[este artigo foi originalmente publicado a 8 de julho de 2016]

Não cravarás bilhetes em vão

As primeiras coisas primeiro. Uma pessoa só vai a um festival se tiver bilhete – e, se até o Partido Comunista pede dinheiro pelo bilhete para a Festa do Avante!, porque é que os outros não haveriam de pedir? Este estranho comportamento da espécie lusitana apresenta-se particularmente entranhado nos assuntos da cultura – teatros e concertos em particular – e torna-se mais evidente quando chega a hora dos festivais. Vais ao (preencher espaço em branco)?, pergunta alguém. E diz o outro: “Se me arranjarem bilhete…” Assim mesmo, neste tom pendurado: “bilheeeete……..”, como quem atira um anzol à espera que, por um acaso cósmico, esteja a passar, precisamente naquele momento, um membro da organização ou patrocinador, que se desfaça em lágrimas de compaixão e atafulhe os bolsos do pelintra de passes para os dias todos. Quando num restaurante, estas criaturas não ficam à espera que lhes ofereçam o bife, não entram em bares apenas se lhes prometerem à porta toda a prateleira dos vodkas, não fazem beicinho nas monstras das lojas de roupa até que um empregado lhes ofereça ao menos uma sunga. Mas chegam aos festivais e é isto. Adoram, têm dinheiro para tudo o resto, mas só vão se lhes oferecerem o bilhete. Quem gosta, dá valor. E quem dá valor, paga esse valor. Tudo o que custa um pouco sabe muito melhor do que o que se consegue sem esforço. Certo?

Não lutarás por uma pulseira VIP

O segundo mandamento dirige-se a um grupo de pessoas que é um refinamento das primeiras: elas não querem só bilhetes de graça, querem bilhetes de graça VIP. Isto é, contentam-se se lhes derem um bilhete para um dia para verem nem sabem quem, porque a ideia não é ver, mas serem vistas, lá onde estão todos os outros, mas aquilo que vão mesmo tentar é que lhes caia no colo uma pulseirinha com a cor certa para poderem entrar todos os dias e com acesso à tenda VIP. Não faça isto, pela sua saúde. Mesmo que lhe ofereçam, recuse educadamente e diga que está a fazer um estudo sociológico sobre o impacto da exposição dos homens-barril portugueses aos festivaleiros ingleses e que, para isso, precisa de ir para o meio da maralha. Vejamos: em que consistem habitualmente os VIPs que frequentam estas coisas? Jogadores que quase deram alguma coisa no Sporting no início dos anos 2000, antigos participantes de reality shows e namorado, filhos de cantores que lançaram um disco que, entre primos e tias, vendeu coisa de 100 cópias e os netos dos patrocinadores. Juntos costumam gerar um ambiente tão divertido como o do último salão de loiças de casa de banho de São João da Madeira (com o devido respeito pelo povo irmão de São João da Madeira). Não é ali que quer curtir o seu festival de verão. A menos que sonhe cruzar-se com alguém que lhe dê uma oportunidade como comentador do social no programa da manhã da CMtv.

Não levarás o carro

Não. Não vai arranjar lugar à porta, ninguém vai sair nas próximas cinco horas, não vai ter uma-sorte-quem-sabe. Vai estacionar a cinco quilómetros da entrada, em terceira fila, exatamente naquele sítio de que não se vai conseguir lembrar ao fim da noite e que só vai encontrar uma hora e meia tonelada de pó depois. A caminho de casa, ainda pode receber de brinde uma operação stop. Vá a pé, de táxi, de comboio, do que quer que o leve lá perto. Acredite ou não, até para o fim do mundo há pelo menos um transporte público. E como os festivais de verão são de facto, frequentemente, no fim do mundo, a organização preocupa-se em arranjar mais uns transportes alternativos. E ainda se habilita a conhecer na viagem um grupo de espanholas loucas por indie rock e vinho rosé, desesperadas por um guia que lhes indique as melhores praias e tascas da região.

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Não irás vestido como se viesses do duche nem como se fosses para os Óscares

É isto. Não há muito mais a dizer. Num festival de verão, há muito pó e poucos bancos. Mas continuamos a estar, tecnicamente, na civilização.

Não colecionarás brindes insufláveis ou de néon

Bancos, operadoras de telecomunicações e marcas de bebidas decidem, todos os anos por esta altura, concorrer ao lugar de Valentim Loureiro dos festivaleiros. Em campanha eleitoral não se sabe bem para que junta de freguesia, encharcam o público dos festivais com brindes que podem ir do tradicional porta-chaves ao puf insuflável. Então, por razões irracionais que se prendem, decerto, com genes partilhados com o mesmo antepassado que leva os gatos a voarem para irem esconder num canto secreto aquele elástico para o cabelo / clip / guardanapo sujo como se fossem 10 mil euros e nós uma marca de suplementos de cálcio, muitos festivaleiros começam na caça ao brinde. Então, é assistir ao desfile… Homens e mulheres, dos pouco mais que crianças aos poucos menos que múmias, a acumularem porta-chaves ao pescoço, três chapéus de malha de uma marca de rum na cabeça e mochilas a fazerem publicidade a pensos higiénicos nas costas, enquanto sacodem ao som da banda que, por acaso, tenha o azar de estar a tocar, bastões que se iluminam com as cores de um banco qualquer que, provavelmente, até lhes deve dinheiro. Não se meta nisso. Pelo menos até que comecem a oferecer brindes realmente úteis, como as obras completas das bandas em cartaz ou revistas literárias para ler na fila para as bifanas.

Respeitarás a distância mínima que permite a dois seres humanos respirarem, mesmo quando são dois amantes insaciáveis

Uma antiga lei da física determina que duas coisas não podem estar no mesmo lugar ao mesmo tempo. Até que a revoguem, cabe ao cidadão procurar o seu lugar livre no recinto do festival – e isso significa estar a mais de 10 centímetros do nariz do outro cidadão. Pode parecer estranho àquelas pessoas que insistem em chegar tarde aos concertos e, ainda assim, tentam furar até ao palco por entre uma multidão progressivamente mais compacta de pessoas que já lá estavam há pelo menos duas horas, mas o facto é este: não é realmente verdade que caiba sempre mais um. Sobretudo quando se é: a) alto; b) gordo; ou c) homem-barril. Isto não é discriminação; é física, insistimos. Os corpos ocupam espaço e, quanto maiores forem, mais espaço ocupam. O cavalheiro do barril está a tentar fazer o seu trabalho e isso é muito respeitável, mas assim são também os nossos ossos, narizes e demais partes eventualmente esmagadas pelo notável recipiente de cerveja que transportam às costas, qual super-botija de oxigénio para respirar à superfície da tenda de reggae. Espaço. Espacinho. Distância. E seremos todos muito mais felizes.

Terás a noção da capacidade do teu corpo em litros de cerveja e compenetrar-te-ás em não a ultrapassar de cinco em cinco minutos

A propósito de cerveja e ainda em matéria que se encontra sob jurisdição da física: o corpo humano não consegue albergar toda a cerveja do mundo. Testes já foram realizados. Não dá. Outras bebidas poderão enganar; a cerveja não. A cerveja é honesta. A cerveja, assim que atinge aquele risquinho dentro do nosso corpo, exige ser colocada em liberdade. Devolvida à criação. E como cerveja é quase tudo o que há para beber num festival e só costuma haver exatamente uma casa de banho por cada bués da festivaleiros, sita precisamente no extremo oposto do recinto àquele onde nos encontramos, o melhor é moderar o consumo. Ou passar a noite a fazer piscinas entre as casas de banho e o balcão do bar. E, nesse caso, para quê fazê-lo num festival de verão quando poderíamos, simplesmente, ter posto a música alta em casa e feito a mesma coisa entre a nossa casa de banho limpinha e sempre livre e o frigorífico?

Dorme. (Sim. Todos os dias)

Outro mandamento de amigo: ide, diariamente, umas horas à cama. Isso de acampar e dos jambés e do nascer-do-sol, etc, é tudo para cima de maravilhoso, mas não tão maravilhoso como continuar a saber o nosso nome ao fim de três dias. Ou, então, será indiferente se, no sábado ou no domingo, está a atuar uma super-banda formada pelos Radiohead, Madonna, Rolling Stones e pelo Elvis, que afinal está vivo, ou a família Carreira. Soará tudo ao mesmo: àquela distante neblina sonora a acontecer lá bem atrás da nossa cabeça cambaleante.

Só usarás o telemóvel para chamar o 112 ou ligar à tua santa mãezinha no respetivo aniversário. E, e

Milhões de pessoas em todo o mundo não conseguem assistir a nada que não aconteça num monitor. Os seus olhos parecem ter perdido a capacidade de captar, diretamente, as imagens enviadas pela luz do mundo. Ou, então, é apenas a sua obsessão em registar e publicar todos os momentos de uma vida que, na verdade, não estão a viver. Para já não falar das selfies, das mensagens, de correr o feed do facebook porque sim, de tudo o mais. Há duas maneiras de pôr isto, uma mais zen do que a outra. A mais zen é esta: miúdos, um dia, vão andar todos a pagar consultas semanais de terapia e comprimidos para perceberem porque é que não estão felizes e tudo vos passou ao lado. Estejam onde realmente estão, a cada momento. Sintam o sabor das coisas, dos lugares, dos sons, das pessoas junto das quais escolheram estar – sim, porque vocês é que escolheram estar aqui. Amanhã, ou mesmo daqui a bocado, hão de estar nesse outro sítio ou com essas outras pessoas com quem estão a tentar falar agora. Vale? Dito isto, passemos à forma menos zen: ou me tiram o raio do ecrã do telemóvel da frente do concerto que paguei e esperei um ano para ver ou daqui a bocadinho, em vez de selfies, estão a fazer endoscopias.

Amarás a música sobre todas as coisas

Se preferirem, decorem só este. É o último e a súmula de todos os outros. Um festival de verão é um festival de música. Não é um parque de diversões, não é um parque de campismo, não é a praia, nem o bar da moda, nem a recomendação da semana da revista de tendências. Não vá lá porque é giro, nem porque toda a gente vai. Vá porque gosta da música que vai ouvir, ou não vá de todo. As pessoas à volta estão mesmo a tentar assistir ao concerto. Querem ouvir a voz do Bruce Springsteen e não a sua. Querem ver o Thom Yorke e não o seu telemóvel. Querem estar ali com os National, não dizer aos outros que estão ali com os National. Pode não ser ópera o que ouvimos nem o São Carlos à nossa volta, mas pagámos bilhete para fazer aquela catarse que só a música que amamos é capaz de operar. Sobretudo ao vivo. Sobretudo em multidão. Façam-na também ou deixem-nos fazê-la. Sai mais barato do que o psiquiatra e os comprimidos. E é uma excelente oportunidade de fazer mais amigos para adicionar no facebook.

Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal)