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Um metalúrgico, um representante da comunidade indígena, um jovem portador de deficiência, uma catadora de lixo, um professor de português e até um nadador de 10 anos. Estes foram alguns dos escolhidos para entregar este domingo a faixa presidencial a Lula, um gesto simbólico que acontece quando um novo Presidente é indigitado. A tradição diz que deve ser o chefe de Estado que cessa funções a fazê-lo, mas Jair Bolsonaro faltou à tomada de posse após ter viajado para os Estados Unidos na última sexta-feira — e o momento inédito acabou por emocionar Lula.
Este grupo de pessoas foi escolhido por “simbolizar a riqueza e a diversidade do povo do Brasil”. E espelha aquilo que Lula da Silva quer deste mandato: a aposta na educação e no ambiente, o fim das desigualdades e a defesa de que todos devem ter “os mesmos direitos e oportunidades”. “Foi para combater a desigualdade e suas sequelas que nós vencemos a eleição. Esta será a grande marca do nosso governo”, afirmou o novo Presidente durante o discurso no Planalto.
Estas políticas vão, na ótica do novo Presidente, transformar o Brasil, tornando-o um “país grande, próspero, forte e justo”. Lula da Silva definiu a sua política como sendo centrada na “solidariedade e na participação política e social”, ao contrário da que foi seguida no Brasil nos últimos quatro anos, que se baseou no “individualismo, na negação da política e na destruição do Estado em nome de supostas liberdades individuais”.
Não foram as únicas críticas dirigidas ao seu antecessor. As farpas e acusações multiplicaram-se nos dois discursos que Lula da Silva fez este domingo. Acusando Jair Bolsonaro de “genocídio” e de se inspirar em ideais “fascistas”, o novo Presidente enfatizou que a democracia saiu “vitoriosa” com a sua eleição e reforçada após a sua tomada de posse. “Ditadura nunca mais. Hoje, depois do terrível desafio que superámos, devemos dizer: democracia para sempre.”
Apesar do tom áspero contra Jair Bolsonaro, Lula da Silva fez questão de assinalar que isso não se aplica a todos os seus seus apoiantes. “Vou governar para os 215 milhões de brasileiros e brasileiras, e não apenas para quem votou em mim”, assegurou, apelando à pacificação social: “A ninguém interessa um país em permanente pé de guerra, ou uma família vivendo em desarmonia”.
As críticas e avisos a Bolsonaro (e a responsabilidade que “não vai passar impune”)
Um “projeto autoritário de poder” que tentou levar a cabo “a mais abjeta campanha de mentiras e ódio tramada para manipular e constranger o eleitorado”. Lula da Silva não poupou nas críticas ao antecessor sobre as suas tentativas de obstruir o processo eleitoral e também a uma “pequena minoria radicalizada que se recusa a viver num regime democrático”.
A referência a esta “minoria radicalizada” não foi por acaso. Uma semana antes da tomada de posse, as autoridades desativaram uma bomba artesanal dentro de um camião e prenderam um suspeito, que confessou ser apoiante de Bolsonaro — disse que queria evitar a tomada de posse de Lula e impulsionar um golpe de Estado perpetrado pelas Forças Armadas.
Mesmo este domingo, a polícia deteve um outro homem que tentava assistir à tomada de posse com uma faca e fogo de artifício. Além disso, os agentes viram-se obrigados a abater um drone que sobrevoava sem autorização a área do Planalto — e que podia, obviamente, representar um risco para segurança do novo Presidente.
O rol de críticas de Lula da Silva não se ficou, porém, pelo radicalismo de Bolsonaro e de alguns dos apoiantes. Também lembrou a obra dos seus dois mandatos (e também a de Dilma Rousseff), que foi destruída em “menos de metade desse tempo”. “Primeiro, pelo golpe de 2016 contra a Presidente Dilma. E na sequência, pelos quatro anos de um governo de destruição nacional cujo legado a História jamais perdoará.”
O legado imperdoável de Bolsonaro incide sob vários domínios, apontou Lula da Silva: “Desmontaram a educação, a cultura, a ciência, a proteção ao meio ambiente, não deixaram recursos para a merenda escolar, a segurança, a vacinação”. E, sobre a Covid-19, o tom das críticas aumentou ainda mais. A pandemia foi, na ótica do atual Presidente, “uma das maiores tragédias da História do Brasil”.
“Esta atitude criminosa de um governo negacionista, obscurantista e insensível à vida” poderá ter consequências, advertiu Lula da Silva, acrescentando que “as responsabilidades por este genocídio hão de ser apuradas e não devem ficar impunes”. O aviso estava assim dado: se os tribunais assim o entenderem, o governo de Jair Bolsonaro poderá ser responsabilizado “pela lenta e progressiva construção de um genocídio”.
O futuro do mandato de Lula
Após os quatros anos últimos terem sido “terríveis” na visão de Lula, chega agora o momento de “reconstruir o país”. A ambição é notória — e também tem efeitos imediatos. “Hoje mesmo estou assinando medidas para reorganizar as estruturas do poder executivo, de modo a que voltem a permitir o funcionamento do governo de maneira racional, republicana e democrática”, anunciou.
O objetivo político é, assim, salvaguardar as instituições e terminar com as trocas de acusações constantes do antigo governo com entidades públicas. Já em termos económicos, Lula já está a planear “investimentos privados e públicos” para levar o Brasil na “direção de um crescimento económico, sustentável” quer ambiental, quer socialmente. Isto inclui duas das principais promessas do Presidente brasileiro: acabar com a fome e salvar a Amazónia.
A fome é, aliás, o tema que mais preocupa Lula da Silva. “A volta da fome é um crime, o mais grave de todos, cometido contra o povo brasileiro”, lamentou, apontando as desigualdades como a raiz deste problema, que é também a “mãe dos grandes males que atrasam o desenvolvimento do Brasil e que o apequenam”.
Para colmatar aquele que diz ser o “crime mais grave”, Lula também deixou pistas sobre o que fará. “O Brasil é grande demais para renunciar a seu potencial produtivo”, indicou, almejando fomentar uma “agricultura familiar mais forte”, mas sem nunca prejudicar o ambiente, já que uma das metas passa por “alcançar o desmatamento zero na Amazónia e emissão zero de gases do efeito estufa na matriz elétrica”.
A importância de Portugal e a ausência da Rússia no discurso
Durante os dois discursos, Lula da Silva mostrou que o Brasil vai estar mais empenhado na construção de soluções diplomáticas, principalmente na frente internacional da luta contra a “crise climática”. Adicionalmente, pretendeu mostrar o país como um exemplo capaz “de promover o crescimento económico com distribuição de rendimentos” e também de “combater a fome e a pobreza”. “O Brasil tem de ser dono de si mesmo, dono de seu destino. Tem de voltar a ser um país soberano.”
Tudo leva a crer que Lula da Silva optará por abrir o Brasil, “rompendo o isolamento” e retomando a integração em vários fóruns internacionais. Será da mesma maneira incentivado um “diálogo ativo” com parceiros como os Estados Unidos, a União Europeia, a China e outros atores globais. De fora desta lista ficou a Rússia — um dos países que também se fez representar na cerimónia. A presidente do Senado russo, Valentina Matviyenko, trouxe a Brasília uma mensagem de Vladimir Putin para o seu homólogo brasileiro, convidando-o a visitar Moscovo “assim que o seu horário de trabalho permitir”.
Embora nunca mencionando a Rússia diretamente (e tendo afirmado que “superar guerras” era um “desafio civilizatório”), Lula da Silva assumiu que quer fortalecer os BRICS (de que fazem parte o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul) e também “cooperar com países africanos”.
No meio destas prioridades da política externa, havia uma que ficou patente durante esta tomada de posse: o Brasil quer reatar e fortalecer a relação com Portugal. Vários foram os momentos que o comprovaram: por exemplo, no Congresso, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, agradeceu especialmente a presença do Presidente da República, que representa a “pátria-mãe”: “Muito nos honra”.
Depois, Marcelo Rebelo de Sousa foi o primeiro não só a entrar, como também foi o primeiro a cumprimentar o Presidente empossado. O chefe de Estado português não escondeu a satisfação em ambos os momentos. Mais tarde, questionado pela Lusa, considerou que o destaque dado a Portugal se deve a “duas razões, uma formal, outra substancial”.
“Formal: Portugal foi o primeiro país a felicitar Lula da Silva aquando da vitória”. “Substancial: eu penso que há compreensão da importância de Portugal em vários dos domínios de que falou. Por exemplo, na União Europeia, é uma prioridade obviamente o tentar avançar com o dossiê União Europeia/Mercosul. Portugal é importante nisso”, sustentou Marcelo Rebelo de Sousa, que também confirmou que terá esta segunda-feira um encontro com Lula da Silva.
O que mudou face às anteriores tomadas de posse
Finalizados os discursos, Lula da Silva perdeu parte do seu tempo a cumprimentar os diferentes líderes mundiais que vieram assistir à tomada de posse, tendo Portugal tido também aí grande destaque, uma clara diferença face ao que acontecera no mandato anterior. Esta não foi, ainda assim, a única diferença face ao dia 1 de janeiro de 2019 e até a outras cerimónias.
À cabeça, a entrega da faixa por um coletivo de pessoas acabou por alterar a tradição. Este grupo de pessoas — de que fazia parte o cacique Raoni, um jovem portador de deficiência, um professor de português, uma cozinheira, um nadador de 10 anos e uma mulher negra de 33 anos que apanha lixo — subiu a rampa do Planalto com o Presidente e com a primeira-dama — que também levavam a companheira de quatro patas, a cadela Resistência.
A primeira-dama do Brasil já tinha assinalado que queria contar com a presença de Resistência na tomada de posse e isso acabou por se concretizar. O animal de estimação, adotado por Janja da Silva enquanto Lula estava detido, tornou-se o primeiro a subir a rampa do Planalto e a estar presente numa tomada de posse.
A presença da Resistência terá motivado outra alteração à tradição. Normalmente, após a continência de militares, faz-se uma salva de 21 tiros. Contudo, para não incomodar animais nem pessoas portadoras de deficiência, Janja da Silva pediu para que tal não fosse feito, quebrando o protocolo.
Se no Planalto o protocolo foi alterado, nos momentos anteriores nem tanto, principalmente no que diz respeito à viagem num Rolls-Royce descapotável de 1952. Apesar de as autoridades terem avisado que isso poderia representar um risco para a segurança, a comitiva de Lula da Silva decidiu manter o desfile desde a Catedral até ao Congresso e do Congresso até ao Planalto em carro aberto.
Lula da Silva e Janja da Silva iam no carro, juntamente com vice-presidente Geraldo Alckmin e a sua mulher Lu. Este não é um procedimento normal, já que os vice-presidentes costumam ir num carro mais a atrás. Desta vez não foi assim, com Lula a passar a mensagem de que este não é um Governo só do PT — os quatro acenaram aos milhares de apoiantes do novo Presidente, que estavam nas ruas de Brasília a festejar o início do ciclo político.