex-casal na mesma sala, à mesma mesa. Um plano ajustado à capacidade e à realidade de cada família para gerir responsabilidades que serão para sempre conjuntas. “Elaboramos o plano sobre as mais variadas áreas da vida da criança, desde a parte escolar, a vida social, os tempos parentais, eventos significativos, aniversários não apenas do pai e da mãe, que os acordos parentais contemplam, mas de outras pessoas significativas, como avós, tios ou primos”, especifica Judite Peixoto.
Nesse plano está tudo o que é importante para a vida da criança. Exemplo: se um filho está doente, como passar a informação ao outro, como fazer, o que fazer, por que via, direta ou indireta? Tudo isso está no plano. Ao longo do programa, há um trabalho de negociação e de consensualização permanentes. O filho quer ou não quer ser batizado? Quer ou não quer ir para o futebol? Quer ou não quer continuar no ballet?
Neste programa, diferentes intervenções, validadas cientificamente, encontram-se num único modelo. “Trazemos várias estratégias, várias abordagens, para conseguir responder a distintas necessidades dos pais”, diz Judite Peixoto. As regras são claras desde o início. “Estamos aqui para ajudar, nunca para penalizar, mas o esforço tem de ser de todos.” E o compromisso do ex-casal é essencial. “É um problema de saúde mental, é um problema de saúde pública, com custos muito significativas porque implica muitas respostas da comunidade e os próprios tribunais têm muita dificuldade em que estes casos saiam da sua esfera.”
Da resistência inicial à colaboração final
Marlene Matos e Judite Peixoto são os únicos elementos da equipa do For2Parents. O programa arrancou em 2018 com o processo de referenciação e triagem de ex-casais para o estudo experimental. As consultas arrancaram em 2019 e, até ao momento, foram realizadas 146. O sistema do programa mapeia o número de sessões ou consultas, não o número de casos atendidos. Ainda assim, pela média feita, terão sido cerca de vinte ex-casais, com idades entre os 25 e 50 anos, os que já beneficiaram do programa. Uma resposta gratuita no período experimental de validação do projeto, de 2018 a 2020, e paga desde então pelos pais. Custa 80 euros por sessão, 40 para cada um. Pagar faz parte do compromisso.
Judite Peixoto desenvolveu, implementou e testou o projeto cientificamente no âmbito do doutoramento, orientado por Marlene Matos. Na tese Divórcio e Conflito Coparental: da Caracterização à Intervenção Psicológica com pais Iitigantes há vários relatos de quem participou no programa. Uma mãe, de 47 anos, conta o seguinte: “A participação neste tipo de programas deveria ser obrigatória e não opcional porque nós, pais em conflito, temos muita dificuldade e muita resistência em acreditar em soluções, quando tanta coisa já falhou antes. Logo na primeira sessão, eu mudei a minha opinião sobre a intervenção. Eu senti que a psicóloga estava ali interessada no meu problema e com vontade de me ouvir e eu estava muito zangada e desapontada. Percebi logo que este programa era diferente de tudo aquilo em que eu já tinha participado e que me poderia trazer paz e estabilidade.”
Outra mulher mais nova, de 27 anos, também partilha a sua experiência. “A fase inicial, motivacional, foi fundamental para ultrapassar dúvidas e receios que eu trazia. E para ganhar a força necessária para mudar o problema. A atividade da ‘Carta de uma filha para os seus pais’ fez-me tomar consciência de que eu não queria que a minha filha passasse pela privação de não ter o pai na vida dela, como aconteceu comigo, e que eu seria melhor mãe sem este problema a dominar a minha vida.” E outra, de 45, revela que “se o programa não tivesse existido, eu e o pai do meu filho não teríamos uma forma alternativa de resolver os nossos problemas. Continuaríamos em tribunal. (…)”.
E os resultados? Como se avaliam? “Os pais não falam e não gostam um do outro, não estão disponíveis”, diz Judite Peixoto. “Mas, mesmo assim, são capazes de cumprir a sua parte, tendo por base aquele acordo. Essa é uma forma de sucesso: conseguirmos pais que passaram do conflituoso para o colaborativo.”
Mas, claro, para isso é fundamental o trabalho em rede. E os advogados dos pais devem contribuir para a procura de uma trajetória alternativa à que existe, não de conflitualidade. “Todo o sistema judiciário precisa de outro tipo de respostas, nomeadamente programas como este, para poder lidar com estes pais e, sobretudo, proteger estas crianças”, diz Marlene Matos. “Há processos judiciais mais altos do que a altura de crianças que estão nesses volumosos dossiês guardados em gabinetes de tribunais.”
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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