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O que João e Renée descobriram com os índios brasileiros está num filme para que todos aprendam

João Salaviza e Renée Nader Messora viveram nove meses sem eletricidade numa aldeia indígena do Brasil e de lá trouxeram um filme e uma exposição que os portugueses podem agora descobrir.

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Região Norte do Brasil: floresta, mato, quedas de água, uma aldeia indígena e uma personagem principal, Henrique Ihjãc Krahô, de 14 ou 15 anos, já casado e com um filho bebé. Ihjãc tem visões e chamamentos, começa a transformar-se em xamã, mas rejeita esse caminho e decide afastar-se da aldeia, ponde em causa uma importante cerimónia: a festa do fim do luto, momento em que se despedirá para sempre do pai que morreu há um ano. Eis o cenário do novo filme de João Salaviza e Renée Nader Messora, “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos”, a estrear em 12 salas portuguesas na quinta-feira, dia 14, resultado de nove meses de vivência no interior do Brasil. Já neste domingo, no Cinema Monumental, em Lisboa, o filme terá antestreia às 18h00, com a presença dos realizadores.

Pode ser documentário ou uma ficção, ou talvez seja ambas as coisas. “Ainda não temos uma resposta”, disseram João e Renée, em conversa recente com o Observador em Guimarães, enquanto ainda decorria a montagem de uma exposição inédita baseada no filme. Visivelmente ansiosos com esse trabalho que tinham entre mãos, falaram da exposição – “Carõ, Multidões da Floresta”, inaugurada a 23 de fevereiro no Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG), na cidade-berço, e patente até 9 de junho –, mas falaram sobretudo do novo filme. “É um híbrido, não conseguimos defini-lo nem como documentário nem como ficção”, concluiu João Salaviza.

“Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” é falado em português e krahô e parece retratar a busca de identidade: o miúdo que se faz adulto e recusa a responsabilidade de crescer. Pode também ser uma paleta de visões do mundo, uma reafirmação de valores tradicionais, da família e dos ritos, do papel da mulher na maternidade, ou eventualmente será uma crítica ao individualismo ocidental e à confiança absoluta no positivismo, uma consagração dos que estão fora do sistema e são vistos como mágicos, selvagens, pouco evoluídos.

[trailer de “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos”:]

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Traz o benefício do Prémio do Júri da secção Un Certain Regard do festival de Cannes do ano passado, onde teve estreia absoluta, mas poderá ainda colher frutos da popularidade alcançada por “Roma”, da produtora Netflix, que há dias valeu ao mexicano Alfonso Cuarón o Óscar de Melhor Realizador – longa-metragem com falas em espanhol e num dialeto nativo do México, o mixteco, e personagem principal interpretada por Yalitza Aparicio Martínez, de origem indígena mexicana.

Afina, quem é mais desenvolvido?

O filme nasce com uma premissa real: uma história que contaram aos realizadores de um miúdo fugiu da aldeia indígena para não se confrontar com um apelo espiritual que lhe apareceu. “Apropriámo-nos dessa história e retrabalhámo-la, mas ao mesmo tempo fizemos cenas com dispositivos de cinema clássico, com campo, contracampo, falas e ensaios. Não foram ensaios como noutros filmes, mas houve conversas prévias com o Ihjãc e a família”, explicou João Salaviza. “Depois, há cenas puras de documentário etnográfico e observacional, como no caso dos rituais. Aí a nossa intervenção foi nula, só filmámos.”

À escuta, Renée Nader Messora, acrescentou: “Se estávamos num contexto de cerimónia, neste caso na festa do fim do luto, que é um momento muito delicado, uma festa que surge no filme e que retomámos agora na exposição, jamais poderíamos intervir de uma maneira ficcional.” Por outro lado, acrescentou, a ficção cinematográfica, a alteridade, a representação, tudo isso “constitui um jogo que os krahô percebem muito bem”. Porque em vários ritos eles executam papéis no sentido teatral. “Acho que nunca tivemos a preocupação de enquadrar o filme num género ou de deixar de filmar de certa forma por termos definido à partida que seria um documentário ou uma ficção”.

"Se pensarmos que os krahô não têm língua escrita, ou só agora começam a ter, nem matemática, nem naves espaciais ou bombas atómicas, podemos até dizer que estão num estágio civilizacional anterior ao nosso. Na verdade, perante as problemáticas que se propõem resolver enquanto sociedade, estão num estágio muito avançado, mais até do que nós. A harmonia com a natureza, por exemplo, é uma marca de desenvolvimento, de civilidade.”
João Salaviza

Sentados num muro de pedra frente ao CIAJG, num fim de tarde em Guimarães, ele mais conversador que ela, ou mais nervoso com a exposição que estavam prestes a inaugurar e que ainda precisava de afinações, João e Renée disseram que o filme, o primeiro cuja realização assinam juntos, depois de alguns anos de estreita colaboração noutras películas, disseram que o filme é um objeto tão político quanto despolitizado. Em todo o caso, interessado em mostrar ao público formas de organização social e de ligação à terra – por parte dos índios ali representados – que ajudem os ocidentais a encontrar respostas numa era de crise ecológica, fenómenos atmosféricos extremos e esgotamento de recursos naturais.

As personagens pertencem à aldeia de Pedra Branca, com 500 habitantes, a maior de 35 aldeias krahô situadas no estado do Tocantins, região do Cerrado Brasileiro, um bioma fundamental do planeta e origem das maiores bacias hidrográficas da América do Sul, por isso chamado “berço das águas”. A cidade mais próxima de Pedra Branca é Itacajá, a 30 quilómetros, também retratada no filme. “O povo krahô faz parte de um conjunto sociocultural mais amplo, composto por outros seis grupos ameríndios, conhecidos como povos Timbira”, escrevem Ana Maria Amorim e Ian Packer na folha de sala da exposição em Guimarães. Ao todo, existem hoje 2.500 krahô, falantes de língua própria, mas também capazes de se expressarem em português. “É uma sociedade bastante sofisticada, não só pela espiritualidade, mas também pela organização socioeconómica e política”, analisou João Salaviza.

Henrique Ihjãc Krahô é a personagem principal

“Há uma tendência eurocêntrica de medirmos o grau de desenvolvimento das sociedades em função dos nossos padrões”, afirmou. “Nesse sentido, se pensarmos que os krahô não têm língua escrita, ou só agora começam a ter, nem matemática, nem naves espaciais ou bombas atómicas, podemos até dizer que estão num estágio civilizacional anterior ao nosso. Na verdade, perante as problemáticas que se propõem resolver enquanto sociedade, estão num estágio muito avançado, mais até do que nós. A harmonia com a natureza, por exemplo, é uma marca de desenvolvimento, de civilidade.”

Renée concordou parcialmente, porém torceu o nariz ao emprego de conceitos de “desenvolvimento” ou de “civilidade” para descrever povos indígenas, porque “esses conceitos não sequer reconhecidos por eles”. “Podemos, sim, começar a olhar a formas de vida destes povos como uma possibilidade alternativa para nós. Claro, ninguém vai voltar a viver no meio do mato sem energia elétrica, não é isso. Mas o planeta chegou a um limite e temos de questionar a nossa forma de viver”, sublinhou a realizadora.

Ficção que é documentário que é ficção

As filmagens começaram em junho de 2016 e terminaram em fevereiro de 2017. Os dois realizadores viveram em Pedra Branca, quase sempre sem eletricidade, que só foi instalada no fim do período de filmagens, e iam de 15 em 15 dias a Itacajá. No resto do tempo, estavam imersos na comunidade indígena, com a qual comunicavam em português ou através do tradutor Vítor Aratanha. Renée, de 39 anos, que é brasileira e há uma década trabalha com os krahô, foi quem introduziu o João, de 35, neste universo – um universo muito distante dos temas urbanos, ou suburbanos, a que ele habituou o público em filmes premiados como “Arena” (Palma de Ouro em Cannes 2009), “Rafa” (Urso de Ouro em Berlim 2012), ou “Montanha” (2015).

“Em 2009, fui filmar um pequeno documentário, com amigos da área da antropologia e do cinema que já tinham relação com uma família krahô, e a partir desse encontro passei cada vez mais tempo na aldeia”, recordou Renée. “Depois formámos um coletivo de cinegrafistas krahô, sempre em Pedra Branca, e a minha ideia foi sempre dar-lhes ferramentas para que pudessem filmar o que julgassem importante ou necessário, através dos telemóveis. Eles sabem retratar-se muito bem, não precisam de ‘branco’ nenhum para isso. Têm uma conexão muito forte com a ideia de imagem. Para os krahô, a fotografia é idêntica ao conceito de carõ, um duplo, um espírito. Carõ é uma palavra polissémica, admite várias traduções, dependendo do contexto, e atualmente é também usada para fotografia e filme. É o desdobramento do corpo, a sombra, o reflexo na água ou no espelho”, explicou a realizadora.

As filmagens começaram em junho de 2016 e terminaram em fevereiro de 2017

João Salaviza completou a ideia: “Carõ é uma imagem, um espectro, não é só o espírito, como na conceção judaico-cristão, que fala do espírito como entidade. Carõ é um duplo do corpo, mas tem uma vida própria, não está totalmente desconectado da realidade física que lhe dá origem, digamos assim.”

Ele familiarizou-se com a visão do mundo dos ameríndios de Pedra Branca, fala já com algum à-vontade. Notou que “os conceitos de família ou de valores tradicionais dos krahô não podem ser pensados de uma forma análoga aos nossos” e que “o papel da mulher e do homem obedece a uma lógica de organização social que não é excludente da mulher, pelo contrário, elas são cada vez mais o motor social e económico das aldeias”.

Amigos desde 2006, porque estudaram juntos na Universidad del Cine de Buenos Aires, e lá também estreitaram relações com Ricardo Alves Júnior, um dos produtores de “Chuva é Cantoria…”, e com Pablo Lamar, que assina a pós-produção do som, João e Renée são agora companheiros de vida. “Em 2013, quando fui filmar o ‘Montanha’, a Renée já estava muito embrenhada nos krahô. Propus-lhe que viesse fazer a rodagem comigo. Entretanto, transformámo-nos num casal e houve um encontro de desejos profissionais. Por um lado, terminei o ‘Montanha’ muito cansado e a questionar um certo modo de produzir filmes, com uma equipa grande. Senti que a rodagem era uma espécie de matrioska e eu era a última boneca de todas, escondida no fim. Comecei a perceber que talvez não precisasse de toda a esta armadura, de uma máquina tão grande, pelo menos, não para os filmes que quero fazer. Por outro lado, a Renée estava cheia de vontade de voltar para os krahô.”

O filme e a exposição

Assim veio o novo filme. E com ele, uma exposição, a primeira de ambos, que por estes dias ocupa três salas do CIAJG, “um olhar sobre as conceções acerca da morte presentes da cosmologia do povo krahô, indo ao encontro da potência estética e política das suas representações”, descreve a folha de sala.

Há desenhos e fotos, réplicas de objetos de cerimónias krahô, recortes de jornais que documentam massacres de indígenas e a destruição de terras que lhes são destinadas, material não incluído na montagem do filme. O momento mais impressionante, até do ponto de vista da execução técnica, será a instalação de vídeo em “loop” com 10 figuras indígenas de corpo inteiro que parecem falar com os visitantes a partir do além.

“Foi o desejo de que os filmes não sejam apenas o produto que cai na sala 20 do centro comercial num horário péssimo e apenas durante uma semana”, resumiu João Salaviza. “É importante pensar o cinema de forma mais ampla e multiplicar as abordagens ou as relações possíveis com o público.”

Segundo Renée, a exposição nasce de um desafio lançado por Cíntia Gil, diretora do festival de cinema DocLisboa, que se associou à distribuição do filme em Portugal. “Foi o desejo de que os filmes não sejam apenas o produto que cai na sala 20 do centro comercial num horário péssimo e apenas durante uma semana”, resumiu João Salaviza. “É importante pensar o cinema de forma mais ampla e multiplicar as abordagens ou as relações possíveis com o público.” A exposição como “amplificador de significados e sentidos”, disse Renée.

“Carõ, Multidões da Floresta” faz parte do primeiro ciclo expositivo de 2019 do CIAJG, sob o título genérico “Resgatar a Diversidade”, no âmbito do qual foram também inauguradas a 23 de fevereiro outras três propostas: “Variações do Corpo Selvagem”, com fotografias documentais tiradas há algumas décadas em aldeias indígenas pelo conhecido etnógrafo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, e ainda “Clareira”, do escultor Manuel Rosa, e “A Morte de Ubu”, do artista visual João Louro (estas duas em diálogo com a coleção permanente do CIAJG). Constituem uma forte aposta do director do CIAJG, Nuno Faria, e um claro comentário artístico ao Brasil do presidente Bolsonaro, acusado de tomar decisões que atentam contra estas comunidades.

Realizadores indígenas visitam Lisboa

A exibição do filme “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” em salas de Lisboa, Almada, Coimbra, Aveiro, Viseu e Porto, e o ciclo de exposições “Resgatar a Diversidade: Pensamento Ameríndio”, em Guimarães, aliam-se a uma terceira iniciativa que por estes dias vem dar destaque à realidade dos povos indígenas: o programa “Mostra Ameríndia: Percursos do Cinema Indígena no Brasil”, que decorre entre quarta, 13, e domingo, 17, no Museu Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Trata-se de uma mostra de cinema feito por indígenas, em 13 sessões, com bilhetes a três euros. A presença de quatro cineastas indígenas (Alberto Álvares, Patrícia Ferreira Keretxu, José de Lima Kaxinawá e Daiara Tukano), assim como do curador e ativista Ailton Krenak, para debates e encontros com o público, tornam a iniciativa inédita.

Raene Kôtô Krahô, a mulher de Ihjãc, e o filho de ambos

“O cinema indígena rompe com a imagem essencializada e reificada do ‘índio genérico’ e romântico, construída ao longo de centenas de anos por um olhar enviesado”, lê-se num dos textos de divulgação. “Iniciação dos Filhos dos Espíritos da Terra”, de Isael Maxakali, Sueli Maxakali e Carolina Canguçu, sobre um ritual de iniciação; e “Vende-se Pequi”, de André Lopes e João Paulo Kayoli, onde um grupo de jovens entrevista pessoas mais velhas da própria aldeia, são apenas alguns dos filmes que podem ser vistos na Gulbenkian. De acordo com os organizadores, a produção de cinema indígena no Brasil existe há pelo menos 20 anos, fomentada por “agentes não indígenas” através dos projetos “Vídeo nas Aldeias” ou “Filmes do Quintal”, o que tem dado “visibilidade à diversidade cultural, social e histórica de mais de 320 povos e 280 línguas existentes” no Brasil. Depois de Lisboa, a “Mostra Ameríndia: Percursos do Cinema Indígena no Brasil” segue para o Centro Internacional das Artes José de Guimarães, a 20 e 21 de março, mas com outro formato.

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