Às nove e meia da manhã de um domingo, estou a entrar em casa do Bernardo Barreiros, de trinta e um anos, que daqui a poucas horas vai pela primeira vez defender o título de campeão nacional de wrestling, no circuito WP (Wrestling Portugal).
O Bernardo tinha prometido mostrar-me o pequeno altar ao wrestling que guardava no quarto e que vejo agora ser um pequeno ringue com umas quinze action figures de wrestlers famosos dos Estados Unidos. Em baixo, na cama, o cinto de campeão envolve um cãozinho de peluche. Mal começamos a conversar, o Bernardo diz-me que não gosta muito de desportos de combate e que o wrestling é mais parecido com teatro do que com luta, só que em vez de chorarem à frente do público, andam ao soco uns com os outros. Explica-me que a escolha do campeão é feita pelo booker, uma espécie de guionista do WP chamado João Sena (nome de batismo, sem qualquer relação, por espantoso que possa parecer, com o wrestler estadunidense). Tento saber o critério para a escolha e o Bernardo fala-me de uma complicada articulação entre assiduidade nos treinos, robustez da personagem e capacidade de vender bilhetes.
Pouco antes de rumarmos ao Centro Shotokai de Queluz, o Bernardo conta-me que quando era puto passava as aulas a imaginar falas, golpes e nomes artísticos, mas que acabou por ter como stage name o seu nome de batismo e que o seu signature move (aquele golpe que mais ninguém tem) nasceu de um lamentável acaso: num treino, tropeçou e deu uma cotovelada em vez de um soco num adversário. A seguir, peço-lhe que me explique como se cria um alter-ego wrestler e ele diz que é só pegar na nossa personalidade e aumentá-la dez vezes, enaltecendo as partes más ou boas consoante a necessidade do booker. Conta-me ainda que a sua primeira T-shirt de combate tinha um círculo na parte da frente a fazer lembrar as camisolas da seleção no Euro-2004. Odiava tanto aquilo que achou boa ideia torná-la parte de uma personagem que desejava que o público desprezasse.
Chegados ao recinto do evento, vejo uma série de miúdos de vinte e poucos anos com o triplo do meu caparro a saltitar em cima do ringue, a espalhar cadeiras pela sala ou a testar músicas e vídeos para a sua entrada em cena num ecrã que insiste em desobedecer. Outros vão chegando e são recebidos com abraços. A um canto, o Damião, que no último evento foi coroado campeão de honra, varre o pó. Peço-lhe dois minutos do seu tempo e ele vai a correr ao balneário buscar o cinto de campeão para mo mostrar. Tem 17 anos. Diz-me que ser o mais novo campeão da WP de sempre é um sonho tornado realidade, mas que já tem os olhos no título nacional para depois, daqui a uns anos, quem sabe, chegar à América. Conta-me que cresceu num bairro muito violento e pergunto-lhe se acha que foi isso que o fez querer dramatizar a violência num recinto a fingir. Ele olha para mim e responde que nunca pensou nisso, mas que talvez sim.
Como sempre faço para estes artigos, cheguei lá sem saber quase nada do que iria acontecer, pelo que me explicam agora que haverá dois combates pelos dois títulos WP, um outro combate só porque sim e uma disputa pela taça real em que quinze combatentes vão entrando no ringue com um minuto e meio de intervalo até que, depois de catorze serem atirados borda fora por cima da terceira corda, só sobre o vencedor. Começam o ensaio para sincronizarem tempos e golpes, ainda a meio-gás, e eu refastelo-me na cadeira a ver aquele festival de porrada mentirosa. Dois deles chamam-me à atenção: o Michael e o Baltazar. O Michael veio de propósito do Algarve para isto e mal entra no ringue desata a distribuir fruta que nem gente grande até que leva com o corpanzil do Paulo Knockout Cruz em cima e dá cabo de um pé. O ensaio geral continua, mas todos os que estão de fora vêm assisti-lo e consolá-lo, sem grande sucesso. Ao conversar com ele, noto que tem dificuldade em conter as lágrimas. Aquele combate seria o primeiro em muitos meses e logo contra o primo. Só alguém com um coração de pedra ou que não tenha de aturar primos em jantares de Natal não ficaria comovido com tão grande tragédia.
Desejo-lhe sorte e volto para o meu lugar a tempo de ver a entrada em cena do Baltazar, um tipo com cara de poucos amigos, de mohawk e rabo de cavalo, casaco de cabedal e imagética um pouco mais do que ligeiramente nacionalista. O ensaio lá acaba e vou para os bastidores, onde dou com ele a comer arroz de tofu. Venço a natural barreira que se interpõe tanto entre mim e um brutamontes de body de licra com mensagens pintadas a vermelho-sangue como entre mim e um tupperware com tofu, e meto conversa.
Descubro que o temível Baltazar viveu em Londres uns anos e foi lá seis vezes campeão de wrestling, tendo desenvolvido a personagem de um ativista vegan que apregoava ter nas veias o sangue puro de Portugal enquanto tirava couves das cuecas e obrigava os adversários a comê-las, gritando “Kale Them All”. Depois, encostava-os ao peito e explicava-lhes pacientemente que “If it Ain’t Your Mom, It’s Not Your Milk”, ao mesmo tempo que lhes dava sovas de meia-noite. Rio-me sinceramente e lamento o desaparecimento da personagem, mas o Baltazar diz que o ativismo exagerado da personagem a tornava bidimensional e a impedia de produzir discursos que não fossem meras repetições de ideias-chave. Vejo por um segundo ali uma sensatez que às vezes falta aos estudos literários.
Vamos almoçar ao McDonald’s de Massamá com alguns dos lutadores e, enquanto come o seu Happy Meal, o Duarte, o único que além de lutador é também ator, diz-me que criou a personagem porque, por motivos insondáveis, alguém lhe dissera que tinha ar de puto reguila. A seguir, levanta-se e vai a um mostrador ver cartas do Pokémon.
De volta a Queluz, acumula-se agora uma fila de mais de cem pessoas à porta do recinto. Chove desalmadamente. Nos bastidores, os wrestlers nem tentam disfarçar o entusiasmo. As pessoas começam a entrar e percebo que se distribuem mais ou menos igualmente entre familiares de lutadores e entusiastas do wrestling e do WP. Falo com um casal em que ele foi em tempos praticante de wrestling e futebol americano e ela veio por arrasto, não me parecendo muito convencida da bondade da decisão de trocar uma tarde de Netflix com pipocas e chuva a bater nas janelas por duas horas a ver sujeitos com idade para terem juízo a levarem bordoadas nas fuças.
Os combates começam. No primeiro, o Damião dá uma sova de todo o tamanho no Mascarenhas, um rufia mauzão. Os quinze lugares à minha volta são ocupados pela família do Mascarenhas. A mãe dele apupa-o e um dos primos grita Desrespeitador, enquanto sorri. O combate dura uns minutos, até que o Damião decide dar-lhe o que o meu profundo desconhecimento técnico em relação ao tema em apreço nesta crónica imagina que seja um dropkick to the face, ficando o Mascarenhas (que já antes levara uma quantidade industrial de petardões de força no queixo que a mim me pareceram bastante reais) estendido no chão. A multidão vai ao rubro. O Paulo Knockout Cruz, que além de ser campeão nacional de full kempo é uma joia de um moço, sai disparado dos bastidores para provocar o Damião, a quem um fã atrás de mim — cujo nome me esqueci de perguntar, mas que nesta crónica vou assumir que se chamasse Jaime — recomenda ao Damião, aos berros, que não responda. Do outro lado do ringue, um miúdo de cinco anos parece ser o único espectador absolutamente convencido de que nada disto é encenado. Segundos depois, o Paulo Knockout Cruz, desta feita já aplaudido pelo Jaime, volta a entrar em cena para aviar em três tempos o André Mota.
Troco de lugar e sento-me ao lado do casal de há pouco. Ele procura com os olhos a aprovação da namorada, que vai aplaudindo sem grande entusiasmo. Temo pelo futuro da relação.
Agora é a vez de o Stu, primo do Michael, perder contra o Baltazar numa submissão que o kamasutra que consultei apelida de pretzel.
Começa então o combate mais importante do dia, em que o Rafael Pedras tenta roubar o título de campeão nacional ao Bernardo Barreiros. Assim que o Bernardo entra no recinto, apercebo-me de que exagerou na conversa que teve comigo de manhã. A personagem que criou é uma versão da personalidade dele aumentada em apenas 3 a 4%. É um tipo corpulento, porreiro e acessível, que vai cumprimentando os adeptos e que, antes de entrar no ringue, pousa numa das poucas cadeiras vazias a minha camisola, que eu inadvertidamente deixara cair no chão ao dirigir-me para outra ponta da arena. O combate pelo título consiste em estaladões no peito que com certeza se fizeram ouvir em Miraflores e simulações de socos nas trombas com diferentes graus de verosimilhança. O barulho dos corpos a baterem no chão é intimidante. Ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, em que os wrestlers fazem pequenas incisões na testa de forma a sangrarem abundantemente, em Queluz, por motivos éticos ou financeiros, nada disso acontece, o que diminui em grande medida a possibilidade de qualquer espectador, ainda que caído em Queluz de pára-quedas, acreditar genuinamente que aquilo a que está a assistir seja outra coisa que não uma farsa.
Descubro agora que o Bernardo me enganou ainda noutra coisa, uma vez que a manobra especial dele parece ser não a de dar cotoveladas nas beiças mas antes a de, deitado no chão, amparar com a barriga uns cinquenta mortais das cordas do Rafael Pedras, para a seguir levantar o ombro no último centésimo de segundo antes de o árbitro acabar de contar até três. Após o quadragésimo rotativo na cabeça e a septuagésima tentativa de submissão, o Bernardo lá decide dar um passo para o lado enquanto o Rafael salta do canto a uns quatro metros do chão e espeta-lhe um soco que despacha o assunto. A multidão anuncia que O Campeão Voltou e o João Sena, a conter as lágrimas, elogia o talento do candidato derrotado, dizendo que não tem dúvidas de que a jovem promessa alcançará um dia o título. Uma vez que é ele quem escreve o guião dos espectáculos, levo a sério a profecia.
Começa então a Taça Real e os lutadores vão entrando a conta-gotas. Volto para o meu lugar. O Jaime quer que ganhe o Duarte, mas assim que ele entra junta-se ao coro que o apelida de Meia-Dose, para o provocar. Os lutadores que vão sendo introduzidos por pequenos vídeos na televisão da mesa dos comentadores são todos caricaturas, à exceção talvez do Baltazar. Há o trafulha, o batoteiro, o mauzão, o miúdo promissor e o pintas. Isto tem a ver, claro, com a pouca periodicidade dos eventos e com a grande quantidade de espectadores esporádicos na assistência, uma vez que, não havendo sequência, as personagens precisam de ser imediatamente inteligíveis para quem não tenha a história presente. O melhor exemplo disto mesmo é o Auditor, um lutador que na vida real é, claro, auditor e em cujo vídeo de apresentação partilha um contacto telefónico de oito dígitos, também este absolutamente linear (21 345 678). O auditor compra o batoteiro com um Rolex, depois de o aliciar com cinquenta bitcoins, e juntos sobem ao ringue para tentarem eliminar os outros lutadores, que insistem em combater cada um por si. Enquanto a negociação decorre, os lutadores mal combatem para que os espectadores consigam acompanhar o enredo. Os socos tornam-se cada vez menos realistas, mas ninguém parece preocupar-se com isso. No fim, aparece o Leo Rossi, um lutador surpresa vindo de outro circuito, que ganha a Taça Real e se torna no Candidato Principal ao Campeonato Nacional.
Durante a semana, as pessoas a quem disse que iria ao wrestling no domingo confessaram-me invariavelmente não compreenderem o encanto de ver um bando de maluquinhos a fingirem que andam à bulha, em combates com o resultado combinado. Esta posição aparentemente sensata requer uma assunção que me parece falsa.
Ver o wrestling como um desporto a fingir implica acreditar que isto seja mais parecido, por exemplo, com Vale Tudo ou MMA do que com artes performativo-circenses ou com uma simples brincadeira de miúdos, o que foi repetidamente rejeitado por todos os lutadores com que conversei, que admitiram terem pouco interesse em desportos de combate. Mesmo o único que fugia à regra, o Paulo Knockout Cruz, campeão nacional de full kempo, me disse que preferia wrestling à arte marcial que pratica por ali não estar a competir, mas apenas a brincar com os seus amigos. Esta consciência de que tudo não passa de uma brincadeira é, aliás, partilhada por rigorosamente todos os espectadores (menos a tal criança), que não só percebem que muitos dos socos e pontapés não tocam em nenhum corpo, como no fim vão cumprimentar amigavelmente quer os heróis quer os vilões e elogiam a organização, o que certamente não acontecerá noutros eventos desportivos em Portugal. Não existe, portanto, engodo ou a existir é da mesma espécie do que o de termos um inglês quarentão a fingir em cima de um palco ser um melancólico adolescente dinamarquês que, por algum motivo, fala em pentâmetro iâmbico.
Além disso, parece-me haver uma posição irónica dos espectadores de wrestling em relação ao espectáculo a que assistem. Tal como os lutadores criam personagens que, em certo sentido, fazem troça das suas personalidades, os espectadores parecem também, enquanto assistem a este evento, ridicularizar e exorcizar os seus instintos mais primitivos, rindo-se da facilidade com que apupam os mauzões e aplaudem os bonzinhos. Daí que o João Sena, no fim dos combates, tenha pegado no microfone para agradecer a presença neste espectáculo e que um senhor ao meu lado tenha abordado um wrestler que dois segundos antes fingira estar a morrer e que agora se mostrava completamente recuperado para lhe dizer que aquele fora a melhor Royal Rumble da história do wrestling em Portugal. Eu, que nunca vi outra, concordei.
João Pedro Vala é escritor, autor do romance “Grande Turismo”. Passeio das Virtudes é uma rubrica sobre vidas portuguesas e portugueses nas suas vida