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O renascimento da al-Qaeda no Afeganistão

Rede aliada dos talibãs teve o cuidado de consultar al-Qaeda sobre o acordo com os EUA, peça-chave da retirada militar do Afeganistão. Relação mantém-se sólida. Um ensaio de Diogo Noivo.

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Durante boa parte da década de 1970, o presidente afegão Mohamed Daoud dedicou-se a um ato precário de equilibrismo entre os Estados Unidos da América e a União Soviética. Aproveitando a dinâmica bipolar da Guerra Fria, extraiu vantagens de ambos comprometendo-se o menos possível.

Em Abril de 1978 tomou uma posição de força: mandou deter líderes comunistas acusados de instigar protestos e demais atividades subversivas.  Há duas décadas que Moscovo formava, financiava e aconselhava membros da universidade e das forças armadas afegãs, e foram estes últimos que mataram Daoud a tiro dias após as detenções. Uma vez controladas as bases do poder político, os comunistas de Cabul encetaram uma campanha de violência brutal contra comunidades religiosas e étnicas com capacidade para resistir à nova ordem. Em 1979, as detenções e execuções por motivos políticos contavam-se aos milhares.

A instabilidade política e a polarização social desataram tensões religiosas e tribais sentidas até nas fileiras comunistas afegãs, que se entregaram a rivalidades impiedosas. A presença russa no terreno, então limitada a uns quantos assessores e a unidades de operações especiais em modo clandestino, evoluiu para uma operação militar de larga escala com o propósito de manter o país na esfera de influência soviética.

A resistência não se fez esperar. Primeiro em Herat, a noroeste, depois em Jalalabad, a 150 km a leste da capital, grupos locais e desertores do exército iniciaram ações de guerrilha contra o invasor, numa lógica de atrocidade e contra-atrocidade, não poucas vezes sob a égide do que entendiam ser o dever ineludível de qualquer bom muçulmano: a jihad violenta. Os célebres mujahideen, ou guerreiros islâmicos, não combatiam por orgulho nacional, mas em defesa da integridade territorial do Islão.

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Voluntários da Ásia Ocidental, da Península Arábica e do Norte de África uniram-se com fervor militante, relegando as suas diferenças culturais, linguísticas e até teológicas para um plano assessório. Havia uma missão superior, absoluta e existencial, que a tudo se sobrepunha.

A invasão militar – bem como a expropriação de terras, o serviço militar obrigatório, a secularização marxista do sistema de ensino, a repressão política e outras práticas introduzidas por Moscovo – ecoou em comunidades muçulmanas de todo o mundo, havendo quem se sentisse na obrigação de acorrer ao Afeganistão para defender o Dar al-Islam, a Terra ou Casa do Islão. Voluntários da Ásia Ocidental, da Península Arábica e do Norte de África uniram-se com fervor militante, relegando as suas diferenças culturais, linguísticas e até teológicas para um plano assessório. Havia uma missão superior, absoluta e existencial, que a tudo se sobrepunha.

O Paquistão tinha interesses a defender. Após perder parte do seu território para a Índia em guerra recente, via com preocupação os tentáculos da URSS nas suas fronteiras. Além do mais, sentia a pressão interna vinda de segmentos sociais cada vez mais próximos de visões zelotas e violentas do Islão, naturalmente indignados com a agressão soviética. Islamabad assumiu então um papel preponderante no apoio à resistência, fazendo questão de receber ajuda externa – nomeadamente armamento e verbas dos Estados Unidos da América, proibidos pelo Paquistão de operar dentro de território afegão – e depois distribui-la pelos grupos de combatentes que entendesse merecedores de apoio.

Peshawar, cidade paquistanesa fronteiriça com o Afeganistão, torna-se local de acolhimento, treino e organização dos voluntários, depois introduzidos no país vizinho para missões de combate. Neste esforço de coordenação destacaram-se o palestiniano Abdullah Azzam, o saudita Osama bin Laden e, mais tarde, o egípcio Ayman al-Zawahiri. Em 1984, fundam o maktab al jidamat, ou ‘escritório de serviços’, o embrião da al-Qaeda, criada 4 anos mais tarde nessa mesma cidade.

O ‘escritório’ recebeu fundos da Arábia Saudita e dos Emiratos Árabes, ministrou treino aos milhares de mujahideen árabes que se dispuseram a combater, atribuiu-lhes funções específicas, facilitou-lhes equipamento e transporte. Os laços de camaradagem nascidos na experiência afegã produziram identidade comunal forte num grupo heterogéneo. Para isso contribuiu também a sensação de superioridade religiosa e doutrinal: comparados com os muçulmanos afegãos, gente pejada de superstições tribais e questiúnculas locais, os árabes-afegãos, como também eram conhecidos, revelavam uma lealdade e um sentido de missão próprios de uma elite.

Com a retirada das tropas soviéticas em 1988-1989 e posterior queda do Muro de Berlim, Bin Laden e os seus convenceram-se de que a missão divina abraçada fora a responsável pelo colapso de uma de duas superpotências. Levar a jihad ao resto do mundo era, portanto, um desígnio com hipóteses de êxito. O centro da atenção deixou de estar apenas no Inimigo Próximo – os regimes políticos tidos como ímpios ou hereges em países de maioria muçulmana – para se deslocar no sentido do Inimigo Distante – países ocidentais acusados de hedonismo e blasfémia que, com respaldo político e financiamento, apoiam o Inimigo Próximo. Dito de outra forma, é na sequência da chamada jihad afegã que o jihadismo elimina as fronteiras territoriais do seu quadro ideológico. Esta visão foi inoculada nos militantes que regressaram a casa ou procuraram outros destinos uma vez concluída a atividade bélica contra a URSS, diáspora que constituiu o alicerce da primeira rede internacional da al-Qaeda.

O caldo de cultura gerado pela invasão soviética foi, portanto, o berço da al-Qaeda e do movimento jihadista global. Tem hoje uma relevância simbólica, emocional e doutrinal com forte apelo junto da militância. Não é por acaso que após a retirada norte-americana do Afeganistão no fim-de-semana passado, e posterior conquista territorial talibã, a agência Al-Thabat, braço mediático da al-Qaeda, anunciou que “muçulmanos e mujahideen no Paquistão, Caxemira, Iémen, Síria, Gaza, Somália e Mali estão a celebrar a libertação do Afeganistão e a implementação da Sharia no seu interior”. Para a organização criada por Osama bin Laden, o triunfo talibã é razão para fundado regozijo.

O nascimento da ligação entre al-Qaeda e talibãs

Em 1996, Osama Bin Laden e os seus correligionários foram convidados a abandonar o Sudão, onde tinham encontrado santuário 4 anos antes. O regime do general Omar al Bashir convidara o saudita a instalar-se no âmbito de uma estratégia pan-islamista cujo objetivo era pôr fim ao isolamento geoestratégico de Cartum. Proscrito na sua Arábia Saudita natal e, portanto, a precisar de refúgio, Bin Laden era um convidado apelativo: ostentava a aura de feroz resistente islâmico à invasão soviética do Afeganistão na década de 1980; e o facto de ser um mecenas generoso com bolsos fundos também não era negligenciável.

A estância sudanesa permitiu à al-Qaeda ampliar contactos internacionais, nomeadamente estabelecendo grupos por toda a África Oriental, recuperando filiais já instaladas nos Estados Unidos da América e criando pontes com o muito ativo jihadismo londrino, que anos mais tarde valeria à capital inglesa o apodo ‘Londonistão’. Envolveu-se também na organização de ataques contra militares norte-americanos na Somália e no Iémen, exagerando o papel real que teve, da mesma forma que amplificou a sua participação no atentado bombista de 1993 no World Trade Center, em Nova Iorque. Tão importante como atacar os infiéis era potenciar a marca al-Qaeda e o estatuto de Bin Laden como inspirador da jihad mundial.

A par da internacionalização, Bin Laden aumentou sobremaneira as diatribes contra a casa real saudita. Sentia-se traído. O regime que o apoiara na luta contra a URSS no Afeganistão mostrava-se agora indisponível para patrocinar os seus planos de desestabilização do Iémen do Sul, governado por uma junta marxista. Porventura mais grave foi a ira com que viu a instalação de bases militares norte-americanas na Arábia Saudita – terra dos locais sagrados do Islão – na sequência da Guerra do Golfo. Não estava sozinho no ressentimento contra o próprio país: o então número dois da al-Qaeda, Ayman al Zawahiri, urdia inúmeras conspirações terroristas contra o Egito onde nascera.

Sob pressão de Washington, do Cairo e de Argel – onde a al-Qaeda instigara a violência terrorista do Grupo Islâmico Armado –, o Sudão vê-se livre dos hóspedes incómodos. Já destituído de cidadania saudita, a solução possível para Bin Laden passou por um regresso ao Afeganistão.

Encontrou um país diferente daquele que deixara. O caos da luta intestina entre tribos, clãs e senhores da guerra retalhava o território em parcelas de poder variável, estado de coisas que uma fação formada em 1994, os talibãs, pretendia reverter mediante a unificação pela força. Movimento revivalista de uma estirpe islâmica ortodoxa, apresentavam-se como o antídoto para a corrupção, facciosismo e heterodoxias que marcavam o país. Apoiados pela Arábia Saudita, acabariam por conquistar Cabul e boa parte do território pondo em marcha a purificação moral e religiosa do Afeganistão.

O vínculo entre os dois grupos tornou-se forte e simbiótico. Os talibãs recusaram sempre entregar Osama Bin Laden aos Estados Unidos da América, apesar de saberem que haveria represálias. Talvez mais relevante, rejeitaram entregar o líder da al-Qaeda à Arábia Saudita, à época a principal patrocinadora dos talibãs.

O emir da al-Qaeda tinha um apoio importante junto da nova força dominante: Jalalludin Haqqani, antigo companheiro de armas no combate contra a União Soviética, agora dono da província de Khost, no leste do país. Percebeu também que nessa mesma guerra lutara em 1989 ao lado do líder talibã, o carismático Mulá Omar, autoproclamado “comendador dos crentes”. A fraternidade forjada na batalha contra a potência ateia e a subscrição de um entendimento totalitário do Islão facilitaram a junção de vontades. Os bons ofícios dos serviços secretos paquistaneses – interessados em usar o Afeganistão como plataforma de lançamento de jihadistas contra a Índia – também deram uma ajuda importante. Bin Laden jurou fidelidade a Mulá Omar e colocou ao seu dispor militantes árabes, entre os quais alguns mujahideen, que na Brigada 055 lutaram integrados em unidades talibãs. De resto, foram membros da al-Qaeda a assassinar o célebre Ahmad Sha Massoud, comandante da Aliança do Norte, principal força de oposição ao avanço talibã. Mulá Omar ficou naturalmente grato.

O vínculo entre os dois grupos tornou-se forte e simbiótico. Os talibãs recusaram sempre entregar Osama Bin Laden aos Estados Unidos da América, apesar de saberem que haveria represálias. Talvez mais relevante, rejeitaram entregar o líder da al-Qaeda à Arábia Saudita, à época a principal patrocinadora dos talibãs.

O acordo deu frutos. A partir de território afegão, a al-Qaeda estabeleceu campos de treino, mecanismos de recrutamento e esquemas de financiamento. Dispersou e comandou células por várias latitudes. Orquestrou atentados terroristas de grande alcance internacional, entre os quais os ataques às Torres Gémeas e ao Pentágono a 11 de setembro de 2001. É um dos períodos mais gloriosos na História da al-Qaeda. O território afegão e a aliança com os talibãs revelaram-se tão vantajosos que mesmo depois da invasão norte-americana de outubro de 2001, em resposta aos ataques de 11 de setembro, o núcleo central da al-Qaeda manteve participação ativa na coordenação de ações terroristas no Ocidente, como a perpetrada a 11 de Março de 2004 em Madrid.

O renascimento da al-Qaeda

Um relatório da Organização das Nações Unidas publicado em maio de 2020 assevera que a relação entre al-Qaeda e talibãs manteve-se sólida desde a remoção do regime talibã, há 18 anos, e está reforçada por promessas de lealdade por parte da al-Qaeda ao “líder dos fiéis” talibã. Entre outras, refere-se uma reunião ocorrida na província de Helmand na qual a liderança talibã garantiu à al-Qaeda a continuidade da aliança histórica e fraterna, independentemente dos custos que possa ter. As informações recolhidas pelos relatores demonstram que a al-Qaeda adquiriu força no Afeganistão, com novos campos de treino, continuando a operar com sob proteção talibã: tem presença significativa em 14 das 34 províncias, com o número total de militantes armados algures entre os 400 e os 600.

Porventura mais relevante, o documento da ONU menciona uma reunião ocorrida em fevereiro de 2020 entre Ayman al-Zawahiri, líder da al-Qaeda desde a morte de Bin Laden, e membros da rede Haqqani, grupo que opera entre o Paquistão e o Afeganistão. Fundada por Jalalludin Haqqani, o antigo mujahideen que acolheu Bin Laden no Afeganistão após o exílio sudanês, esta rede aliada dos talibãs teve o cuidado de consultar a al-Qaeda sobre o acordo firmado com os Estados Unidos da América, peça-chave da retirada militar do Afeganistão. Por outras palavras, desde o início do acordo com Washington que os talibãs fazem vista grossa à norma que lhes impõe um corte de relações absoluto com todas as organizações terroristas.

Os analistas dividem-se quanto à avaliação da capacidade atual da al-Qaeda no mundo. Há quem sinalize a debilidade da organização quando comparada com o seu período áureo. Pelo contrário, outros atestam que este é o momento de maior vitalidade desde os atentados de 11 de setembro. Embora soe paradoxal, todos terão razão. A operação militar dos Estados Unidos da América no Afeganistão debilitou a organização, forçando Bin Laden à reclusão numa casa-bunker na localidade paquistanesa de Abbottabad, onde há 10 anos foi morto por uma unidade de operações especiais da marinha norte-americana, mas a verdade é que a al-Qaeda se reestruturou e aprendeu com os erros cometidos.

Segundo Fernando Reinares, diretor do programa sobre terrorismo e radicalização no Real Instituto Elcano, Bin Laden tomou duas decisões que salvaguardaram o grupo. Primeiro, ordenou ao comando de operações externas que facilitasse ataques na Europa e América do Norte em conjunto com organizações associadas ou simpatizantes. Segundo, autorizou os ramos locais da al-Qaeda a serem fonte de ameaça terrorista fora das suas áreas de atuação – a título de exemplo, a al-Qaeda na Península Arábica interveio em várias tentativas de ataque nos Estados Unidos e lançou uma campanha de propaganda para instigar atos de violência por atores solitários.

Enquanto o Ocidente se dedicou a combater o autoproclamado Estado Islâmico, a al-Qaeda aproveitou para emendar a mão. Parte da correção passou por aprofundar relações de proximidade com populações de países de maioria islâmica, suprindo carências sociais não atendidas pelos Estados, para ganhar simpatias populares e multiplicar alianças com milícias islâmicas e tribos.

Reinares refere um terceiro elemento, crucial para entender a reconstrução da organização na última década e meia: nos termos de documentos lavrados por Bin Laden, a al-Qaeda deixou temporariamente de considerar prioritários os ataques às sociedades ocidentais para entrar numa “nova fase” introspetiva que “corrigisse erros” e permitisse “recuperar a confiança de grande parte daqueles que deixaram de confiar nos jihadistas”. Ou seja, apostar na criação de laços com as comunidades locais em detrimento de grandes campanhas de atentados na Europa e nos Estados Unidos. Inaugurou-se a era de “paciência estratégica” da al-Qaeda.

Enquanto o Ocidente se dedicou a combater o autoproclamado Estado Islâmico, a al-Qaeda aproveitou para emendar a mão. Parte da correção passou por aprofundar relações de proximidade com populações de países de maioria islâmica, suprindo carências sociais não atendidas pelos Estados, para ganhar simpatias populares e multiplicar alianças com milícias islâmicas e tribos. Mais do que ser a vanguarda jihadista global que foi no passado, adaptou-se a realidades regionais e tenta renascer como movimento de massas. A aprendizagem passou também por resistir à tentação de instaurar um califado com base territorial, oportunidade que teve no Mali, evitando desta forma o erro estratégico e operacional cometido pelo autoproclamado Estado Islâmico.

O sucessor de Bin Laden manteve o rumo. No documento Diretrizes Gerais Para o Labor da Jihad, publicado em setembro de 2013 e ainda em vigor, Ayman al-Zawahiri apela à calma dos militantes envolvidos em violência indiscriminada. Pretende evitar os danos reputacionais que afetaram o Estado Islâmico, rival que a al-Qaeda não se cansou de desacreditar. Reforça os princípios definidos por Bin Laden, arguindo que “a regra” para a relação com regimes muçulmanos hereges é “evitar o confronto, com exceção dos países onde o confronto seja inevitável” – o Afeganistão com presença militar americana era um dos casos que admitia exceções. A missão da al-Qaeda deve portanto “[c]oncentrar-se no esclarecimento das massas, de forma a motivá-las, e [instar] os ativistas jihadistas a criar uma força doutrinal organizada, unida e consciente (…)”. Este compromisso é de tal forma profundo que se estipulam orientações impensáveis anos antes:

8. Se possível, evitar matar e lutar contra civis – os não-combatentes – mesmo que sejam familiares de quem luta contra nós. (…)

10. Evitar atacar o inimigo em mesquitas, mercados e ajuntamentos onde este se mistura com muçulmanos ou com aqueles que não lutam contra nós”.

Tudo indica que a nova abordagem resultou: o jihadismo com a marca al-Qaeda está hoje instalado em países como o Mali, Somália, Iémen, Bangladesh, Mianmar, Malásia, Indonésia, Afeganistão, Paquistão, Índia, Argélia, Tunísia, Líbia e Egito, além de vários pontos de contacto no Ocidente. As estimativas mais razoáveis apontam para um total de 40.000 militantes armados.

Também no que respeita a financiamento houve mudanças. Antes da intervenção militar no Afeganistão, durante a época de plácida existência do núcleo central da al-Qaeda nas montanhas de Tora Bora, as fontes de rendimento, cuja gestão era grosso modo centralizada, provinham de doações externas e da ligação aos talibãs, para os quais o tráfico de estupefacientes ofereceu sempre receitas avultadas. A reorientação estratégica postulada por Bin Laden e continuada por Zawahiri descentralizou a gestão, além de diversificar a origem das receitas, agora dependentes de especificidades locais. No Sahel cobram-se taxas a traficantes de bens como tabaco, armas e droga, noutros locais gerem-se negócios de matérias-primas autóctones. Os pagamentos de resgates para a libertação de reféns, bem como as doações vindas da Península Arábica, continuam a alimentar as filiais do grupo. Em síntese: maior descentralização e complexidade, maior dificuldade em desmantelar esquemas de financiamento.

O recuo americano e o futuro do jihadismo da al-Qaeda

A retirada militar dos Estados Unidos da América de território afegão ocorreu nos termos de um calendário pré-definido e não com base nas condições verificadas no terreno. Apesar de os talibãs incumprirem desde a primeira hora o acordo celebrado com a administração Trump, pois mantêm laços firmes com a al-Qaeda, o Presidente Biden optou por aplicá-lo. A retirada militar é legítima e fundada em argumentos atendíveis, mas a sua execução ofereceu aos talibãs um marco temporal para a gestão da reconquista. Pior, ao insistir na retirada quando a deterioração das condições no terreno era evidente, Washington demonstra um fraco compromisso com os seus aliados no combate ao terrorismo internacional.

A par da narrativa triunfante, a organização dispõe agora de condições para aliar o melhor do modelo descentralizado bem-sucedido que construiu nos últimos tempos às vantagens da estrutura de cúpula que manteve no Afeganistão entre 1996 e 2001. Pode também voltar a usufruir dos benefícios políticos e financeiros da convivência umbilical com um movimento talibã poderoso, tal como sucedeu entre 1996 e 2001.

Os últimos anos no Afeganistão constituem um exemplo típico da guerra de desgaste aplicada no passado por guerrilheiros e terroristas da América Latina, Europa e Sudeste Asiático: mais do que derrotar o inimigo, os talibãs e a al-Qaeda procuraram infligir-lhe custos materiais, humanos e políticos de tal forma elevados que forçassem os Estados Unidos da América a abandonar o território. De resto, trata-se de uma meta assumida explicitamente por Ayman al-Zawahiri no ponto 2.A das já mencionadas Diretrizes Gerais Para o Labor da Jihad:

O objetivo de atacar a América é o de envolvê-la e exaurí-la numa guerra de atrito para que acabe da mesma forma que a União Soviética, e retire como resultado de perdas militares, humanas e económicas. Isto afrouxará o seu controlo sobre os nossos países e os seus aliados começarão a cair um por um. (…) Se Alá quiser, a próxima fase testemunhará mais retiradas americanas e perdas de território, o que abalará a autoridade dos seus aliados”.

Missão cumprida. O recuo norte-americano é interpretado nos meios jihadistas como prova do êxito da “paciência estratégica”. Com a habitual grandiloquência, a al-Qaeda fará do Afeganistão o lugar mítico onde derrotou as duas superpotências. Isto acontece no ano em que se assinalam 20 anos dos atentados de 11 de setembro e 10 anos da morte de Bin Laden, duas efemérides redondas que a propaganda jihadista e os seus canais de recrutamento aproveitarão com zelo e entusiasmo.

A par da narrativa triunfante, a organização dispõe agora de condições para aliar o melhor do modelo descentralizado bem-sucedido que construiu nos últimos tempos às vantagens da estrutura de cúpula que manteve no Afeganistão entre 1996 e 2001. Pode também voltar a usufruir dos benefícios políticos e financeiros da convivência umbilical com um movimento talibã poderoso, tal como sucedeu entre 1996 e 2001. Dito de outra forma, a retirada norte-americana do Afeganistão oferece à al-Qaeda o que muitos de nós desejamos: regressar a um passado de bonança sabendo o que sabemos hoje. Para aproveitar esta viagem no tempo apenas necessita da paciência e da capacidade de adaptação que já demonstrou ter.

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