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Conselheiro João Cura Mariano tomou posse como presidente do Supremo Tribunal de Justiça em junho deste ano

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Conselheiro João Cura Mariano tomou posse como presidente do Supremo Tribunal de Justiça em junho deste ano

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

"O recurso para o STJ deve ser ainda mais excecional"

Novo líder do poder judicial quer novas regras dos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça e para o Constitucional em nome da eficiência. E quer ter um diálogo proativo com o poder político.

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O conselheiro João Cura Mariano, 67 anos, é o novo presidente do Supremo Tribunal de Justiça desde junho deste ano. Na sua primeira entrevista como líder do poder judicial, que marca o início da terceira temporada do podcast “Justiça Cega” da Rádio Observador, sente-se a energia de aplicar as suas ideias e de contribuir de forma proativa para uma reforma da Justiça — que diz ser um imperativo face às mudanças profundas promovidas por um aprofundamento da democracia e do espírito crítico dos cidadãos.

“É um luxo termos a tripla jurisdição do Supremo”

Tendo um diagnóstico que passa muito pela identificação de problemas de eficiência, o conselheiro Cura Mariano defende uma reforma profunda do sistema de tripla jurisdição do STJ — reforma essa que tem consciência que significa uma “pequena revolução”. Eleito pelos seus pares por larga maioria, defende que os recursos para o Tribunal Constitucional (no qual foi juiz entre 2007 e 2016) devem ter obrigatoriamente efeito devolutivo e os recursos para o STJ devem passar a ser excecionais no processo penal. O que implica que, em termos gerais, a decisão de um tribunal de Relação deve encerrar a tramitação de um determinado processo. Cura Mariano defende assim que Portugal adira ao sistema de dupla jurisdição — que é praticado, fundamenta, na maior parte dos países da União Europeia.

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Novas regras de acesso ao STJ, de forma a rejuvenescer a cúpula do poder judicial, e um novo modelo para o ingresso no Centros de Estudos Judiciários que promova uma maior atratividade por uma carreira nas magistraturas — são outra ideias para uma reforma da Justiça que implica igualmente uma linguagem jurídica mais aberta e uma comunicação mais regular com os cidadãos.

O espírito reformista do novo presidente do STJ inclui igualmente um tipo diferente de relação com o poder político. Cura Mariano quer que o poder judicial colabore na produção legislativa do Governo e da Assembleia da República e, nesse sentido, que ter uma colaboração proativa com o poder político. E está disponível para ir ao Parlamento quando os deputados da primeira comissão entenderem para falar sobre o funcionamento dos tribunais.

A crise da Justiça não é de hoje mas é uma das principais preocupações do momento da opinião pública. Parece que atingimos um ponto de não retorno em que algo tem de ser feito. Os cidadãos têm razões para desconfiarem da Justiça?
Como disse, e bem, o tema da crise da Justiça é um tema que se vai repetindo sempre que acontece qualquer episódio em que a Justiça é olhada como não tendo funcionado com a eficácia que se esperava dela. Principalmente quando o tema tem consequências na vida social. Portanto, a crise da justiça é persistente. No entanto, tivemos nos últimos anos a crise financeira, depois tivemos a pandemia e recentemente tivemos duas dissoluções da Assembleia da República. Durante esse período, a crise da Justiça foi subalternizada. O poder político, a própria sociedade, estava preocupado com as crises políticas, sociais e sanitárias. A Justiça passou para um dos últimos planos.

Mas há uma desconfiança que persiste, muito porque os portugueses não conseguem perceber o funcionamento da Justiça. Esse sentimento tem vindo a agravar-se?
Sim, tem vindo a acentuar-se por múltiplos motivos. Sendo uns, digamos, estranhos ao próprio funcionamento da Justiça e outros em que existe uma responsabilidade da própria Justiça. Isto é, não nos podemos esquecer que a Justiça funcionou durante muitos anos com base numa autoridade natural.

Porque as pessoas confiavam no sistema.
Exatamente. Era uma autoridade que se aceitava. O árbitro decidia e o que ele decidisse estava certo — não precisava de explicar muito. A sociedade democratizou-se e as pessoas começaram a querer perceber se aquelas verdades tinham fundamento. Aí há algum atraso na demora da resposta. Os tribunais têm de começar a explicar melhor as decisões.

"Não nos podemos esquecer que a Justiça funcionou durante muitos anos com base numa autoridade natural. Era uma autoridade que se aceitava. O árbitro decidia e o que ele decidisse estava certo — não precisava de explicar muito. A sociedade democratizou-se e as pessoas começaram a querer perceber se aquelas verdades tinham fundamento. Aí há algum atraso na demora da resposta. Os tribunais têm de começar a explicar melhor as decisões."

Os tribunais sempre tiveram a tendência de se fechar sobre si próprios. Já estão a abrir-se?
Um pouco, sim. Antes não sentiam necessidade de dar grandes explicações porque havia uma credibilidade natural deles e as suas decisões eram aceites. Hoje as sociedades não funcionam assim. São extremamente críticas e os tribunais têm de passar a explicar e a demonstrar que o que decidem está correto.

A Justiça ainda está a adaptar-se a essa necessidade?
Ainda não se adaptou. Estamos num ponto em que agora vamos ter de fazer alguma coisa. Durante muito tempo — isto é um problema que já vem de trás, muito antes da crise financeira — a justiça não teve qualquer evolução. Não só o sistema judiciário, mas também as leis que os tribunais aplicam.Vou dar um exemplo: o direito sucessório — que é um direito que tem um grande impacto na vida das pessoas — é de 1966; o direito  sucessório foi construído para uma determinada sociedade, com uma determinada estrutura familiar que, entretanto, evoluiu muito, mas poucas mudanças teve. A França já mudou o direito das obrigações e o direito sucessório, a Alemanha também, a Espanha está na fase de conclusão… Portugal nem sequer começou.

Além dessa, que outras áreas identifica como prioritárias numa reforma da Justiça?
Todo o ordenamento jurídico precisa de ser atualizado. Digo isto e assusta um pouco…

Numa reforma tão abrangente, temos de ter prioridades.
Exatamente. As prioridades dependem também do lugar que ocupamos. No lugar que eu ocupo, estou mais preocupado com o funcionamento do aparelho judiciário. Há dois setores que penso que têm de ter uma intervenção imediata: o acesso à magistratura judicial…

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Que já vamos desenvolver mais à frente…
…e o funcionamento do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) porque, no fundo, é o tribunal dos tribunais e define muitas vezes o direito e condiciona as decisões de instâncias inferiores. Há outras áreas, nomeadamente o funcionamento dos tribunais nos processos criminais, principalmente nos processos de grande complexidade. E a área dos tribunais administrativos e fiscais — que não está dentro das minhas competências — que tem problemas que já vêm de longe mas que estão assumir proporções escandalosas…

É a jurisdição em que, realmente, o tempo médio de resolução de casos é dos piores da União Europeia.
Dos piores, dos piores, porque 15, 20 anos é inadmissível, é inadmissível.

“A existência da tripla jurisdição é um luxo que muitos países europeus já abandonaram”

Defende uma reforma da chamada tripla jurisdição do STJ. Isto é, entende que o acesso ao STJ por via do recurso deve ser reavaliado, visto que não faz sentido que uma decisão da primeira instância seja escrutinada pela Relação, pelo Supremo e ainda pelo Tribunal Constitucional. Como é que deveria funcionar esse novo sistema?
A existência de uma tripla jurisdição no nosso sistema vem de muito longe e existiu também na maior parte da União Europeia. Mas a maior parte dos países da UE já a abandonou porque podemos considerar que isso é um luxo. Isto é, uma mesma questão é apreciada por três tribunais [tribunal da primeira instância, tribunal da relação e o Supremo Tribunal de Justiça], sem contar com a posterior apreciação em domínios muito concretos do Tribunal Constitucional e depois ainda do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Apesar de serem apreciações sectoriais, não deixam de ser, no fundo, cinco apreciações sobre a mesma questão. Nos dias de hoje, acho que ninguém compreende que isso possa acontecer.

Há muitos países na União Europeia em que uma decisão da primeira instância é executada após a confirmação da segunda instância e, só em casos excepcionais, é admitida uma terceira apreciação mas sem efeito suspensivo.
Exatamente. Importa sempre assegurar um direito ao recurso. Isto é, em regra não é suficiente apenas uma avaliação de um tribunal de primeira instância. Mas, a partir de uma segunda avaliação, só excecionalmente deve ocorrer uma terceira apreciação. Devemos confiar na segunda revisão do caso.

"A maior parte dos países da UE já abandonou o sistema da tripla jurisdição porque podemos considerar que isso é um luxo. Uma mesma questão é apreciada por três tribunais [tribunal da primeira instância, tribunal da relação e o Supremo Tribunal de Justiça], sem contar com a posterior apreciação em domínios muito concretos do Tribunal Constitucional e depois ainda do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Nos dias de hoje, acho que ninguém compreende que isso possa acontecer."

Depois de uma decisão da segunda instância, a decisão deve ser executada?
Em princípio, isso já existe no processo civil. Isto é, o recurso para o STJ costuma ter normalmente efeito devolutivo. O problema é que temos uma terceira apreciação que implica a utilização de meios que, para mim, são desnecessários. No fundo, é um luxo termos um terceiro tribunal a apreciar a mesma questão.

Defende novas regras para os recursos subirem ao STJ?
Exatamente. O recurso para o STJ deve ser ainda mais excecional. Atualmente, os limites que existem na jurisdição cível é a causa ter um valor acima de 30 mil euros — um valor que até é baixo e que está desatualizado. Só recursos de causas com um valor acima desse valor é que podem subir ao STJ. No caso da jurisdição criminal, as decisões de um tribunal da relação sobre penas acima dos oito anos é que admitem recurso para o STJ.

Há outro tipo de decisões que admitem recurso, mas a regra geral é essa.
Exatamente. Já no cível, se existir uma dupla conformidade entre a decisão da primeira instância e da Relação, só excecionalmente é que esta questão pode ser apreciada pelo STJ. Portanto, existem só esses limites.

Que novos limites deveriam existir?
O STJ deveria ser encarado, no fundo, não como um terceiro grau de jurisdição, mas sim como um tribunal excecional que se destinava a fixar jurisprudência em casos relevantes.

Como é que definimos isso? Quais seriam os casos, então, em que o STJ poderia intervir?
Deveria intervir sempre que exista oposição de teses entre os tribunais da relação. Isto é, há tribunais da relação a decidir de uma maneira e outros de outra. E, realmente, justifica-se que intervenha um terceiro tribunal para uniformizar a jurisprudência. Aí, sim, o STJ deve intervir e dizer: “Nestas situações, é assim que se deve decidir.” E ainda também quando se entendesse que o caso, pelas suas características próprias, tinha uma relevância jurídica excecional. Por exemplo, pode ser um problema jurídico de excecional relevância, interessante ou polémico ou um caso com implicações sociais muito fortes. Mas teria de ser o próprio STJ a escolher que casos queria decidir.

O que o senhor está a propor seria uma pequena revolução.
Sim, seria uma pequena revolução.

"O Supremo Tribunal de Justiça deveria ser encarado, no fundo, não como um terceiro grau de jurisdição, mas sim como um tribunal excecional que se destinava a fixar jurisprudência em casos relevantes ou problemas jurídicos excecionais. Sim, sei que seria uma pequena revolução."

A forma de acesso ao Tribunal Constitucional também deve mudar? Por exemplo, o Governo quer alterar essa matéria, até porque mais de 90% dos recursos para o Constitucional são rejeitados liminarmente. Nem sequer chegam a ser apreciados por serem manifestamente infundados.
Acho que sim. A questão do efeito deve mudar e a regra deve ser o efeito devolutivo. Isto é, não suspendia, e, portanto, a decisão era executada, e se, por acaso, viesse a ser alterada, teríamos que voltar atrás.

Tem consciência de que as suas propostas vão contra o espírito conservador da comunidade jurídica?
Eu sei disso. Mas acho que estas mudanças são essenciais, até porque o nosso STJ tem muitos recursos humanos: são cerca de 60 juízes conselheiros. São poucos face às competências que o STJ tem neste momento. O STJ não pode é ter tantos recursos para apreciar. Aliás, se formos comparar o ratio da população da maior parte dos países europeus vs o número de juízes, percebemos que Portugal tem um dos ratios mais elevados. A Noruega, por exemplo, tem 20 juízes no tribunal superior equivalente ao STJ.

“A existência do manifesto dos 50 é positiva mas tem descrições exageradas”

O Manifesto dos 50, lançado por diversas personalidades da sociedade civil e de diversos quadrantes políticos, tem tido um grande impacto mediático e identifica outras prioridades, nomeadamente tem um foco muito forte na ação do Ministério Público (MP) — que os subscritores dizem ser “um poder sem controlo”. O texto desse manifesto refere igualmente que “tem-se assistido na investigação penal a graves abusos na utilização de medidas fortemente restritivas dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos” e que a Operação Influencer e o caso da Madeira configuram uma “uma indevida interferência” do MP “no poder político” e nos poderes constitucionais do poder executivo. Partilha deste diagnóstico?
Essa é uma descrição algo exagerada, partindo de um ou dois casos concretos. Não podemos esperar que o MP tenha sempre razão quando avança com uma investigação e propõe que um caso seja tratado em tribunal. O sistema não está a funcionar mal quando o MP acha que determinadas atividades são criminosas e os juízes dizem que não são. É para isso que existem os tribunais.

Nas ditaduras é que o MP tem sempre razão.
Exatamente. Não se pode dizer que o sistema judicial só funciona bem quando o MP tem razão.

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A visão de alguns subscritores do Manifesto dos 50 é a de que o MP tem, de forma sistémica, uma ideologia de perseguição à classe política e de abuso na aplicação da lei processual penal.
Pois eu não tenho essa visão. Poderá ter acontecido que investigações do MP tenham tido consequências políticas. Mas isso não significa que os processos fossem orientados para ter esse tipo de consequências. Não acredito nisso. Não acredito em perseguições políticas [por parte do MP]. Acho que essa visão é exagerada. Seja como for, acho que a existência desse manifesto é positiva. Foi bom que tenha sido divulgado porque pode corresponder ao pensamento de uma parte da população e porque cria sempre um sobressalto e chama a atenção sobre o sistema judicial. Aquela inércia que existiu durante durante anos não pode continuar a existir. É preciso que mude qualquer coisa. No caso específico do MP, as regras da hierarquia têm de ser claramente esclarecidas. Até porque a senhora procuradora-geral da República [Lucília Gago] teve necessidade de emitir uma diretiva com base num parecer do Conselho Consultivo da PGR em que procurava definir como é que funcionava a hierarquia. Esse é um sintoma de que a lei é obscura.

A diretiva está a ser contestada no Supremo Tribunal de Administrativo.
Exatamente.

Considera que a questão hierárquica do MP deve ser algo de uma clarificação legislativa?
Sim, acho que deve ser clarificada legalmente. A senhora procuradora-geral teve necessidade de emitir a diretiva. O Conselho Consultivo da PGR teve a necessidade de fazer uma interpretação das regras. Isso implica que, pelos vistos, essas regras não são suficientemente claras e devem ser clarificadas. O MP é uma magistratura hierarquizada e o funcionamento dessa hierarquia tem que ser claro e explícito na lei. Depois, sendo ela uma magistratura hierarquizada, a figura do procurador-geral da República é uma figura muito importante. Agora, a partir dali, não podemos cair em derivas como aconteceu na Polónia ou na Hungria.

Não vê necessidade de alterar o quadro constitucional do MP para um maior controlo político?
Não, penso que não. O controlo político existe na possibilidade de nomear e demitir a figura do procurador-geral da República. E o procurador-geral, depois, exercerá as suas funções hierárquicas. A partir daí, caímos em sistemas que têm muito pouco de democrático. Começamos com o próprio Parlamento a querer controlar as decisões do Ministério Público e as decisões dos juízes — e aí começamos a estar em risco em termos democráticos.

"Não tenho a visão de que o MP tem uma ideologia de perseguição da classe política. Poderá ter acontecido que investigações do MP tenham tido consequências políticas. Mas isso não significa que os processos fossem orientados para ter esse tipo de consequências. Não acredito em perseguições políticas [por parte do MP]. Acho que essa visão é exagerada."

Aqui ao lado, em Espanha, por exemplo, vimos o Parlamento a tentar interferir na forma como uma lei de amnistia estava a ser aplicada pelos tribunais — o que é uma violação do princípio da separação de poderes.
Sim, exatamente. O direito à crítica, sempre. Agora, uma coisa é o direito à crítica, outra coisa é poder dar ordens às magistraturas.

“O tempo médio de resolução dos casos do crime económico tem de ser mais curto”

Como evidenciou no seu discurso de tomada de posse, existe uma grande discrepância entre o tempo médio geral de resolução nesta jurisdição (entre 1 a 2 anos) e o mesmo tempo dos processos de criminalidade económico-financeira (entre 8 a 9 anos). Quais são as causas para esta discrepância? A população costuma explicar essa discrepância com aquele chavão de ‘uma justiça para ricos e outra para pobres’.
O tempo médio de resolução desses processos não pode ser igual mas tem de ser mais curto. Os processos do crime económico demoram mais, primeiro, porque são complexos e também devido à ausência de meios para tratar essa complexidade. Os arguidos dos megaprocessos têm maior capacidade económica, logo podem agilizar todos os mecanismos que a lei prevê a seu favor. Enquanto uma pessoa sem capacidade económica terá mais dificuldade, embora tenha direito a defesas oficiosas. E aí, sim, é que se poderá dizer aquilo que falou: que a população pode ter essa perceção da justiça para pobres e para ricos. Admito que, realmente, é difícil debelar isso ou minorar essa diferença.

As razões para a morosidade nos processos do crime económico são variadas e, por isso mesmo, têm sido apontadas várias soluções para tentar atenuar esse problema. Por exemplo, há advogados que defendem que o Ministério Público deve ter prazos vinculativos para investigar, há também magistrados que entendem que a fase de instrução não deve ter produção de prova para ser mais eficiente e os juízes devem ter mais poder para gerir os julgamentos, de forma a eliminar repetição de produção de prova ou diligências irrelevantes. O que lhe parecem estas ideias?
Fazem sentido. Penso que temos de ter algumas alterações. Realmente, quando há um processo com elevada complexidade, os meios têm de ser diferentes. Por exemplo, os juízes que acompanham o processo devem ter uma equipa de assessores. Não podem ser os mesmos meios que existem para os processos comuns.

Aqui na comarca de Lisboa já existe essa bolsa de assessores.
Sim, mas tem limites porque não conseguem corresponder à quantidade de processos que estão simultaneamente a correr. Aí, acho que os conselhos superiores das magistraturas — quer da magistratura judicial, quer a do Ministério Público — devia ter uma capacidade que lhes permitisse ter os meios suficientes para fazer face a essa necessidade em qualquer processo.

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Uma coisa são os meios, outra são alterações legislativas para promover a eficiência.
Também concordo com essas alterações. Por exemplo, na fase da instrução. Claro que a Constituição obriga a que haja uma fase de instrução, mas não obriga a que ela exista em todos os processos e que ela seja feita como se fosse um primeiro julgamento. Aí, acho que temos de intervir porque estamos a despender quase uma energia idêntica à do julgamento. Isto não pode ser. A instrução deve ser só para controlar a necessidade de fazer um julgamento. Só isso.

E o juiz, por exemplo, deve ter mais poderes para gerir o processo de forma mais eficiente?
Julgo que os juízes já têm alguns poderes mas muitas vezes não são utilizados.

Isso é uma coisa que se ouve muito na comunidade jurídica.
Devem ser dados aos juízes todos aqueles poderes que realmente não diminuam de uma forma essencial os direitos dos arguidos. Todos os que sejam permitidos. Realmente, o juiz deve ser o condutor da audiência.

O que se vê muitas vezes nos megaprocessos, os quais costumam ter muitos arguidos, é que temos 100, 200 ou 300 testemunhas. Os juízes aceitam esse número de testemunhas e depois têm que as ouvir, sendo que algumas vezes assistimos à repetição de diligências e de produção de prova.
Exatamente. Já temos no processo civil um princípio que é o da adequação formal. Isto é, o juiz pode adequar a tramitação processual à importância do caso. E o processo civil aplica-se subsidiariamente ao processo penal. Com alguma criatividade, os juízes já poderiam utilizar esses mecanismos sem receio de ferir direitos dos arguidos.

Na área das liberdades e garantias dos cidadãos, vê necessidade de reforçar alguns direitos? Por exemplo, tem-se falado muito do uso abusivo da figura da prisão preventiva, no inquérito, por exemplo, a questão das escutas telefónicas. Vê necessidade, também, em termos de alterações legislativas, de reforçar direitos de liberdade e garantia dos cidadãos?
Podemos restringir um pouco… Mas aí vai ter de imperar sempre o bom senso dos magistrados. Por exemplo, a utilização das escutas. Temos de ter consciência que o mundo moderno fornece armas à criminalidade extremamente eficazes. O próprio sistema repressivo da administração da Justiça também tem que se dotar de algumas armas. Com certeza que as escutas vão ter de ter sempre uma maior utilização do que tinham há uns anos atrás, porque senão é impossível combater a criminalidade sofisticada. Agora, tem de haver alguma sensatez. Às vezes, houve de facto escutas muito prolongadas no tempo, escutas a pessoas quando ainda não há indícios suficientes para tal… Tem de haver bom senso porque a escuta é uma devassa enorme da privacidade de uma pessoa.

"Devemos ter alterações legislativas que promovam mais eficiência nas diversas fases processuais. Por exemplo. na fase de instrução. Claro que a Constituição obriga a que haja uma fase de instrução, mas não obriga a que exista em todos os processos e que seja feita como se fosse um primeiro julgamento."

E é um meio de obtenção de prova, não é uma prova em si mesmo.
Exatamente. E, portanto, tem de haver o máximo cuidado. Podemos estabelecer mais restrições, mas eu acho que a solução vai residir sempre no bom senso. Claro que aí os conselhos superiores, através das inspeções, poderão ter uma palavra de aconselhamento, uma palavra de influência nesse sentido do bom senso.

“Consigo entender perfeitamente perplexidade do cidadão comum com o caso Marquês”

Nenhum português minimamente informado consegue compreender como é possível que a Operação Marquês, que teve uma acusação em outubro de 2017, que já teve o seu principal arguido [José Sócrates] pronunciado para julgamento duas vezes (uma em 2021 e outra em janeiro de 2024), ainda não tenha começado a ser julgado — o que não aconteceu muito devido aos mais de 40 de recursos e incidentes processuais que José Sócrates apresentou. A minha pergunta é abstrata: como é possível uma justiça célere quando um sistema permite que um só arguido apresente mais de 40 recursos e incidentes processuais que apenas visam protelar o andamento do processo? Consegue compreender a perplexidade do cidadão comum sobre esta matéria?
Consigo entender perfeitamente. Nós funcionamos num Estado de Direito democrático que garante os direitos de arguidos e tem os mecanismos próprios para os arguidos apresentarem a sua defesa.

Diria que o engenheiro Sócrates é o maior beneficiário líquido dos direitos, liberdades e garantias do nosso sistema.
O problema pode estar num possível abuso desses direitos — que muitas vezes pode existir. Chamo a atenção que existe um mecanismo que pode conseguir atenuar esta questão — não digo que seja eficaz porque, por exemplo, não está previsto para a primeira instância. Mas no sistema de recursos existe um mecanismo no Código de Processo Civil que permite que os tribunais digam: “este meio de defesa é manifestamente improcedente, não tem qualquer razão, o processo vai prosseguir e este incidente vai ser tratado à parte”.

"No sistema de recursos existe um mecanismo no Código de Processo Civil que permite que os tribunais digam: 'este meio de defesa é manifestamente improcedente, não tem qualquer razão, o processo vai prosseguir e este incidente vai ser tratado à parte'. Talvez o legislador deva prever esse mecanismo no Código do Processo Penal para evitarmos esses expedientes que realmente contribuem para a ideia de ineficácia da Justiça e para o descrédito dela."

Com efeito devolutivo e não suspende a marcha do processo.
Sim. Se, por acaso, naquele incidente o arguido vier a ter razão, aí é evidente que o processo vai ter que voltar todo atrás.

Mas isto não tem sido aplicado neste processo.
Não conheço os processos concretos, nem devo falar neles. Este mecanismo tem sido aplicado, em geral, no processo civil. No processo penal, não tem sido — talvez porque só é aplicável subsidiariamente. No Tribunal Constitucional, onde também estive, era muito aplicado, porque era a última instância de recurso e, se nós não aplicássemos, os processos eternizavam-se. Se este mecanismo fosse utilizado no processo penal [de forma generalizada], talvez se conseguisse diminuir os tempos de resolução.

O Conselho Superior de Magistratura pode sensibilizar os magistrados para isso?
Pode sensibilizar, através do seu serviço de inspeções. Acho que talvez fosse de pensar fornecer esse instrumento à primeira instância.

Isso implicava uma alteração legislativa?
Sim, implica. Se formos ver, por exemplo, os países nórdicos, não há ninguém que utilize expedientes dilatórios para impedir a marcha de um processo. Existe outro sentido cívico. Nos países latinos, realmente, há muitas vezes um abuso no uso das garantias dos arguidos. Portanto, temos que arranjar mecanismos que não permitam que esses abusos…

Mas esse já existe na nossa lei e não está a ser aplicado pelos juízes.
Está a ser pouco aplicado. Talvez o legislador deva prever tal mecanismo [de forma explícita] no Código do Processo Penal para evitarmos esses expedientes que realmente contribuem para a ideia de ineficácia da Justiça e para o descrédito dela.

“Os magistrados devem participar mais na construção das leis. Estou disponível para esse diálogo com o poder político”

No seu discurso de tomada de posse, manifestou a intenção de “manter um diálogo construtivo e permanente com os demais órgãos de soberania” para “uma participação ativa e colaborante na inadiável campanha de reformas na área da justiça.” Como pretende ter essa colaboração ativa com o poder político?
A única intervenção que poderia ter seria como presidente do Conselho Superior da Magistratura. Ou seja, o Conselho pronuncia-se sobre os diplomas quer do Governo, quer da Assembleia da República. Só que aí estamos numa posição meramente passiva. Penso que poderemos ter, num espírito de colaboração entre os órgãos de soberania, um papel mais ativo. Isto é, já iniciei um diálogo quer com o sr. primeiro-ministro, quer com a sra. ministra da Justiça, quer com o sr. presidente da Assembleia da República para os sensibilizar para a necessidade de se tomarem determinadas medidas. Tenho tido grande receptividade dos outros órgãos de soberania e penso que todos beneficiam com essa minha proactividade. Lembro-me que uma vez o dr. Pedro Delgado Alves [deputado do PS] criticou os magistrados porque nunca se queriam pronunciar sobre as leis que estavam em formação mas depois, quando essas leis eram aprovadas, vinham arrasá-las e criticá-las. Não sei se será assim mas acho que os magistrados devem participar mais na construção das leis. Portanto, estou disponível para esse diálogo.

"Lembro-me uma vez que o dr. Pedro Delgado Alves [deputado do PS] criticou os magistrados porque nunca queriam se pronunciar sobre as leis que estavam em formação mas depois, quando essas leis eram aprovadas, vinham arrasá-las e criticá-las. Não sei se será assim mas acho que os magistrados devem participar mais na construção das leis. Portanto, estou disponível para esse diálogo."

Está disponível, por exemplo, para ir à Assembleia da República explicar o funcionamento dos tribunais e dialogar com a primeira comissão?
Totalmente disponível. E até devo dizer: desejoso disso. Quero contribuir para que depois não se diga que os magistrados não colaboraram.

Quer colaborar no processo legislativo?
Sim. Sei que não é o judiciário que tem o poder legislativo. Esse poder é do Governo e da Assembleia da República. Mas estou disponível para colaborar para que as leis tenham o maior número de contributos e saiam com a maior perfeição possível. Estou disponível e desejoso disso.

“A pouca atratividade da candidatura e da carreira de magistrados é extremamente grave”

Como disse recentemente, é avassaladora a discrepância entre o número atual candidatos ao Centro de Estudos Judiciários e o que existia no seu tempo de jovem licenciado em Direito: 2.500 candidatos (e que chegaram a atingir os 5.000 nos anos seguintes) contra os 500 candidatos que o último curso teve. Que medidas concretas podem ser tomadas para tornar a candidatura ao CEJ e o ingresso nas magistraturas mais atraente?
Esse é um problema que, sendo muito preocupante, é um problema que pouca gente dá conta que ele existe.

Não é um assunto muito mediático.
Portanto, é algo subterrâneo. Até mesmo dentro do próprio mundo do direito não há essa percepção. Mas é um problema extremamente grave. É grave porque as pessoas que estão a entrar para a magistratura deverão permanecer, em princípio, durante os próximos 30, 40 anos. E nós não estamos a selecionar convenientemente essas pessoas desde há alguns anos.

Porquê?
Porque pouca gente se candidata. E muitos dos candidatos que existem são pessoas que reprovaram em anos sucessivos.

Verificou-se uma baixa na qualidade dos candidatos.
Exatamente. Os bons alunos das faculdades não se estão a candidatar ao ingresso nas magistraturas.

"Até mesmo dentro do próprio mundo do direito não há a percepção do problema extremamente grave da pouca atratividade do ingresso nas magistraturas. É grave porque as pessoas que estão a entrar para a magistratura deverão permanecer, em princípio, durante os próximos 30, 40 anos. E nós não estamos a selecionar convenientemente essas pessoas desde há alguns anos. Pouca gente se candidata. E muitos dos candidatos que existem são pessoas que reprovaram em anos sucessivos."

Porque é que isso acontece?
Devido a múltiplos fatores. E há alguns que não conseguimos controlar, nem fazer muito por isso. Por exemplo, a ideia de uma carreira não é algo atraente para os jovens. Os jovens querem ter uma carreira dinâmica, querem ir para o estrangeiro e aquela ideia de ir para uma comarca de província e toda a vida só vai fazer isto não é algo muito atraente. Depois de serem aprovados no CEJ, os jovens juízes começam sempre a carreira em comarcas de província e toda a vida serem juízes não é algo muito atraente.

O que se pode fazer?
Por exemplo, o CEJ apenas existe em Lisboa. Os estudantes têm de vir para Lisboa e durante um ano têm de estar no CEJ e depois têm de estar um ano no tribunal. Ora a bolsa é de cerca de mil e pouco euros. Para quem mora em Lisboa isso não será problema. Mas quem tem de vir de fora isso inviabiliza um pouco o projeto…

Só o custo do alojamento leva logo uma boa parte do valor da bolsa.
Há outras exigências. Para se candidatar ao CEJ, o interessado tem de fazer a licenciatura, o mestrado e tem de esperar o ano em que aparece o Aviso do concurso e só entra no ano a seguir. Isto é, o processo de entrada na magistratura demora muito tempo, o que desincentiva os bons alunos. Não estão dispostos a ficar quatro ou cinco anos à espera de ser juiz e continuando a depender dos pais.

Já identificou três matérias que podem ser alteradas.
Também temos de ser atrativos no processo de candidatura. Outra coisa são as condições da profissão. Aquela questão que referiu há pouco: de um jovem juiz ter de ir para Celorico da Beira ou para o Faial…. Quando eu ingressei na magistratura, a família do juiz acompanhava-o nesse percurso… Atualmente não se passa assim…

Aí tem mesmo de haver uma revolução: abrir pólos do Centro de Estudos Judiciários noutros pontos do país, criar uma carreira plana para os juízes e mudar a forma como os juízes vão evoluindo na sua carreira.
Implica um pouco isso. Terminei o discurso que fiz no CEJ dizendo que não quero que haja mais concursos com estas regras — e ainda há outras que também inviabilizam a candidatura dos jovens licenciados que são os exames para ingresso no CEJ.  Os exames são de uma aleatoriedade, de uma dificuldade enorme, que os bons alunos têm medo — e o medo é justificado —, de chumbar. Os exames podem ser sobre todas as matérias e podem ter o azar de não ter estudado um determinado pormenor e chumbam.

Referiu nesse discurso que o anteprojeto com as novas regras já tinham sido aprovado pelo Conselho Geral do CEJ e que já está no Ministério da Justiça há mais de um ano. Que mudanças traz esse anteprojeto?
Esse anteprojeto é uma boa base de trabalho e a sua grande virtude era tentar que os exames não tivessem essa aleatoriedade para promover a ideia de que um bom aluno, em princípio, passava e uma pessoa sem conhecimentos chumbava. Portanto, o sistema de exames mudava. Mas acho que é preciso mudar mais alguma coisa. Por exemplo, é preciso mudar o sistema de quotas para as pessoas que já estão a exercer uma profissão jurídica há mais de cinco anos porque isso também desincentiva os alunos das faculdades. Outro exemplo: um aluno que tivesse média de 16 valores não devia fazer provas escritas e devia fazer só provas orais. Isso é um bom aliciante para atrair os bons alunos. Essa regra existiu durante uns anos e depois acabou. As grandes sociedades de advogados contratam os seus recursos humanos muito com base nas notas.

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Mas também vão tentar captar os alunos logo à saída do curso.
E talvez também aí devemos ter também uma política de intervenção.

Teve feedback positivo da ministra da Justiça em relação à sua proposta de aplicar as novas regras antes de começar o próximo curso em 2025?
Sim. Tive um bom feedback no próprio dia em que fiz esse discurso e sei que a sra. ministra está a trabalhar no sentido da lei ser aprovada antes do próximo curso começar em janeiro de 2025. Claro que estaremos dependentes da Assembleia da República mas, como se trata de uma medida que é inócua politicamente, esperemos que seja aprovada. Não digo que as novas regras vão ter efeitos imediatos mas acho que vai ter efeitos paulatinamente. Repare que nos tribunais administrativos e fiscais, já nem há um número de candidatos suficientes para preencher as vagas.

O imperativo de rejuvenescer o STJ e mudar a linguagem barroca das decisões judiciais

Outra questão é o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça e, em certa medida, o timing tardio da promoção dos juízes desembargadores e juízes conselheiros. Há o exemplo paradigmático de dois ou de três antecessores do sr. presidente que não conseguiram acabar o respetivo mandato porque alcançaram a idade da jubilação. O que pode ser feito para rejuvenescer o Supremo Tribunal de Justiça?
Não é uma coisa que possa ser feita, é uma coisa que tem que ser feita imediatamente. Foi outro dos assuntos que falei com o sr. primeiro-ministro e com a sra. ministra da Justiça. Porquê? Porque as pessoas chegam aqui com a idade em que se podem reformar. Isto é, já houve pessoas que chegaram aqui e no próprio dia se reformaram. O que é que isso implica? Que as pessoas estão aqui muito pouco tempo ou então não têm o tempo suficiente para criarmos uma jurisprudência uniforme. Já não sei quem é que me disse uma vez que o Supremo Tribunal de Justiça arriscava-se a ser uma fábrica de contradições, porque as pessoas acabavam por não trabalhar umas com as outras, não tinham tempo para trabalhar umas com as outras. Portanto, isso terá de ser feito.

Uma mudança no acesso ao STJ.
O problema não está nos juristas de mérito que acedem ao Supremo — esses não têm problema de idade. O problema são os magistrados de carreira porque só podem aceder os magistrados mais velhos dos tribunais da relação e os que acedem estão todos perto dos 65 anos. Isto é, com a idade de se poderem reformar. Dentro do meu espírito proativo vou sugerir ao Governo — que terá de propor à Assembleia da República — que se fala uma alteração no acesso ao STJ e se desça essa média dos 65 anos para os 60 anos. Eu já vi que consigo descer a idade dos que acedem para os 60 anos. Isso já seria bom. Pelo menos cinco anos estariam no Supremo.

"O rejuvenescimento do Supremo Tribunal de Justiça não é uma coisa que possa ser feita, é uma coisa que tem que ser feita imediatamente. Foi outro dos assuntos que falei com o sr. primeiro-ministro e com a sra. ministra da Justiça. Porquê? Porque as pessoas chegam aqui com a idade em que se podem reformar."

Também quero aproveitar para fazer algo na questão da especialização. Antes não existia grande especialização entre os magistrados. Fazíamos diferentes jurisdições, como o crime, cível, trabalho e família. Atualmente há muito mais especialização entre os magistrados que só fizeram uma jurisdição. O que implica que, quando chegam ao Supremo, podem ser colocados numa área em que nunca trabalharam. Por exemplo, um juiz que nunca fez crime, pode ser colocado numa secção criminal porque não há vaga na área que sempre acompanhou. Quero acabar com esse sistema e permitir que um conselheiro só possa ser colocado num ramo em que é especialista. Porque não faz sentido uma pessoa estar no mais alto tribunal a verificar decisões de pessoas que são especialistas naquela área e ele nunca trabalhou na mesma. Essas duas soluções permitiriam rejuvenescer o STJ e melhorar a sua qualidade.

O seu discurso de tomada de posse também ficou marcado por uma constatação que fez — pouco habitual num magistrado mas muito mais comum entre a população em geral… Refiro-me à constatação de que é necessário que as decisões dos tribunais sejam redigidas de forma a que sejam percebidas pela generalidade dos cidadãos. “Temos que abandonar o estilo barroco das nossas decisões, que nos conduziu a uma cultura judiciária pretensiosa”, disse, o sr. presidente. Que medidas concretas defende para passarmos a ter uma administração da Justiça mais perceptível para o cidadão comum?
É algo difícil. Criou-se a ideia de que uma boa decisão é aquela que é muito elaborada, com muitas citações, com uma linguagem muito erudita. Um juiz que não fizesse isto era um juiz mediano, não ascendia na carreira e não era um bom juiz.

Lemos decisões de tribunais europeus, do Tribunal de Justiça da União Europeia ou do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, e não vemos nada disso.
Não vemos nada disso, exatamente.

É claro que não são só os juízes. Os advogados também funcionam dentro da mesma cultura. É toda uma comunidade jurídica a funcionar dentro de uma linguagem codificada e fechada.
Há países que já começaram a limitar o número de caracteres das peças processuais para promover uma cultura de síntese e de clareza.

É o que aconteceu nos tribunais europeus.
Exatamente. Uma decisão ou alegação de um advogado tem que ter determinado número de caracteres. Isso são já medidas mesmo drásticas, impositivas.

"Há países que já começaram a limitar o número de caracteres das peças processuais para promover uma cultura de síntese e de clareza. Isso são já medidas mesmo drásticas. Podemos ter que chegar aí porque esta é uma cultura muito enraizada e só através de medidas imperativas é que se consegue atingir o objetivo. Espero que não seja necessário."

Não é necessário chegarmos aí?
Podemos ter que chegar, podemos ter que chegar. Porquê? Porque é uma cultura muito enraizada e só com medidas imperativas é que se consegue atingir o objetivo. Espero que não seja necessário. Há dois momentos essenciais em que podemos trabalhar porque temos que ter consciência de que já não vamos conseguir mudar os juízes mais antigos. Por exemplo, logo no acesso ao CEJ devemos dar essa formação aos auditores. Se lhes derem essa formação — “as sentenças não são trabalhos académicos, servem para decidir o caso concreto” — acho que isso pode resultar.

Os cursos de Direito não necessitam da mesma intervenção?
Talvez. Mas os cursos de direito são mais abrangentes. Nem todos vão para juízes ou para advogados. Parece-me que será eficaz durante o estágio e nos centros de formação de magistrados. Iniciei o mandato há pouco tempo mas vou tentar atuar já nos magistrados que estão em funções e vou tentar atual também nas inspeções. Isto é, as inspeções valorizavam o juiz que era muito erudito e vão passar a deixar de valorizar esse juiz. Vão passar a valorizar o juiz que é mais sintético, mais claro, mais atento ao caso concreto porque muitas vezes o problema dessas sentenças eruditas é que esquecem o caso concreto. Remetem-se para grandes teorias e esquecem as particularidades do caso concreto. É claro que não podemos perder o rigor técnico e não podemos deixar de utilizar os conceitos mais jurídicos, mas podemos melhorar muito a clareza das decisões.

Para que as mesmas sejam compreendidas pela comunidade.
Nem todos os cidadãos poderão compreender uma decisão judicial. Mas, além da melhoria na clareza das decisões, podemos tentar trabalhar numa segunda área, que é a comunicação, para explicar melhor aquelas decisões que têm mais repercussão social.

Desde há muitos anos que se fala na hipótese de existirem porta-vozes no Conselho Superior da Magistratura, como acontece noutros países da União Europeia.
Tenho algumas dúvidas sobre isso. Penso que uma coisa tem que ser feita: as decisões importantes têm que ser comunicadas através de um comunicado. Isto é, tem que ser feito um comunicado numa linguagem tipo notícia a comunicar e a explicar o que foi decidido. No fundo, isso é uma tradução da decisão para a comunidade em geral. Já uma conferência de imprensa com um juiz… penso que não. Porque o juiz não pode dizer coisas que não tenha dito na sentença.

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Não estava a querer dizer que o porta-voz tem de ser o juiz. Pode ser um representante do tribunal ou do Conselho Superior da Magistratura com especiais aptidões para comunicar.
Tenho dúvidas sobre as conferências de imprensa. Porque as perguntas vão um pouco mais além da sentença. O comunicado é mais rigoroso e tem que haver essa comunicação regular em processo com repercussão social. Por exemplo, estou a implementar no Supremo Tribunal de Justiça um sistema para comunicar as nossas decisões mais relevantes. O método é simples: sempre que houver uma decisão que eu acho que a imprensa vai tratar, ou que eu quero que a imprensa trate, eu vou comunicá-la e explicá-la. Penso que as pessoas entenderão muito melhor as decisões judiciais com esse método. Já o fiz quando era juiz. As minhas decisões mais relevantes costumavam ser comunicadas à imprensa numa linguagem clara. Por exemplo, a decisão sobre o caso da praia do Meco foi devidamente comunicada.

“É necessário que o Ministério da Justiça e Ordem dos Advogados tenham um compromisso de tempo para o problema dos advogados oficiosos”

Uma última pergunta. Está a ocorrer um conflito entre a Ordem dos Advogados e o Ministério da Justiça sobre o valor das defesas oficiosas. A senhora bastonária quer um aumento de 20% porque os valores das oficiosas não são atualizados há mais de 20 anos. O Ministério da Justiça não se compromete com esse valor, está a estudar o tema e vai apresentar uma proposta no final de setembro. Entretanto, a sra. Bastonária apelou ao boicote às oficiosas que pode paralisar os tribunais. Como vê este conflito?
Os tribunais podem não paralisar, mas que a actividade dos tribunais vai ser prejudicada, isso vai. Se realmente os advogados oficiosos não se dispuserem a assumir essas defesas nos processos criminais, isso vai prejudicar muito a realização dos julgamentos — tal como o problema dos funcionários judiciais prejudicou muito o funcionamento dos tribunais. Penso  que as reivindicações dos advogados são perfeitamente legítimas. Para uma tabela que não é atualizada há 20 anos, nem que seja por via da inflação, aquela tabela está desatualizadíssima. Portanto, a tabela tem que ser atualizada.

O problema reside em saber se há cabimento orçamental para esse aumento de despesa.
Aí acho que tem que haver cabimento. Não sei qual será a dimensão, mas tem que haver cabimento orçamental. O problema pode residir na vontade do Ministério da Justiça querer também mudar o sistema de apoio judiciário.

Essa medida faz parte do programa do Governo.
Compreendo que, para garantir um apoio judiciário mais eficaz, seja necessário mudar os sistema. Mas isso não se pode arrastar muito no tempo. Sem querer servir de mediador entre as duas partes, apesar da minha posição de juiz, penso que, havendo um compromisso de tempo, poderia-se chegar a um acordo entre as duas partes. Porque, realmente, só nos faltava mais esta dificuldade, depois do problema dos oficiais de justiça que prejudicou muito a atividade dos tribunais e que não sei se já está resolvido. São aspetos em que importa agir rapidamente.

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