Nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 surgiram novas modalidades como a escalada, o skate e o surf. Em Paris 2024 virá o break dance. São novidades do programa olímpico que procuram chamar um público mais jovem e responder à urbanização do desporto. Noutra época, nas Olimpíadas da Antiguidade, um dos desportos mais populares eram as corridas de quadrigas (carros de quatro cavalos). Esta modalidade, na Antiga Roma, teve num cidadão de origem lusitana, um dos seus corredores mais ilustres: Gaius Appuleius Diocles.
Gaio Apuleio Diocles nasceu em 104 d.C., provavelmente na cidade de Lamecum, na antiga província romana da Lusitânia e actual Lamego. Chegou a Roma com 18 anos, tendo conseguido a primeira vitória aos 20. A primeira de muitas.
Ao contrário do que a obsessão dos ecrãs, grandes e pequenos, com os gladiadores possam sugerir, as corridas de quadrigas eram indiscutivelmente o desporto mais popular na antiga Roma. A paixão pelas corridas levava 150.000 espectadores ao monumental Circo Máximo. Se contarmos com as multidões que se juntavam nas encostas do Monte Aventino e Palatino (o Circo foi construído aproveitando o estreito vale), chegava-se aos 250.000 espectadores.
As corridas eram igualmente mais democráticas, porque enquanto os 55.000 espectadores no anfiteatro eram sobretudo reservados às classes ilustres ou a quem tinha mais poder de compra, ao hipódromo todos podiam ir. Acresce que o calendário equestre comportava mais de 100 corridas por ano, enquanto os jogos de gladiadores ocorriam duas ou três vezes por ano. Outra particularidade era o facto de os circos serem aberto a homens e mulheres, pelo que o poeta Ovídio (que escreveu A arte de Amar) o aconselhava como um local adequado para fazer amizades.
As corridas disputavam-se em pistas ovais: o Circo Máximo tinha 610 metros de comprimento por 180 de largura, com uma spina central (que separava os sentidos da corrida). Conduzindo as quadrigas, os aurigas tinham de circundar várias vezes a pista, passando pelas metas (metae) no final da spina, onde estavam engenhos mecânicos que contavam as voltas. As corridas eram curtas, não durando mais do que 15 minutos, mas espectaculares pela tensão que provocavam.
Tratava-se de um desporto extremamente perigoso, sendo frequentes as colisões e acidentes (os chamados naufragia), muitas vezes com consequências mortais. Como protecção, os aurigas apenas usavam um capacete ligeiro e o hábito de enrolarem as rédeas em volta dos pulsos para melhor controlarem os cavalos, levava a estrangulamentos ou ao arrastamento pela pista em caso de queda. Também as colisões em corrida eram frequentes, sobretudo nos ajuntamentos que se produziam no final das rectas, pelo que muitos condutores de renome morreram na pista. Eram momentos que potenciavam as emoções dos adeptos. Emoções até viscerais, havendo registo de um adepto se ter atirado para a pira funerária de Felix, um auriga morto em corrida.
Disputavam as corridas quatro equipas (factiones) com quatro aurigas cada, ou apenas um, quando se tratava de provas de prestígio. As equipas distinguiam-se de acordo com as cores das listras que decoravam os carros: a Russata (Vermelha) – que, diz-se, inspirou a marca Ferrari -, Albata (branca), Veneta (azul) e Prasina (verde). A vitória era individual, dos aurigas, mas também colectiva, das factiones, o que gerava um sentimento “clubístico” por parte dos adeptos. Esta competição ilustra bem o chamado furor circenses, bem compreensível quando inserido numa sociedade altamente competitiva, que assumia como valores principais o domínio do Homem sobre a Natureza, a valentia individual aclamada pela euforia coletiva e o amor à tensão do perigo iminente.
É neste ambiente que se evidencia Gaio Apuleio Diocles. Fruto da sua coragem, destreza e perseverança, o auriga lusitano foi um dos — senão o — maiores desportistas da Antiguidade. A sua carreira foi ainda excepcional a nível de vitórias, prémios monetários e longevidade. Representou várias equipas: passou três anos nos Brancos, aos 21 transferiu-se para os Verdes onde esteve seis anos, tendo depois conduzido quinze anos pelos Vermelhos até se retirar aos 42. No decorrer da sua carreira obteve 1462 vitórias e 861 segundos lugares nas 4257 corridas em que participou.
Resultados impressionantes que demonstram não só o talento de Diocles como a sua gestão, porque competiu até ao final dos seus 42 anos de idade, caso único entre os aurigas conhecidos, que se retiravam pelos 30. Outro aspecto que o fez destacar dos seus adversários, foi o facto de ter sido o corredor que mais prémios monetários acumulou. É inclusivamente considerado o desportista mais bem pago de sempre, tendo ganho mais de 35 milhões de sestércios, o que em valores actuais daria (segundo algumas estimativas) a incrível soma de mais de 15 biliões de euros, embora cálculos mais conservadores apontem para “apenas” algumas centenas de milhões.
Depois de se ter retirado em 146 d.C., Diocles ainda gozou de uma reforma tranquila, na sua casa de campo em Praeneste, nos arredores de Roma. O final da sua carreira não foi esquecido pelos seus dedicados fãs que lhe ofereceram um epitáfio de pedra onde ficaram gravados os seus feitos. Já após a sua morte, os seus filhos fizeram outra inscrição e, não por acaso, colocaram a dedicatória no templo da deusa Fortuna (Sorte), em Praeneste.
A ligação da Lusitânia às corridas de cavalos não se fica por ter visto nascer um dos seus grandes praticantes. Seguindo uma tradição recebida dos geógrafos gregos, dizia-se que a velocidade dos cavalos lusitanos se devia ao facto de nascerem de éguas fecundadas por Zéfiro, o vento de Oeste que sopra do Atlântico. Assim, os cavalos lusitanos eram usados nas corridas em vários pontos do Império. Eram o orgulho dos seus criadores, como testemunha o célebre mosaico da villa de Torre de Palma, em Monforte (curiosamente, próxima da Coudelaria Real de Alter do Chão). No pavimento que ornamentava a sala principal da casa vemos retratados cinco cavalos com as palmas (palavra que a herdade ainda conserva no nome) atribuídas aos vencedores.
Relacionado com o tema hípico, o património romano em Portugal inclui ainda mosaicos com aurigas, em Conímbriga e na villa do Rabaçal. Em relação a recintos, o circo melhor preservado encontra-se em Santiago de Cacém, nas proximidades da presumível cidade de Mirobriga. Identificado por fotografias aéreas, este circo nunca foi objecto de intervenções arqueológicas sistemáticas. Pelo contrário, o de Olisipo (Lisboa) foi localizado parcialmente aquando das obras de construção do Metro na Praça da Figueira, que destruíram as evidências existentes.
Por último, existem duas inscrições que indicam a existência de um circo em Balsa (Tavira), mas o destino desta grande cidade romana do Algarve tem sido problemático, por nunca ter sido possível realizar escavações sistemáticas. Para lá da fronteira portuguesa, mas ainda dentro dos limites da Lusitânia, podemos visitar o Circo de Augusta Emerita (Mérida). Aliás, é muito provável que tenha sido nesta cidade, capital de província, que Diocles tenha começado a sua carreira antes de seguir para a capital do Império. Ainda em Mérida, o Museu Nacional de Arte Romana expõe pintura romana alusiva às corridas de quadrigas, tanto em mosaico como em frescos. A antiga capital preserva ainda a memória do auriga ao homenagear o grande desportista da Lusitânia com a Calle Diocles.
André Carneiro é professor de Arqueologia da Universidade de Évora
Jorge Castro Henriques faz fotografia e é responsável pelo projeto Lvsitania