É pai de dois filhos já adultos, mas afirma que essa experiência de nada lhe serve para decidir os casos que chegam diariamente ao Tribunal de Família e Menores de Sintra. É que, afirma o juiz Joaquim Manuel Silva, o contexto de uma criança que viva com os pais é completamente diferente de uma criança que vive com um ou com outro. O desafio que encontra diariamente é o de encontrar uma família para cada uma dessas crianças. Mas, confessa, privilegia o pai e a mãe. Diz que os dois são fundamentais para o desenvolvimento da criança e que as suas capacidades são equiparadas. É isso que tenta mostrar num país onde a maior parte das sentenças de regulação parental preferem a mãe. E é sobre isso que este “benfiquista ferrenho”, como se assume nas horas vagas, pretende refletir no livro A Família das Crianças na Separação dos Pais – a Guarda Compartilhada, apresentado há dias em Lisboa.
O livro é o resultado de um mestrado que o juiz já tinha começado há dez anos, quando iniciou funções na área da Família e Menores. Só agora terminou porque precisava de “amadurecer ideias”. Joaquim Manuel Silva começou por tirar o curso de Filosofia. E o filho mais novo tinha um ano quando decidiu ir para Direito à noite, depois do trabalho. Acabou o curso aos 35 anos e só depois entrou na magistratura. Ainda foi a tempo.
Este livro surge na sequência das histórias que todos os dias lhe chegam a tribunal?
Este livro tem uma história. Comecei a fazer a dissertação de mestrado com este mesmo título — “A Família das Crianças na Separação dos Pais – a Guarda Compartilhada” — a pensar a criança primeiro e a família depois. Desde que comecei a trabalhar nesta área que sentia que a justiça não considerava a criança como sujeito. Daí o nome do livro. Já tinha esse sentimento em 2006, quando fiz a parte escolar do mestrado. Por isso parei o mestrado e achei que tinha que amadurecer algumas ideias. Só avancei em 2014. Aliás, ainda hoje [dia da entrevista] fiz essa pergunta a uns pais. Quem era a família deles? Eles nunca incluem o filho. Mas quando perguntam quem é a família do filho, já se incluem.
Após o 25 de abril, houve uma mudança na lei relativamente àquilo que é a família. O que mudou?
Essa mudança noutros países da Europa começou logo nos anos 50. Em Portugal, como a nossa democracia só aparece em 1974, surgiu mais tarde. A grande contaminação e proliferação de informação permitiram um avanço exponencial. Começámos tarde, mas avançámos muito, com a internet, as redes sociais… Este aceleramento vai trazer uma mudança maior nas mentalidades. E isso está a acontecer em Portugal, que não é muito diferente de países como Espanha. Os estudos dizem que avançamos imenso no ponto de vista da integração do mercado do trabalho, mas na parentalidade não. Mas não penso que seja um problema de Portugal, não é por acaso que os países do sul da Europa têm mais problemas de trabalho do que os países do Norte e isso reflete-se na parentalidade. Em Portugal, a mãe continua a ser preponderante nas atividades domésticas e a cuidar dos filhos. Isto porque as empresas olham para elas como indisponíveis. Porquê, se o homem e a mulher têm os dois a mesma responsabilidade em relação aos filhos? Para quem discute a igualdade, como o movimento feminista de Clara Sottomayor, não percebe que enquanto não existir igualdade parental, não existe igualdade no trabalho.
A lei diz que a criança tem direito a ter um pai e uma mãe presentes. Isso depois acontece na realidade, em casos de divórcio?
O Código Civil prevê que uma criança tem direito a ter um pai e uma mãe. E diz que, para se definir uma regulação parental, tem que se ter em consideração o progenitor que facilita os contactos com o outro. Isto vem da Psicologia e tem a ver com a vinculação. A criança está livre com o progenitor mais equilibrado do ponto de vista emocional. Isto parece conferir uma maior igualdade entre pai e mãe, mas na prática não acontece. Somos o único país da Europa que não tem estatísticas sobre o tipo de regulação parental estipulado. E era interessante ver estes dados. Em Portugal a criança não tem o direito a ter pai e mãe. É entregue à mãe com as visitas do pai. Como é que uma criança tem vinculação com o pai ou com a mãe quando há conflitos entre os dois? A criança que está mais tempo com um do que o outro pensa logo que um deles é mais perigoso. A preferência maternal continua a integrar muitas sentenças, sobretudo nos tribunais superiores. E, da minha experiência, isto são estereótipos. Não há uma preferência parental, o único impedimento de um pai é a amamentação. De resto, os pais podem fazer tudo como as mães. Apesar de diferentes, ambos são importantes. A ciência já o provou e os tribunais não estão a aplicar o que a ciência diz.
O que é o superior interesse da criança e quando se começa a falar desse conceito?
Começa a falar-se dele muito cedo, mas é um conceito indeterminado. Enchemo-lo como? Diz-se que cada criança tem o seu superior interesse e isso está relacionado com as circunstâncias dos pais e dela própria. Se eu não tiver conhecimentos de ciência, não vou conseguir entender. Por exemplo, uma criança de três anos, que não conhece o pai, não vai fazer um desenvolvimento adequado porque não está vinculada ao pai. Logo, eu vou fixar uma guarda compartilhada, para trabalhar a relação da criança com o pai. Neste caso consigo convencer a mãe a aceitar. Esta situação em pessoas sem conhecimento de Psicologia não é valorizada. E olhe que o facto de eu ser pai não ajudou muito. Ser casado e ter filhos é uma circunstância muito diferente. Pais separados, por vezes, transformam-se em nada. A competência depende do ambiente e o ambiente depende de como os pais se entendem. Se eu tenho um casamento infeliz e tenso, posso ter capacidade, mas não tenho competência porque estou a gerar stresse na criança e ela não consegue fazer os 77% de desenvolvimento cerebral que tem de fazer desde que nasce. Eu, como juiz, tenho que avaliar essas capacidades
De que forma as suspeitas de violência doméstica e abuso sexual condicionam um processo de regulação paternal?
Crimes sexuais é para inibir. Nos casos de violência doméstica é preciso cuidado. Qualquer conflito entre pais é violência doméstica. Aquelas conceções de sociedade retrógrada são residuais. Ainda assim, às vezes é preciso retirar a mãe e as crianças da zona de atuação do agressor. Mas a maior parte dos casos de violência doméstica são situações de conflito. Tenho o caso de uma criança cujo pai se descontrolou e bateu na mãe. Ela ficou com a casa e com o filho de 14 anos. Um dia abandonou-o lá e foi embora… O descontrolo daquele homem não tem justificação nenhuma, como é obvio, mas resulta de um comportamento disfuncional da mãe.
Tem apostado na guarda compartilhada. De que forma?
Tenho cerca de 30% de guardas compartilhadas. E explico-lhe porquê. Se me aparece um pai e uma mãe que estão de acordo, não sou eu que vou definir a vida deles. Se eles definem um determinado critério por acordo, eu não tenho que contrariar. Portanto, esses 70% estão bem e decidem assim. Os restantes 30% são pais em conflito, e a guarda compartilhada vai resolver isso. Fazer de outra forma é potenciar o conflito. Este método mostrou-se eficaz para mim. A igualdade entre os pais não gera emoções negativas, em que um acha que tem mais competências que o outro. Por outro lado, as crianças ficam super confortáveis com este regime.
O que é a guarda compartilhada?
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A expressão “poder paternal” foi substituída na lei em 2008 por “responsabilidades parentais”. No fundo, segundo o Código Civil português, estas responsabilidades devem ser exercidas por ambos os pais “na constância do matrimónio”. Só se algum deles faltar em questões importantes, é que o tribunal poderá, a pedido, tentar a conciliação. Só quando um dos pais não pode exercer essas responsabilidades é que as responsabilidades parentais são atribuídas apenas a um deles.
O mesmo, refere a lei, deverá acontecer em casos de divórcio ou de separação: as responsabilidades parentais devem ser de ambos os progenitores, à semelhança do que acontece durante o casamento. E a isso convencionou-se chamar guarda compartilhada.
Só em casos excecionais é que o tribunal deverá atribuir estas responsabilidades parentais a um só progenitor — o que não parece acontecer em muitas decisões. Em muitos casos são os pais que decidem que a criança deve permanecer mais tempo com um deles e visitar o outro, num regime pré-estabelecido. Outras vezes esta é uma decisão do tribunal.
Mas, na sua base, a lei prevê que a guarda das crianças seja, assim, compartilhada.
Mesmo tendo a vida em dois sítios diferentes?
O lugar para si e para mim é a casa, é o nosso templo, é onde recuperamos da desorganização lá fora. Essa ideia de lugar como fator de segurança não existe na criança, porque para ela a segurança é estar com os vinculadores. Se sair de casa, o seu filho fica inseguro. A dependência é em relação a si e não à casa. É mais difícil fazer uma residência alternada num adolescente, porque ele, à medida que vai ganhando autonomia, vai criando esse espaço. Num regime com poucas visitas, a criança, mais dia menos dia, acaba por perder aquele pai ou aquela mãe. 99% das minhas crianças não têm problemas em ter duas casas, porque adoram estar com o pai e com a mãe e ficam mais satisfeitas. Numa residência alternada, as crianças mudam de casa quatro vezes. Com guarda exclusiva, com visitas durante a semana ou fim de semana mudam umas oito. A criança não precisa mais de um do que de outro. Ela deve ter duas pessoas de referência, o pai e a mãe, e não só um.
Significa, então, que a criança é muito vulnerável ao conflito dos pais…
Sim. E do ponto de vista da criança eu precisava de encontrar uma resposta ao porquê dessa vulnerabilidade. Tentei perceber na História como chegamos aqui e porque chegamos aqui, entrei na problemática do feminismo e da preferência maternal, queria perceber! E foi esta a resposta que encontrei: que temos pais que estão em conflito e que vão trazer esses problemas emocionais para a parentalidade. A criança acaba inundada destes comportamentos e acaba por imitá-los. A relação dos pais é fundamental para o desenvolvimento da criança. Se esta relação não é boa, causa maus tratos à criança, porque provoca um excesso de cortisol no cérebro, causa stresse. Quando o conflito é constante, por exemplo em casos de abuso sexual, o desenvolvimento da criança paralisa mesmo. A criança não se desenvolve. E estamos a falar de dignidade humana! Eu continuo a achar que isto não é tido em conta pelos tribunais e que o conflito parental está mal avaliado, logo as decisões estão mal tomadas. A ciência explica e os tribunais não querem saber.
Teve uma vez o caso de uma criança que, quando instada a dizer o que queria, lhe disse que “queria ser pessoa”.
Isso foi o caso de uma miúda de 12 anos que tinha uma guarda compartilhada. O problema não estava no regime, mas na relação dos pais. Os pais não se falavam. Eu fixo as guardas partilhadas no meio do conflito, mas acompanho a decisão até que a relação dos pais se altere. Neste caso, os pais não falavam e a miúda não conseguia levar as coisas dela de um lado para o outro. Havia coisas de um lado e do outro. A roupa, do ponto de vista psicológico, é um aspeto gravíssimo. A criança sente que nada lhe pertence. O nível de desenvolvimento desta miúda era bom, o próprio regime de guarda compartilhada tinha-lhe permitido isso, apesar do sofrimento. A pergunta que eu faço é como é que ela estaria numa residência exclusiva. Eu tento que a criança seja pessoa.
Aplica um método em tribunal que se tem revelado muito útil…
Eu reúno com eles, explico tudo isto com apresentações em powerpoint, vídeos, explico a falta dos pais… Faço uma terapia cognitiva, que é a transmissão de conhecimento. Os pais, ao perceberem que estão mal, fazem por mudar. Todos os nossos comportamentos resultam de sentimentos e não de cognição. Então, se temos que mudar esses comportamentos, temos que transmitir-lhes esse conhecimento… Do que é a vinculação, como funciona e como pode prejudicar os seus filhos. Depois há a terapia familiar, sobre a qual eu já não tenho conhecimento, em que é preciso recorrer à psicologia. E aí promovo audições especializadas com a segurança social ou com psicólogos. Depois, marco uma conferência para daí a quatro meses. Em regra, faço três conferências em ano e meio, mas normalmente na segunda conferência já estão bem. Porque foram acompanhados. Tenho 400 processos, 70 casos a ser acompanhados, 80 a 90% podia ter resolvido ali por acordo, mas as crianças não ficariam bem. Não aceito nenhum acordo quando perceciono conflito.
Estas situações de conflito acontecem em todos os estratos sociais?
Sim, é mais difícil mudar nas classes médias altas. É mais fácil convencer as pessoas mais humildes, estão mais disponíveis para aprender. As pessoas que acham que sabem tudo são mais difíceis.