Índice
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[Este é o segundo de oito artigos sobre a história e nomenclatura do calçado e suas marcas mais conhecidas. O anterior pode ser lido aqui]
A massificação do sapato
Pouco a pouco, os sapatos foram tornando-se regra na classe média das cidades europeias, mas os pobres e remediados das zonas urbanas e a maior parte dos camponeses continuaram, até ao início do século XX, a andar descalços ou a usar tamancos de madeira. Estes eram o calçado mais frequente nos trabalhos do campo, nas minas, na construção e noutros trabalhos pesados que faziam perigar a integridade dos pés, ou quando era preciso fazer percursos longos sobre pisos abrasivos ou cobertos de neve ou lama.
Nos estratos mais humildes da população, os sapatos, quando os havia, estavam limitados a um par por membro da família, eram calçados apenas em ocasiões festivas e esperava-se, pelo menos nos adultos, que durassem muitos anos – o que implicava sucessivas visitas ao sapateiro, até que este decretasse que já não havia remendo que pudesse salvar o sapato. As crianças representavam um problema bicudo para as famílias de poucas posses, uma vez que o seu crescimento impedia que os sapatos pudessem ter uma vida longa (embora pudesse recorrer-se ao estratagema de os fazer rodar entre irmãos).
Tanto os sapatos dos ricos como dos pobres eram fabricados um a um, por sapateiros e não era o facto de os sapatos dos ricos empregarem materiais de melhor qualidade e com maior esmero que garantia que fossem confortáveis ou ergonómicos. Seja como for, andar descalço foi, progressivamente, tornando-se sinónimo de pobreza e fonte de humilhação e estigma social. E se os retratos das classes baixas e média do final do século XIX e início do século XX as pessoas surgem invariavelmente calçadas, isso é porque, nessa tempo, tirar uma fotografia era uma ocasião solene, que requeria as melhores roupas e sapatos.
“A árvore dos tamancos” (“L’albero degli zoccoli”), um filme de Ermanno Olmi, que foi distinguido com a Palma de Ouro do Festival de Cannes em 1978 e retrata, pungentemente, num registo simultaneamente realista e poético, a dureza da vida dos camponeses na região de Bergamo no final do século XIX, dá ideia de quão árduo era para as famílias pobres conseguir calçar os filhos. Um rapazito de uma das famílias retratadas regressa um dia da escola, que fica a seis quilómetros de distância, com um dos seus tamancos de madeira partido; uma vez que a família não tem posses para comprar um par novo e a criança tem revelado queda para os estudos, o pai decide, pela calada, abater um amieiro e dele talhar um par de tamancos para o filho; o proprietário das terras que a família arrenda acaba por saber quem abateu a árvore e, implacável, expulsa das suas terras o infractor e a sua infortunada família.
Em meados do século XIX, nos países mais desenvolvidos do Ocidente, o fabrico de sapatos deixou de ser um artesanato e converteu-se numa indústria e a produção em massa permitiu baixar o seu custo – ainda assim, na Europa mediterrânica, pelo século XX dentro, as pessoas dos estratos mais humildes continuaram a passar boa parte da vida descalças. Ao longo do século XX, os sapatos comuns continuaram a embaratecer, graças ao aperfeiçoamento dos processos industriais, ao desenvolvimento de sucedâneos sintéticos de materiais mais nobres.
Nas últimas décadas, assistiu-se à transferência do grosso da produção dos países desenvolvidos para países do sul da Ásia com mão-de-obra abundante e barata (e, frequentemente, com idade para estar na escola, não numa fábrica), regulamentação laboral débil e fiscalização permissiva. O fenómeno foi particularmente avassalador no segmento dos sapatos desportivos, estando hoje a produção das marcas ocidentais de renome quase exclusivamente concentrada na China, Vietnam, Camboja e Indonésia.
Estima-se que sejam produzidos anualmente mais de 22.000 milhões de pares de sapatos, o que seria equivalente a 2.8 pares de sapatos novos por habitante do planeta (dados de 2022). Este sapatos representam um volume de negócios de cerca de 382.000 milhões de dólares, dos quais cerca de 72.700 milhões de dólares correspondem a sapatos desportivos, um segmento de mercado que só desabrochou a partir da segunda metade do século XX.
O top 10 dos países produtores de sapatos é assim constituído (dados de 2021): 1.º China 12.016 milhões de pares, 2.º Índia 2600 milhões, 3.º Vietnam 1360 milhões, 4.º Indonésia 1083 milhões, 5.º Brasil 806 milhões, 6.º Turquia 547 milhões, 7.º Paquistão 513 milhões, 8.º Bangla Desh 513 milhões, 9.º México 191 milhões, 10.º Filipinas 188 milhões, sendo de destacar que a China, sozinha, produz muito mais sapatos do que os outros nove países juntos. A Ásia representa 88.2% da produção mundial, seguida pela América do Sul, com 4.7%; a Europa e a América do Norte, embora sejam os continentes onde têm sede praticamente todas as marcas que serão tratadas nesta série, representam apenas 2.8 e 1.4% da produção mundial, respectivamente (dados de 2021). Na Europa, o maior fabricante de sapatos é, por larga margem, a Itália, que representa 50% da produção europeia, seguida por Espanha, Portugal e Roménia – boa parte da produção europeia que restou da deslocalização maciça para a Ásia consiste em sapatos de luxo feitos (pelo menos parcialmente) à mão. Uma vez que estes sapatos têm um preço unitário muito superior ao dos sapatos produzidos em massa no Sudeste Asiático, quando se considera o valor da produção em vez da quantidade, a desproporção entre Europa e Sudeste Asiático atenua-se um pouco.
Em termos de número de sapatos exportados, a China representa 60.4% do total mundial, sendo seguida a grande distância pelo Vietnam (9.9%), Indonésia (3.3%).
Os primórdios do sapato desportivo
Algumas modalidades desportivas de hoje remontam à Grécia Clássica, mas os gregos de então ficariam surpreendidos pelo conceito de “sapato desportivo”, pois, para eles, fosse qual fosse a modalidade, desporto era algo que se praticava descalço e, na maior parte dos casos, sem qualquer roupa – uma associação que sobrevive no termo “ginásio”, que provém do grego “gymnasion” (de “gymnos” = “nu”).
Um dos primeiros registos de um sapato concebido especificamente para a prática de desporto remonta a Henrique VIII de Inglaterra (reinado: 1509-1547), que era aficionado do “jeu de paume” (ver Croquet, clavas ou pelota basca: A história das modalidades olímpicas mais improváveis) e que, insatisfeito com os sapatos correntes, encomendou um modelo que lhe proporcionasse maior apoio e conforto.
Porém, só na segunda metade do século XIX, com a generalização da prática de desporto – sobretudo ténis e croquet – entre as classes abastadas britânicas, começou a surgir procura por sapatos leves e flexíveis. A solução mais expedita foi a adopção pelos atletas dos sapatos de praia então em voga, com sola de borracha e parte superior em tela. Pelo contexto de uso balnear, estes sapatos eram conhecidos como “sandshoes” (sapatos de areia) ou como “plimsoll shoes”. A segunda designação devia-se à risca que, em muitos destes sapatos, demarcava o limite superior da borracha, de forma a indicar a quem o calçava que, se a água subisse acima dessa linha, os pés ficariam molhados,; esta risca era análoga da “Plimsoll line” ou “linha de água”, uma marcação no casco dos navios que indica qual a carga máxima que é permitida sem comprometer a flutuação do navio e cujo nome (em língua inglesa) provém do deputado britânico Samuel Plimsoll, que em meados do século XIX, pugnou pela obrigatoriedade desta linha, de forma a evitar naufrágios por sobrecarga do navio. O termo plimsoll continua hoje a designar em muitos países anglófonos um sapato desportivo “básico”, similar a estes antepassados oitocentistas.
Por outro lado, devido à associação inicial com o ténis, o termo “tennis shoes” acabou por designar qualquer tipo de sapato desportivo – o que deu, em português, o termo “ténis” (cujo singular é enunciado por alguns falantes desorientados como “téni”). Na Grã-Bretanha usa-se mais frequentemente o termo “trainer”, pressupondo que é usado na prática de uma actividade desportiva, enquanto nos EUA prevalece o termo “sneaker”. Este já estaria em uso pelo menos desde 1887, mas a sua cunhagem costuma ser atribuído ao publicitário americano Henry Nelson MacKinney, que, em 1917, por a sola de borracha destes sapatos ser silenciosa e permitir agir furtivamente, terá proposto o termo “sneaker” (do verbo “to sneak” = “esgueirar-se, insinuar-se, mover-se discretamente”). Na verdade, “sneaker” parece provir de “sneaks” (termo ainda em uso, sobretudo no Nordeste dos EUA), que surge pela primeira vez em Female life in prison, by a prison matron (1862). Neste livro, que se apresentou como um relato verídico da vida nas prisões femininas britânicas, pela pena de uma guarda prisional, mas que foi escrito, na verdade, pelo romancista Frederick William Robinson, os sapatos de borracha de um dos guardas são designados como “sneaks”; o termo voltou a surgir, novamente associado ao lado mais sombrio e marginal da sociedade, num livro de 1883, In strange company, pelo jornalista britânico James Greenwood, que, num relato de uma visita ao submundo urbano, escreve que “o meu guia usava um par do que, na terminologia criminal, são designados como ‘sneaks’, sapato com parte superior em lona e sola de borracha”.
Na viragem dos séculos XIX/XX, o fabrico de sapatos desportivos, que começara por ser feita em moldes artesanais, foi entrando na era da produção industrial: em 1882, em Philadelphia, Waldo M. Claflin iniciou a produção de sapatos de baseball. Em 1892, a U.S. Rubber Company (hoje Uniroyal) lançou no mercado americano de massas os primeiros sapatos de sola de borracha, que rapidamente conquistaram o público juvenil. Em 1895, o jovem britânico Joseph William Foster concebeu os primeiros sapatos especificamente concebidos para a corrida (seriam produzidos em massa pela sua firma, a J.W. Foster & Sons, que deu origem à Reebok). Em 1907, a Spalding, empresa americana especializada em artigos desportivos (fundada em 1876 e ainda hoje no activo), concebeu os primeiros sapatos de basquetebol.
Pouco a pouco, os sapatos desportivos extravasaram o nicho da prática desportiva e tornaram-se nos sapatos usuais dos jovens em idade escolar e nos sapatos “de lazer” dos adultos.
Uma oportunidade perdida
Os sapatos desportivos têm vindo a assumir, nas últimas décadas, o papel de calçado do dia-a-dia e, apesar de alguns empregadores ainda interditarem o seu uso aos seus colaboradores, há cada vez maior número de lugares e circunstâncias em que são admitidos, em parte por cada vez mais “celebridades” e figuras públicas surgirem em público envergando este tipo de calçado. A massificação do uso de sapatos desportivos (que passou a abranger pessoas que, na sua vida adulta, nunca correram nem 50 metros) e o desenvolvimento, nas últimas décadas, do segmento dos sapatos desportivos de luxo (e hiper-luxo) levou a que o mercado deste tipo de calçado conhecesse um forte crescimento, que só conheceu quebra em 2020 e 2021, em resultado da pandemia de covid-19, para retomar a ascensão em 2022, quando atingiu os 72.700 milhões de dólares, superando o recorde de 2019, de 69.800 milhões de dólares. Entretanto, em 2016, tinha sido ultrapassado um marco: pela primeira vez na história da Grã-Bretanha, as vendas de sapatos desportivos entre o público feminino excederam as vendas de sapatos de salto alto.
Esta generalização do uso dos sapatos desportivos no dia-a-dia trouxe alívio a muitos milhões de pés martirizados pelos sapatos “clássicos”, mas, ainda assim, a concepção da maioria dos sapatos desportivos para uso “casual” continua, em maior ou menor medida, a adoptar (por moda ou inércia) opções contrárias ao que ditaria a racionalidade.
Acontece que, quando os sapatos desportivos começaram a popularizar-se, nas décadas de 1950 e 1960, já a humanidade nos países desenvolvidos se habituara, graças à omnipresença do tacão, a adoptar uma passada em que o calcanhar recebe o primeiro (e mais forte) impacto, portanto os sapatos desportivos incorporaram na sua concepção o “pecado original” da elevação do calcanhar – ainda que muitos dos ténis da primeira metade do século – plimsols, Keds, Converse – fossem de sola praticamente rasa (“zero drop” no jargão dos sapatos desportivos).
Outro “pecado original” que os sapatos desportivos herdaram dos sapatos “clássicos” foi a recusa em aceitar a forma natural do pé: embora a frente dos ténis seja mais ampla que a dos sapatos “clássicos”, a maioria dos modelos impõe constrangimento aos dedos, o que, além de ser desconfortável, proporciona uma menor base de apoio e, logo, prejudica o equilíbrio.
Mas os sapatos desportivos não só reproduziram antigos “vícios” como criaram um novo: o almofadamento da sola. Este pode ser visto como uma reacção sensata ao facto de 1) as superfícies ocupadas com terra e erva dominantes na era pré-industrial terem dado lugar a cimento e alcatrão e 2) o hábito de se andar sempre calçado fazer com que poucas pessoas tenham pés calejados ou bem desenvolvidos do ponto de vista ósseo e muscular.
Se a protecção contra a abrasão é desejável na maioria dos pisos, já o almofadamento maciço da sola, embora possa ser benéfico em corridas de fundo sobre pisos duros ou semeados de pedras e cascalho, não tem utilidade na maioria das situações do dia-a-dia. Pelo contrário, compromete a estabilidade, ao colocar o pé sobre uma espessa massa esponjosa e ao privá-lo de receber informação sensorial – segundo a marca de sapatos minimalistas Vivobarefoot, 70% da informação de que o cérebro necessita para operar a locomoção provém dos terminais nervosos nas solas dos pés e, se estes forem isolados do piso por uma almofada, é claro que terão poucos dados a enviar para o cérebro. Não é por acaso que bailarinos clássicos, ginastas e acrobatas, para quem a percepção do seu próprio corpo e da relação do seu corpo com o chão que pisam é crucial, usam sapatos reduzidos à sua mínima expressão.
Todos estes factores fazem com que o pé deixe de ser uma estrutura activa e flexível para se tornar num naco de carne inerte e flácida embrulhado numa espessa camada de esponja.
Esta tendência perversa atingiu um pico nos “chunky sneakers” da década de 1980, que, graças ao carácter cíclico da moda, que faz com que, mais tarde ou mais cedo, as aberrações do passado façam um regresso triunfal, voltaram a estar em voga no final da 2.ª década do século XXI. Com a ajuda das marcas de luxo e da troupe de “famosos” que funcionam como “ditadores da moda”, tem-se assistido a uma proliferação de modelos extravagantemente acolchoados, que parecem uma versão esponjosa das “chopines” dos séculos XV-XVI.
Na loja online de calçado desportivo Kicks explana-se a “filosofia” subjacente à voga dos “chunky sneakers”: “apesar deste [sic] modelo de calçado não ser propriamente ‘apelativo’, equilibrado ou até harmonioso, o certo é que existe um cool factor inegável nos chunky sneakers. Famosos, bloggers e trendsetters à escala mundial têm contribuído para reforçar esta tendência de tal forma que qualquer um quer, também, rockar [sic] um par. […] Se os souberes usar – sejam eles de que marca forem – serás decididamente capaz de arrasar com qualquer look”.
Está aqui explanada, com desarmante candura, a insensatez que, há séculos, nos leva a seguir modas disparatadas e a infligir suplícios a nós mesmos, mediante o uso de corpetes, espartilhos, gravatas e caixões-para-pés. Como admite a Kicks, o sapato não tem de ser confortável, ergonómico, prático, higiénico ou sequer esteticamente apelativo, o que importa é que seja calçado ou explicitamente publicitado por um “famoso”, seja ele Luís XIV ou Justin Bieber (268 milhões de seguidores no Instagram), Catarina de Medici ou Chiara Ferragni (“fashion influencer” com 27 milhões de seguidores no Instagram), Audrey Hepburn ou A Pipoca Mais Doce (800.000 seguidores no Instagram).
A nova voga do hiper-acolchoamento já chegou entretanto aos ténis de gama média e o argumento usado para os vender é que são “super-confortáveis”. É certo que o conceito de conforto comporta subjectividade, mas a ideia de que um pé se sentirá tanto mais confortável quanto maior for a espessura da sola e, logo, a privação sensorial e a desconexão com o solo, equivale a afirmar que uma pessoa se sentirá tanto mais feliz quanto mais sedada estiver.
Pode, pois, concluir-se que a ascensão do sapato desportivo, ainda que tenha sido um progresso em relação aos sapatos “clássicos”, em termos de saúde e conforto dos pés, acabou por tomar opções, ditadas pela inércia e pela moda, que impediram uma verdadeira libertação dos pés.
Interlúdio ornitológico-marcial: O passo de ganso
Quem tente caminhar ou correr descalço sobre pisos duros ou gravilha descobrirá rapidamente que o “ataque de calcanhar” (“heel strike”) é doloroso, pelo que será compelido a abordar o solo com a zona média do pé (“midfoot strike”) ou com a zona dianteira do pé (“forefoot strike”), que são os tipos de passada que o Homo sapiens terá empregado durante muitos milénios, até ter começado a calçar sapatos com tacão.
Mas a sobrelevação e/ou acolchoamento do calcanhar ficaram tão profundamente entranhados no calçado e condiconaram a tal ponto a motricidade humana (pelo menos nos países desenvolvidos) que é muito improvável que o “ataque de calcanhar” alguma vez venha a perder a sua posição de domínio. Com o tempo, este tipo de passada, larga e em que a perna é projectada para a frente até ficar completamente esticada, ganhou uma conotação de assertividade, confiança e virilidade, que contrasta com a imagem de hesitação, temor e até “efeminação” transmitida pelo ataque ao solo com a parte dianteira do pé, a que está associada uma passada de curta amplitude e em que, no movimento de avanço da perna, os joelhos não chegam a atingir um ângulo de 180º.
Quem entenda que estas associações entre motricidade e psicologia são exorbitantes, deverá considerar aquela que é a máxima – e mais grotesca – expressão do “ataque de calcanhar”: o passo de ganso.
[Nuremberga, 1934: Tropas alemãs desfilam em passo de ganso. Excerto de Triumph des Willens (O triunfo da vontade, 1935), documentário-panfleto realizado por Leni Riefenstahl em torno do 6.º Congresso do Partido Nazi:]
https://youtu.be/uaCEPnoOobI
Este teve origem na hiper-militarista Prússia de meados do século XVIII, por iniciativa de Leopold I, príncipe de Anhalt-Dessau e marechal do exército prussiano, tinha como propósito facilitar que os soldados marchassem em linhas firmes e ordeiras em direcção ao fogo inimigo e, segundo o historiador Norman Davies, pretendia transmitir várias mensagens: “aos generais prussianos, que a disciplina e pujança atlética dos seus homens os habilitavam a cumprir qualquer ordem, por mais penosa e absurda que fosse; aos civis prussianos, que toda a insubordinação seria implacavelmente esmagada; aos inimigos da Prússia, que o exército prussiano não era formado por rapazes de uniforme, mas por super-homens em formação de combate; ao mundo em geral, que a Prússia não só é forte como arrogante”.
Desde então, as tácticas de combate mudaram radicalmente, mas o passo de ganso continuou (e continua) a ser usado um pouco por todo o mundo, ainda que restrito a paradas e outras cerimónias militares. Não é por acaso que o passo de ganso ficou vinculado às forças armadas dos regimes mais autoritários, marciais e agressivos, como a Alemanha nazi e a URSS stalinista. Por influência desta última, alastrou para os países da Europa de Leste que ficaram na sua órbita após a II Guerra Mundial e para os países africanos e asiáticos a quem a URSS prestou assistência militar. Foi adoptado na China no início do século XX, numa altura em que a recém-criada República da China tentou impor o modelo prussiano ao seu exército e, após algum tempo de olvido, regressou no início da década de 1950, quando o regime de Mao precisou de afirmar-se.
O passo de ganso mantém-se em uso na América Latina, independentemente da inclinação para a esquerda ou para a direita do regime político em causa, e continua em voga na Rússia de Vladimir Putin, um homem com manifesta obsessão por proclamar a sua virilidade.
Mas onde esta jactanciosa forma de locomoção mantém maior vigor é, sem dúvida, no mais militarista e autoritário dos regimes, a Coreia do Norte – provavelmente há mais norte-coreanos a praticá-lo do que a dançar as danças tradicionais do seu país.
[Parada militar em Pyongyang: Várias unidades militares dão mostras do seu esmerado treino no passo de ganso, entre 0’38 e 1’18:]
Divagação erótica: Saltos altos e pin ups
No pós-II Guerra Mundial, ao mesmo tempo que o uso de sapatos desportivos como calçado para crianças e adolescentes e para os momentos de lazer e descontracção dos adultos ganhava popularidade, a moda arquitectava novos suplícios para os pés femininos.
A partir de meados do século XIX, não só a moda feminina ditara o regresso do salto alto (ver capítulo “Luís XIX, o Rei dos Influencers” em Os primeiros passos: Breve história das marcas de calçado, pt. 1), como se assistira ao início do processo da sua sexualização, uma vez que os pioneiros da fotografia erótica ganharam o hábito de fotografar as suas modelos envergando pouca ou nenhuma roupa, mas calçando sapatos de salto alto. Esta vinculação acentuar-se-ia fortemente durante a II Guerra Mundial, com a proliferação entre os soldados americanos de fotos de pin-ups com saltos altos; no pós-guerra, com a cumplicidade de estrelas de cinema e socialites, o calcanhar foi sendo empurrado para alturas vertiginosas, acabando por dar origem ao stiletto (do italiano “stiletto” = “pequena adaga”), de salto impossivelmente alto e fino (“salto-agulha”), graças à introdução do aço na sua construção, já que um salto de madeira de espessura similar era incapaz de suportar o peso do corpo.
A invenção do stiletto é disputada entre (pelo menos) quatro grandes nomes do design de sapatos, o francês Charles Jourdan (1883-1976), o francês filho de imigrantes italianos André Perugia (1893-1977), o italiano Salvatore Ferragamo (1898-1960) e o francês Roger Vivier (1907-1998), como se houvesse mérito na invenção de um instrumento de tortura. Vivier, que trabalhou para a Christian Dior e reivindicava ter inventado o salto-agulha em 1954 (bem como o sapato de plataforma – outra aberração –, em 1937), ficou conhecido como “o Fragonard dos sapatos”, mas seria mais justo o apodo de “Torquemada dos pés”.
O que comandou esta evolução (ou, melhor, involução) foi o argumento de o salto alto fazer as pernas das mulheres parecerem mais longas e (supostamente) mais sexy. Com efeito, alguns estudos realizados neste século revelaram que homens e mulheres consideram que os saltos altos tornam as mulheres consideravelmente mais atraentes, talvez por as forçar a adoptar um passo bamboleante, com o traseiro projectado para trás e o peito projectado para a frente, mas resta saber quanto nesta preferência será inata, ou seja, de ordem biológica, e quanto resultará da aceitação inconsciente de uma convenção cultural (os ditos estudos também não elucidaram se as mulheres acharão mais atraentes os homens de salto alto). E uma vez que os saltos altos as fazem (supostamente) parecer mais atraentes, as mulheres vêm neles uma fonte de poder, auto-confiança e domínio, pela qual a tortura dos pés parece ser um preço que vale a pena ser pago – dos muitos ludíbrios concebidos pela sociedade patriarcal para subjugar as mulheres, este é um dos mais insidiosos e perversos.
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[Marilyn Monroe em O pecado mora ao lado (The seven year itch, 1955)]
Resulta daqui que a vinculação entre salto alto e erotismo se encontra hoje profundamente arraigada e nos meios do espectáculo e do jet-set o uso de sapatos de salto alto tornou-se mesmo obrigatório, como explicou uma vez a actriz Kristin Chenoweth à CBS: “Quatro horas de saltos altos são uma tortura para os pés, mas vale a pena. Quem não é capaz de usar saltos altos, não deveria estar no show business” […] Num mundo dominado por homens, os saltos altos fazem sentir-me mais poderosa. Eu poderia arrancar um olho com um dos meus tacões, se quisesse. É só uma ideia”.