Israel soube antes do resto do mundo – e em março de 1993, quando os Radiohead desaguaram no aeroporto Ben Gurion, Tel Aviv, viram-se coagidos a cantar uma versão a capella de “Creep”, o single que haviam lançado, sem grande fanfarra, em setembro do ano anterior. Não ficou por aí: a cada deslocação do grupo naquele território uma multidão seguia-os, histérica.
Estupefactos com o fenómeno, os Radiohead tentaram perceber o que acontecera ali. Aparentemente, “Creep” explodira na rádio do exército israelita, uma situação difícil de qualificar por um ser humano que tem filhos para tratar, roupa por lavar, prestações da segurança social por pagar e um vírus pandémico para evitar. Enquanto em Inglaterra os melómanos se envolviam na guerrinha Blur vs Oasis, em Israel – onde as guerras são a sério – a divisão era Radiohead vs Suede.
A obsessão era ainda mais estranha se tivermos em conta que ninguém no resto do mundo ligara nem ao single “Creep” nem a Pablo Honey, o disco de estreia da banda, editado a 22 de fevereiro de 1993. Mas algo estava de facto a acontecer – e quando a EMI resolveu reeditar “Creep”, em setembro de 1993, um ano após o seu lançamento original, a canção simplesmente explodiu: no Reino Unido chegou ao Top 10, tornou-se um êxito internacional, ganhou prémios então respeitáveis (como o de Melhor Single nos prémios NME de 1994). Com o tempo tornou-se o hino de uma geração.
[“Creep”:]
Apesar disso, em setembro de 1993, um ano e meio antes de The Bends, que faz agora 25 anos, os Radiohead – para o público em geral – eram apenas a banda de “Creep”, o mesmo que dizer uns “one-hit-wonders”, ou seja: banda de uma canção só. Não era propriamente uma denominação injusta, tendo em conta que por muito que Pablo Honey denotasse a influência de bandas como os Jesus and Mary Chain, os Pixies ou até os Nirvana, no sentido de unirem ruído e melodia e de alternarem velocidade e melancolia, a verdade é que lhe faltava o essencial: grandes canções.
O mundo dos melómanos, com a exceção dos israealitas, tinha outras prioridades: os Nirvana, os Pearl Jam, os Soundgarden, todas as bandas denominadas grunge, os Morphine, os Blur, os Oasis, os Pulp. Os próprios Radiohead mostraram desagrado com o sucesso conseguido à conta de uma canção só, antes de mais porque não a levavam muito a sério – segundo o mito, aquele riff explosivo antes do refrão, foi uma tentativa do guitarrista Jonny Greenwood de sabotar uma canção que lhe soava lamechas e aborrecida. Em outubro de 1993, os Radiohead estavam tão fartos de Creep que passaram a apresentá-la nos concertos como “Crap” (lixo).
Mas longe do olhar do público havia uma transformação em curso, a velha história da borboleta que, no casulo, se prepara para editar o seu primeiro grande disco e um clássico absoluto – que é o que hoje The Bends é, enquanto símbolo do desnorte da juventude: um disco que cruza o anti-capitalismo com as dores existenciais de crescer num mundo que não parece oferecer esperança aos mais novos.
O casulo começou logo no final das gravações de Pablo Honey: Paul Kolderie, que havia produzido isso disco, recorda-se que mesmo no finzinho Thom Yorke lhe mostrou uma nova demo, chamada The Benz e que incluía a canção “The Benz” (mais tarde renomeada “The Bends”). “Eles tinham tido tanta dificuldade em criar material suficiente para um disco”, contava Paul há uns anos, “de modo que fiquei chocado quando me mostraram um conjunto de canções que era bem melhor do que as que acabaram em Pablo Honey”.
Gravar discos custa caro, pelo que já não havia tempo para compor arranjos para as novas canções, gravá-las, misturá-las, remasterizá-las. Os Radiohead editaram o que tinham, foram em digressão e ninguém lhes ligou peva – até que Israel veio em seu auxílio e escolheu “Creep” como canção de eleição. A editora, espantada, reeditou “Creep”, “Creep” explodiu pelo mundo fora o que levou a editora a, sabendo que havia uma demo de boas canções novas, mandá-los para estúdio o mais depressa possível.
A 26 de setembro de 1994, pouco tempo depois da reedição de “Creep”, os Radiohead gravaram um pequeno EP que nos deixou – a nós, os mais atentos e, também, os mais bonitos – de boca aberta: My Iron Lung era simplesmente soberbo, ou, pelo menos, era-o em três canções: “My Iron Lung”, angustiante e movida a uma grandíssima malha de guitarra, explosiva e com um som quase metálico, era simplesmente maravilhosa, e o mais perto que o mundo alguma vez estivera de uma nova canção genial dos Television. “The Trickster”, cançãozorra monumental, lembrava os Sonic Youth; e “Punch Drunk Lovesick Singalong” era simplesmente muito bonita.
[“My Iron Lung”:]
Estas três canções (e também “Permanent Daylight”, já agora) demonstravam que os Radiohead eram muito mais que a banda de “Creep” e muito mais que uma banda que procurava unir a sensibilidade melancólica da pop britânica dos anos 60 com o grunge; as notórias influências dos Television e dos Sonic Youth demonstravam estarmos perante uma banda que conhecia a história do rock de guitarras, capaz de produzir malhas intrincadas, complexas, com variações inesperadas de ritmo, uma banda capaz de arriscar e experimentar sem perder a noção do que é uma canção.
Nestes momentos, as editoras costumam ter um papel fundamental – no caso a editora emitiu um ultimato: ou os Radiohead gravavam um novo disco no período de seis meses ou levavam um chuto no rabo. Negócio é negócio: tinham um êxito em mãos, uma das canções do EP (“My Iron Lung”) agradava-lhes bastante e ainda havia as canções da demo The Benz. Era preciso capitalizar depressa no êxito de Creep.
Estávamos no início de 1994 e a EMI deu aos Radiohead nove semanas para gravar; Thom Yorke, um homem que nos seus trinta anos de personalidade pública pareceu sempre ter acabado de sobreviver ao apocalipse tendo perdido casa e família e o seu gatinho, entrou – no que viria a tornar-se um modo de atuação clássico – em pânico. A solução foi a mais óbvia: enfiar em cada canção todas as ideias, todos os truques que haviam aprendido, roubar e usar o roubo sem pensar duas vezes. Jonny Greenwood encheu o estúdio de instrumentos exóticos, mas acabou por praticamente só usar a sua Telecaster, que (com o tempo) aprendera a dominar como um feiticeiro medieval que de ervinhas faz poções mágicas. Chris Hufford, o manager da banda, pensou demitir-se, cansado das paranóias de Thom Yorke. Yorke, por sua vez, entrou ainda mais em pânico.
Convém dizer que Yorke tem uma forma pouco convencional de entrar em pânico: levantava-se muito cedo, de madrugada, fazia muito chá, bebia esse muito chá em silêncio, fazia xixi (derivado do muito chá) e depois sentava-se ao piano durante quatro ininterruptas horas. Não estava a compor, estava a experimentar – mas este exercício trouxe inúmeras vantagens, tendo em conta que os restantes quatro membros da banda andavam à cabeçada entre si e com o produtor, John Leckie: é que todos os dias, ao fim de quatro horas ao piano, Yorke tinha qualquer coisa, uma malha, uma melodia, um arranjo, uma letra para apresentar à banda, que então acalmava.
À medida que o tempo passava, o “efeito-Creep” ia diminuindo; a banda não gostava do som das novas canções; Yorke foi ver um concerto de Jeff Buckley e, inspirado, regressou ao estúdio e escreveu “Fake Plastic Trees” de uma penada – e essa canção simplesmente uniu tudo o que tinham gravado, deu sentido ao corpo de canções. Mas o drama ainda estava longe de estar acabado.
A editora queria “My Iron Lung” para single (essa e “The Bends” foram as canções que fizeram com que a EMI não deixasse os Radiohead cair) e John Leckie, ao fim de uma semana, ainda não conseguira acertar com a mistura de uma canção que precisava de um som àspero, metálico. Com deadlines a aproximarem-se e toda a gente em pânico, Ed O’Brien telefonou à dupla que misturara Pablo Honey e em duas horas a dupla misturou a canção de tal forma que a banda celebrou de alegria – a banda e a editora.
Sean Slade e Paul Kolderie começaram a misturar as restantes canções, que iam sendo recebidas com entusiasmo por banda e editora – o produto final continha apenas três misturas de Leckie, que nunca soube que outras misturas estavam a acontecer ao mesmo tempo. O produto final deixou a EMI aos saltos de alegria.
E com razão, porque desde a entrada, com “Planet Telex” (teclas, bateria, o baixo, só mais tarde vem a malha que agarra a canção, depois desce para um proto-refrão em tom menor e nisto já vamos na terceira parte da canção), o que temos é uma banda adulta, no perfeito domínio da equação que envolve ruído e doçura, complexidade sónica e simplicidade melódica. Ao segundo tema, “The Bends”, estamos de boca aberta: riff forte a abrir, depois um dedilhado melancólico, sobe com um grande riff, enorme refrão, guitarrada gigante a seguir – que canção. E à terceira, “High And Dry”, uma tremenda balada, sabemos que estamos em território histórico: a canção começa com um ataque aos pratos e depois bombo e tarola, como que a anunciar que vem aí coisa épica; só entrou surge a guitarra e estabelece-se um patamar melancólico com a introdução da voz de Thom Yorke; os arranjos de guitarra surgem; e o refrão, em crescendo, com simples arranjos de guitarra – que perfeição.
[“High and Dry”:]
Mas talvez “My Iron Lung” seja a canção que melhor simboliza The bends: o tema olha para o mundo como uma série de objetos inúteis compráveis, em que a banda goza consigo mesma, agradecendo ironicamente por “Creep” os ter mantido vivos, o que no fundo os tornava a eles próprios em objetos compráveis. As pessoas, em “My Iron Lung”, são consumidores num mundo desenhado para o lucro e somos todos hipócritas porque por mais que verberemos contra esse mundo fazemos parte dele e aceitamo-lo. Não havia respostas em “My Iron Lung”, só uma amargura precoce de um rapaz perdido.
A lista de grandes canções de The Bends não termina: “Fake Plastic Trees”, acústica e com arranjos de cordas e teclados vintage assombrados, é um espanto; a delicada “Nice Dream” – em que Yorke exibe, de novo, uma sensibilidade melódica inacreditável, possui uma grande progressão de acordes e um lindíssimo arranjo de guitarra elétrica, antes de arranjos de cordas e coros encherem a canção; e ainda havia “Just”, que abria logo a partir tudo, como que a avisar que depois da acalmia viria a explosão (várias, aliás), e um refrão com a inesquecível frase “You do it to yourself”.
Vou ficar por aqui, senão acabo a descrever cada canção uma a uma: The Bends não era apenas um grande disco, era um clássico instantâneo. Era claro que eles roubavam – a sensibilidade melancólica da folk britânica, a dicotomia calmo-explosão dos Pixies, as guitarras intrincadas dos Sonic Youth e dos Television, insuflando tudo isto com um sentido de épico que já estava em “Creep” (que é, convenhamos, uma grande canção). Só que de tanto roubar criaram algo seu, único, exemplar de uma época.
Para muitos melómanos, este foi o ponto mais alto dos Radiohead e a fase experimental que vai de OK Computer até Amnesiac, passando por Kid A, foi demasiado. Confesso que sou de opinião contrária: Amnesiac é o meu disco preferido dos Radiohead, seguido por Kid A, OK Computer e só então The Bends.
Mas The Bends foi o primeiro grande discos dos Radiohead e o anúncio de uma grande banda, que viria a dominar os anos seguintes, com uma rara combinação de ruído, melancolia e extrema experimentação que não se esquecia da melodia. E foi a banda-sonora perfeita para qualquer jovem meio perdido, assustado com um mundo em que as pessoas são contribuintes e clientes mas não são bem pessoas e parece que ninguém vela por nós. E naquele momento, desde o início ao fim de The Bends, os Radiohead pareciam os únicos preocupados connosco: durante 48 minutos e 37 segundos não estávamos sós.