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Os ricos, os pobres e os cozinheiros: as séries que mais gostámos de ver em 2022 (e as desilusões)

O início do ano prometia apostas de orçamentos gigantes, mas na televisão o dinheiro não é tudo. Deste ano levamos sobretudo personagens de camadas múltiplas e criatividade nos argumentos.

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No início, era nas promessas que concentrávamos atenções: a série que vai suceder ao maior sucesso dos últimos anos; o maior orçamento de sempre em televisão; as novas temporadas de produções que há muito nos encantavam. Após 12 meses, e com as contas feitas, a balança mostra que o peso que faz a diferença na hora de escolher os episódios a ver está na história e nos protagonistas.

Juntámos jornalistas e críticos que habitualmente escrevem sobre séries no Observador e fizemos as questões habituais em dezembro: que séries mais gostaram de ver? Quais as personagens e os episódios que vos ficam na memória? E que títulos vos deixaram mais desamparados? As respostas mostram algumas tendências — “The White Lotus”, “The Bear” e “Rehearsal”, por exemplo, estiveram em alta rotação e igual consideração. Mas também revelam algumas surpresas.

No meio de tudo isto, a certeza que o streaming mudou hábitos sem pedir licença aos velhos hábitos. Mas também a dúvida: até que ponto a quantidade de plataformas disponíveis entre nós terá futuro sólido? E não será hora de começar a rever alguns métodos de produção e decisão? A quantidade não garante a saúde do negócio e o “passa-a-palavra” pode muito bem ser a melhor forma de transformar conteúdos menos mediáticos em fenómenos de popularidade.

Alexandre Borges

Melhor Série: “Andor”
(Disney+)

Vamos ver: individualmente considerada, talvez a melhor série do ano tenha sido a última de “Peaky Blinders”. Mas como ter a certeza de que sabemos estar a avaliá-la por ela mesma e não por aquilo que verdadeiramente é: o admirável corolário de um conjunto de seis temporadas? Na dúvida, elejamos “Andor”, que se estreou em setembro na Disney+ e que, mais do que se erguer aos ombros do passado, tinha a galáctica missão de carregar com ele. “Andor” vai a “Rogue One” buscar a personagem que lhe dá nome (Cassian Andor, interpretado por Diego Luna) para provar que, afinal, ainda é possível contar histórias de “Star Wars”, sem parecer que apenas se garimpa “Star Wars”.

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É como um verdadeiro escritor e não um desses caçadores de prémios de que, tantas vezes, este universo fala, que Tony Gilroy (argumentista da saga “Bourne”, “O Advogado do Diabo”, “Michael Clayton” ou do já citado “Rogue One”, entre outros) cria aquela que é, provavelmente, a mais séria, política e negra linha de história “Star Wars”. Mais humana e menos jedi, mais acerca da fraqueza do que da força. mostra-nos como nasce um rebelde, enquanto revela, pela primeira vez, a real natureza do império enquanto regime ditatorial, opressivo e desumano, muito para lá dos bonecos stormtrooper e das falhas estrelas da morte.

Melhor Personagem: Arthur Shelby
“Peaky Blinders” (Netflix)

No ano em que “Peaky Blinders” se despediu com grandeza, é preciso fazer a justa homenagem ao ator Paul Anderson. No estranho caso de uma série brilhante apesar-da-personagem-principal – o entediantemente macho invencível Thomas (Tommy) Shelby –, quantas vezes não terá sido Arthur a verdadeira alma do gangue e a razão de, apesar de todos os pecados, torcermos, até ao fim, pela família Shelby? Arthur, o irmão mais velho, mas, na prática, o imaturo, fraco e forte, violento e frágil, alcoólatra, drogado, danado, carnal, sanguíneo, apaixonado, despeitado, excessivo, eternamente caminhando sobre o fio do abismo.

Mérito do criador Steven Knight, mas quanto também de Paul Anderson que, com menos tempo de antena que Cillian Murphy ou atrás de nomes maiores como Tom Hardy, levou, tantas vezes, a cena? Afinal, na nossa memória, é o som da sua voz e o de nenhuma outra que sempre terão as palavras “By order of the Peaky fuckin’ Blinders!”

Melhor Episódio: “Cosmic Orphans”
“The Last Movie Stars” (HBO Max)

Já aqui o escrevemos e voltamos a fazê-lo: mais do que uma época dourada das séries de ficção, vivemos a das séries documentais. Com os mecanismos narrativos de uma e outra a aproximarem-se cada vez mais, não diremos, como por ocasião de “Wild Wild Country” ou “The Last Dance” que foi uma série documental a melhor do ano, mas, ainda assim, “The Last Movie Stars” não pode faltar na lista do que de melhor vimos em 2022. Projeto pessoal de Ethan Hawke, leva-nos a conhecer, em profundidade, a história de amor de Paul Newman e Joanne Woodward, a partir de uma série de entrevistas pedidas pelo próprio Paul a amigos, colegas e familiares e que nunca, até aqui, tinham sido tornadas públicas.

Fechado em casa durante a pandemia, Hawke viu finalmente abrir-se a janela de tempo para se dedicar ao processo e é através desses tão familiares ecrãs de Zoom que põe os amigos a interpretar os testemunhos de quem lidou com aquele que foi, a todos os títulos, um dos mais extraordinários casais da história do cinema. Com a participação de figuras como George Clooney, Laura Linney, Martin Scorsese, Sam Rockwell, das filhas de Newman ou da própria família Hawke, “The Last Movie Stars” é, além do mais, uma extraordinária viagem pela formidável filmografia de Newman e Woodward que fará o dia de qualquer cinéfilo. Aqui, recomendamos o primeiro episódio, onde se percebe o nascimento do projeto e sabendo de antemão que será impossível resistir aos outros cinco.

Desilusão do Ano: “Ozark”, Temporada 4
(Netflix)

2022 trouxe o fim de muitas séries: “Peaky Blinders”, “After Life”, “Borgen” ou, confirmado há dias, “Westworld”. Não faltavam, portanto, candidatos a desilusão do ano, já que é aí, na resolução, que demasiadas vezes a porca torce o rabo (perdoe a sofisticação dos termos). Tudo somado, e já que a temporada inaugural de “House of the Dragon” nem chegou a iludir, leva “Ozark” a medalha de lata. Depois de três temporadas num crescendo “breakingbadiano” em que se afirmou como um dos mais sólidos e maduros dramas da década, perdeu-se numa temporada derradeira que não foi – mas parecia – entregue à equipa de estagiários.

Os acontecimentos estavam lá, mas fora do sítio, amarrados sem tensão, desbaratados em diálogos banais, desfazendo-se das suas próprias personagens sem honra nem glória. Fica a sensação de que se sobrepôs a vontade de surpreender a qualquer verdade dramática intrínseca. Ou, então, fomos nós que não levámos devidamente a sério o aviso da primeira temporada, quando Marty põe Bob Seger a cantar na jukebox “You’re still the same”.

Andreia Costa

Melhor Série: “The White Lotus”
(HBO Max)

2022 tinha tudo para ser um ano brilhante: os streamings apostaram as fichas todas em mega produções, como “O Senhor dos Anéis” (Amazon Prime Video) ou “House of the Dragon” (HBO Max). Foram boas q.b., visualmente impressionantes, mas nenhuma delas memorável. Foi preciso chegar ao último mês do ano para ter uma vencedora nesta categoria e, contrariamente ao que costuma acontecer-me, nem sequer é uma escolha inequívoca. Houve boas surpresas (a “Yellowjackets” que começou ainda em 2021, “Severance”, “The Staircase”), mas nada que me deixasse o coração a palpitar. Vamos pôr isto nestes moldes: 2022 deu-me amores de verão, paixonetas fugazes, mas não o amor da minha vida. “The White Lotus” é um amor de verão. Intenso, louco, pouco coerente ou racional. Cumpriu o seu propósito, mas não vou ficar a suspirar por ele para sempre.

Ainda assim, conseguiu superar as expectativas deixadas pela primeira temporada – sobre um grupo de hóspedes de classe alta num resort de luxo no Havai. Estamos de novo num resort de luxo mas, desta vez, na Sicília. Mudam o ambiente, as personagens e a história, intensifica-se a complexidade das relações humanas. As pessoas são boas e más ao mesmo tempo, têm atos heróicos e cobardes, são vítimas e predadoras, conseguem ser tudo isto e não ser nada disto. São complexas e fascinantes, o que as torna realistas. No final de contas, o que fica de “The White Lotus” é o facto de controlarmos muito pouco nas nossas vidas. E não é exatamente isso que torna tudo mais empolgante?

Melhor Personagem: Daphne (Meghann Fahy)
“The White Lotus” (HBO Max)

É uma das armas de “The White Lotus”: a possibilidade de qualquer personagem, mais ou menos relevante, ter potencial para ser a surpresa mais bem guardada da série. Nesta temporada quem ganha é Daphne (Meghann Fahy), uma riquinha tão fútil que nem se lembra se nas últimas eleições foi ou não votar. É assim que ela nos é apresentada no primeiro episódio. Porém, é uma ilusão. Estão a ver aquelas crianças que, quando estão sentadas à mesa, perante convidados, são o exemplo da boa educação para depois, fora desse contexto, só colecionarem asneiras? Daphne é mais ou menos isso.

Fabio Lovino/HBO

Nos momentos em que partilha a cena (geralmente às refeições) com o execrável do marido, Cameron (Theo James); o totó do amigo, Ethan (Will Sharpe); e a insatisfeita mulher deste último, Harper (Aubrey Plaza); é a sempre divertida e tolinha dondoca, cuja noção da realidade do mundo não vai além do closet lá de casa. Mas à medida que a vamos conhecendo, percebemos que ela é tudo menos burra. Faz-se desentendida porque lhe interessa manter o estilo de vida que tem, é tudo uma questão de escolhas. É dissimulada e vingativa (ou então usa, simplesmente, as armas que tem ao dispor para sentir que tem algum controlo sobre a situação). As expressões faciais de Meghann Fahy são impagáveis – com palavras está a dizer uma coisa e, com os olhos, diz outra completamente diferente. Fazer um papel de tonta pode não ser muito complicado, mas fazer um papel de mulher inteligente disfarçada de tonta é bem mais complexo. Daphne é a única que aproveita realmente as férias. No meio da trapalhada de inveja, tensão sexual e quezílias de família que se vivem na Sicília, ela vai ao spa, ela dorme num palacete, ela vai às compras, à piscina e ao mar. Pelo meio, choca com um cadáver (literalmente), mas o que é isso a não ser uma história divertida que vai contar às restantes amigas dondocas quando regressar aos EUA?

Melhor Episódio: “That’s Amore”
“The White Lotus” (HBO Max)

Não foi por acaso que antes da estreia, em vez de disponibilizar a temporada toda aos críticos, a HBO Max apenas libertou cinco dos sete episódios da temporada. É que é no quinto capítulo que a água chega ao ponto de ebulição. Estamos no pico da tensão entre Harper, Ethan, Cameron e Daphne (quem é culpado de quê, quem mente, quem é enganado); as amigas italianas têm finalmente uma brecha no mundo onde manda o dinheiro; e Tanya deixa as suas barreiras caírem enquanto assiste a uma ópera e se sente finalmente compreendida, para minutos mais tarde ficar em choque (ela e nós, aliás) perante uma revelação sinistra no meio de um palacete clássico – o que não deixa de ser irónico perante o cenário dantesco que começa a revelar-se a partir daqui.

“That’s Amore” deixa muitas perguntas no ar – algumas terão resposta nos episódios finais, outras não –, mas está povoado pelos diálogos polidos e o nonsense (dois conceitos que aqui convivem estranhamente bem) de Mike White. A banda sonora é como a fitinha de cetim que dá o toque final a um embrulho cuidadosamente preparado.

Desilusão do Ano: “The Crown”
(Netflix)

E, à quinta temporada, “The Crown” espalhou-se ao comprido. Não foi pelo salto temporal (não é novidade na série), não foi pela troca de atores (também já tinha acontecido), mas sim pelo facto de os episódios parecerem não ter qualquer ligação entre si. Não há um fio condutor, cada um tem um tema e aborda um momento específico da vida da realeza britânica sem se preocupar em fazer fluir ou prolongar os arcos narrativos entre capítulos (ora estamos a falar de um barco, ora de charretes, ora de divórcios e telefonemas íntimos escarrapachados em capas de jornais). É quase como se um(a) professor(a) tivesse dado uma tarefa aos alunos: cada um tem de escrever um episódio, o tema é livre. E está feito o briefing. Zero trabalho de equipa.

Se olharmos para o elenco, a coisa não melhora. Por um lado, temos Elizabeth Debicki, que interpreta Diana. Em modo estátua está perfeita, igualzinha às memórias, fotos e milhares de vídeos que temos da princesa de Gales. Quando os diálogos se prolongam, entramos num exagero de olhares de soslaio e cabeças inclinadas. OK, já percebemos a ideia, mas ninguém está sempre assim. Por outro lado, temos um erro de casting chamado Dominic West. No papel de príncipe Carlos nunca está realmente confortável, é penoso assistir aos seus trejeitos de boca e olhar vazio, parece um castigo que nenhum de nós sabe muito bem porque está a pagar. Aliás, toda a temporada é uma espécie de penitência.

Menção Honrosa: “The Last Movie Stars” (HBO Max) e “The Bear” (Disney+). Há qualquer coisa em “The Bear”: não sei se aqueles sucos fumegantes da carne que fica a marinar 16 horas, se o beicinho juvenil de Jeremy Allan White, que parece ter sido recambiado, como castigo, diretamente da rebeldia de “Shameless” para uma cozinha gordurosa sem rei nem roque. Honesta, crua e desgastante, esta série da Disney+ que acompanha um chef que troca uma carreira em ascensão para assumir o restaurante familiar após a morte do irmão é uma aposta segura.

“The Last Movie Stars” é das coisas mais bonitas e inesperadas que o streaming nos deu este ano. Inesperada é mesmo o adjetivo certo, já que nem o próprio Ethan Hawke, realizador do projeto, sabia qual seria o resultado final (de documentário passou a série documental com atores conhecidos a lerem transcrições de entrevistas que se julgavam perdidas). Esta é a história da relação entre Paul Newman e Joanne Woodward, duas estrelas de Hollywood que se amaram e odiaram de uma maneira só deles. Caótica, imperfeita e mais cativante do que qualquer ficção, esta é a melhor série documental de 2022.

André Almeida Santos

Melhor Série: “The Rehearsal”
(HBO Max)

“The Rehearsal” existe na base de um constante ensaio. Na essência, pode-se considerar um exercício sobre o medo de falhar. O primeiro episódio apresenta a ideia, um indivíduo recorre aos serviços de Nathan Fielder para desbloquear uma conversa que quer ter: contar ao seu grupo de quiz que há uns anos mentiu sobre a sua formação académica. O requisitante quer que a conversa corra da forma mais suave possível, por isso ensaia o momento vezes e vezes sem conta. Do outro lado, Nathan propicia as condições para a conversa acontecer precisamente dessa forma. Ao segundo episódio – de seis – entra um novo desafio que irá tomar conta da restante série. Desta vez, uma mulher que quer ser mãe irá entrar num processo mirabolante para perceber se consegue educar uma criança.

Às tantas, o método de Fiedler sai dos carris, o próprio entra nele e vira todo o contexto para uma situação sobre o criador de “The Rehearsal”. A ficção tem tantas camadas que o fator de “serão pessoas de verdade com problemas verdadeiros?” (não são) deixa de ter importância. Também desaparece “o medo de falhar” e instala-se uma coisa pior: o receio de não fazer bem. São coisas diferentes e Fielder explora o desvio do caminho com um refinado nível de obsessão: tão apurado que “The Rehearsal” nunca se perde nos assumidos exageros. Promete ser uma série sobre experiências sociais e torna-se numa das melhores obras audiovisuais de ficção científica de todos os tempos.

Melhor Personagem: Sam, “Somebody Somewhere”
(HBO Max)

O início de 2022 é um lugar distante. Contudo, por lá pairam alguma das melhores séries deste ano, como “Peacemaker” (HBO Max), “Severance” e “Pachinko” (Apple TV+) e este “Somebody Somewhere”. Nesta última vive Sam (Bridget Everett), que existe com a sombra da imagem da atriz que a interpreta. Parece qualquer coisa de biográfico (afinal é filmado em Manhattan, no Kansas, onde Bridget nasceu), mas quando se chega ao fim dos sete episódios, “Somebody Somewhere” apresenta-se como uma espécie de filosofia de vida.

O audiovisual adora losers, mas nem todos têm de ser como Kate Winslet em “Mare Of Easttown”. Há aqueles sem um trabalho a sério – seja lá o que isso for –, que na meia-idade procuram amigos como se fossem adolescentes, com atitudes de quem perdeu o amor à vida porque é difícil lidar com a perda (no caso de Sam foi a irmã). A excecionalidade de Sam acontece pelo desespero do banal, por carregar a energia de uma série exemplar sobre a míngua de viver.

Melhor Episódio: “Review”
“The Bear” (Disney+)

É habitual a expectativa sobre o último episódio de uma série. Tem de ser grandioso, saciar, satisfazer, responder e apagar da memória todos os problemas do mundo. A obsessão com o fim estafa e esmaga muitas séries. “Review” não é o último episódio da primeira temporada de “The Bear”, é o penúltimo, mas em muitas séries seria o último, aquele que cria milhares de situações que nunca terão respostas — ou estas só se encontrarão uns meses mais tarde. Contudo, “The Bear” foi diferente, vendida como uma ideia da vida de haute cuisine, ao longo dos episódios percebe-se que não é bem isso, muito menos só uma série sobre um chef que vai tentar salvar o negócio de família, uma casa de sanduiches em Chicago. Ruma-se para o desconhecido ao longo dos episódios, ou para um nada, isto é, como se de propósito se ausentasse de dar qualquer resposta.

Há algo de onírico numa grande parte das cenas (será a luz da cozinha?) e frenesins momentâneos que exploram a irrealidade (como no primeiro episódio aquele negócio das Levi’s). Ou seja, a cozinha, por vezes, parece só um pretexto. Por isso, os vinte e um minutos de “Review” (o episódio mais curto da temporada) vivem-se como o apogeu de “The Bear”, isto é, a concretização daquilo que está a ser vendido ao espectador desde o primeiro momento. O episódio existe numa panela de pressão, com tudo a acontecer de forma muito rápida, numa progressão de loucura. Pode-se chegar ao final e pensar que foi tudo um sonho, que o que se acabou de ver foi o maior pesadelo de todas aquelas personagens, por parecer tão fora de controlo. Mas não, foi apenas a realidade a explodir. O episódio seguinte embrulha tudo como é preciso para se seguir confiante para a segunda temporada.

Desilusão do Ano: “O Senhor dos Anéis: Os Anéis do Poder”
(Amazon Prime Video)

A desilusão passa menos pela megaprodução da Prime Video e mais pela armadilha de se querer procurar a “próxima grande cena” através do princípio da “última grande cena” que resultou muito bem.

A história costuma ter razão: encontrar o sucessor (em termos de impacto) de “Game of Thrones” será mais obra do acaso do que de um replicar consciente da fórmula, com mais milhões e promessas iguais. E, aí, “House Of The Dragon” também é uma desilusão. Porque tentar, tentar e tentar dentro do mesmo formato vai sempre bater no poste: afinal, o “mesmo formato” não tem surpresa. É o mesmo.

Joana Stichini Vilela

Melhor série: “The White Lotus”, Temporada 2
(HBO Max)

Foi providencial esta estreia tardia da segunda temporada de “The White Lotus”. Primeiro, permitiu a quem sentia que não vira nada ao longo de 2022 acabar o ano com uma agradável sensação de saciedade. Segundo, e mais importante, restaurou a nossa fé na série televisiva enquanto obra total – e que voltámos a apreciar em comunidade. Do genérico, tema musical à cabeça (um génio, Christobal Tapia De Veer), às reviravoltas psicodramáticas dos protagonistas.

À razão de um episódio por segunda-feira, numa lógica analógica e enervante, Mike White agarrou-nos ao ecrã ao longo de quase dois meses. Com o desenrolar da temporada, já não era quem tinha matado e morrido no resort White Lotus que importava; antes, a densidade imprevisível da trama, das personagens, do humor negro e até da estética, com o Mediterrâneo e a pintura renascentista como testemunhas e comentadores da ação. Numa altura em que já há data para um terceiro cadáver aparecer num terceiro resort de luxo (final de 2023, Ásia) também já é possível intuir que estaremos perante o desabrochar de um futuro clássico da TV.

Melhor Personagem: os dois casais de “The White Lotus”
(HBO Max)

Se Jennifer Coolidge tomou a primeira temporada de assalto (e se tornou a única personagem – a par do marido – a voltar nesta), na Sicília foi Aubrey Plaza, de “Parks and Recreation”, a ocupar de surpresa o open space da nossa imaginação. Quem diria que o mesmo ar de enjoo serviria tão bem em séries tão diferentes. Ética, pragmática e frontal, ela é desde o início a pedra na engrenagem das férias a quatro.

Aos poucos vamos percebendo de onde vem o desconforto. E será na relação com o marido e a dupla rival que se vai estabelecer uma das mais intensas, magnéticas e amorais dinâmicas televisivas dos últimos tempos, matéria de sonho para jantares de amigas, tribunais de família e psicanálise de casal.

Melhor Episódio: “The one, the only”
“Hacks” (HBO max)

Era este ou “Abductions”, o sexto de “The White Lotus”. Mas já chega de milionários de férias; passemos para milionários no humor – e para o episódio que arranca com o leilão de um Kandinsky e acaba com uma cena de televendas. A unir as duas transações, a inigualável Deborah Vance (Jean Smart), a comediante veterana de Las Vegas que, com a aspirante a humorista Ava Daniels (Hannah Einbinder), constitui a dupla motora desta comédia sobre as agruras da arte de fazer rir.

Rápido, enxuto, cheio de curvas e contracurvas: só por isso este último episódio (há terceira temporada a caminho) seria presença obrigatória em aulas de guionismo. Mas depois temos o texto e subtextos. A relação entre as duas – “Nós somos iguais” – a relação consigo próprias – “Tu não precisas de ninguém” – e a relação com o mundo – “Podes não saber o que a noite de reserva, mas pelo menos sabes que estás pronta para tudo.”

Maior Desilusão: “Marvelous Mrs. Maisel”, Temporada 4
(Amazon Prime Video)

Ao longo de três temporadas, esta criação de Amy Sherman-Palladino sobre uma dona de casa judia dos anos 50 que, depois de se separar do marido, se torna uma hilariante stand-up comedian foi um dos produtos mais refrescantes da televisão.

Dos monólogos em palco à comédia de situação, da recriação do bas-fond nova-iorquino ao guarda-roupa, de Lenny Bruce a Lenny Bruce. Um intervalo de três anos ditado pela pandemia resultou numa quarta temporada mole e sem sabor, com poucas surpresas e menos gargalhadas. Há uma quinta e última temporada anunciada. É fazer figas.

José Paiva Capucho

Melhor Série: “The Bear”
(Disney+)

Uma amiga atirou esta frase: “Não gostei muito, acontece imensa coisa, não dá para acompanhar”. Depois, vi os oito episódios numa noite. Deitei-me e só me apetecia cozinhar um ovo estrelado. Numa altura em que o género preferido em Hollywood e no universo das plataformas de streaming está entre a nostalgia e o “explicar tudo bem explicadinho e ficar à espera que o telespectador agradeça pelas horas de choro e de alegrias proporcionadas”, é bom apanhar uma série, com história original, onde “acontece imensa coisa” em pouco mais de 50 m2 de um restaurante de rua em Chicago. E é só isso que importa: ver aquelas pessoas a existir dentro de uma cozinha. Jeremy Allen White (um Timothée Chalamet com muito mais talento no dedo do pé) dá corpo a um jovem e reputado cozinheiro que tem de tomar conta do negócio deixado pelo irmão. Ele, a sua pequena equipa, o melhor amigo do irmão, conseguem, durante vinte minutos por episódio,  agarrar-nos numa dança de emoções que nos comove por ser, essencialmente, uma história familiar.

Palavras que nunca se disseram, segredos, raiva, rancor, o donut perfeito, street food, drogas e álcool. Se o leitor nunca teve curiosidade de espreitar os bastidores de uma cozinha (e muitos cozinheiros vão negar-lhe que a realidade de “The Bear” é a que se pratica hoje em dia, o que até se acredita), tem aqui uma boa oportunidade. Comer é um ato essencial, ver esta série é outro, que deve ser praticado por quem ainda acredita que a televisão pode ser um veículo para contar grandes histórias. E de quem acredita que, apesar de tudo, a gastronomia não precisa de ser só retratada no Masterchef. O penúltimo episódio é uma lição de realização, com um plano sequência repleto de sabor a fogo. É impossível desviar sequer o olhar. Está na Disney+ e vale mesmo a pena. Espero que a minha amiga tenha, entretanto, acabado. Gostava de continuar a ter amigos até à segunda temporada.

Melhor Personagem: Nathan Fielder
“Rehearsal” (HBO Max)

Vamos lá ver uma coisa: Nathan Fielder é um tipo único, mestre do nonsense com muito sentido. Confuso? Eu também e ainda bem. O humorista, produtor e guionista canadiano tem-nos habituado a projetos onde nos troca as voltas, ora estamos em ficção, ora estamos no mundo real, ora estamos sabe-se lá onde. A HBO deu-lhe todo o dinheiro que ele quis e ele disse “OK, obrigado, então vou fazer uma série onde ensaio situações específicas de pessoas, passo a passo, cenário a cenário, personagem a personagem, até obter um resultado satisfatório”. E é isto.

Escolho-o como personagem do ano porque Nathan transforma-se numa no decorrer do seu “Rehearsal” (que terá segunda temporada), quando é “obrigado” (será que é?) a integrar a experiência social que ele próprio desenhou. Ou Nathan quer ajudar um homem, adorador de concursos de perguntas, a contar a uma amiga que não é assim tão instruído, ou quer entregar a melhor experiência de maternidade de sempre a quem nunca a teve. Será tudo isto um mockumentary? Uma série de comédia? Uma análise profunda à natureza humana? Sei lá eu. Conheço quem tenha desistido, conheço quem continue a questionar se tudo o que vemos é fabricado e conheço-me a mim, que achou maravilhoso ver um autor, que manipula todos os atos durante os episódios, a ver-se mergulhado no próprio ensaio, dentro de outro ensaio que está dentro de outro ensaio. Que “bicho” tão bom.

Melhor Episódio: “Dear Billy”
“Stranger Things”, Temporada 4 (Netflix)

Estive próximo de colocar a Max (Sadie Sink) de “Stranger Things” como personagem do ano, mas vou escolher o episódio em que a jovem ruiva mais badass da ficção internacional quase morre. Não vale a pena falar da importância — tanto financeira como emocional — que a “Running Up That Hill” de Kate Bush teve na série, mas coloco este episódio como melhor do ano por uma simples razão: fala sobre suicídio. Esta reflexão pode não ser consensual para todos, mas Max, que viu o irmão morrer na temporada anterior, culpando-se pela tragédia, foi a derradeira vítima escolhida pelo vilão Vecna, que se alimenta de pessoas com um passado ou presente obscuro/trágico.

Quando Max já está lá bem no alto, mesmo com entorses e ossos quebrados no mundo real, pronta para ir desta pela melhor, temos uma sequência de flashbacks sobre aquilo que qualquer dia também está disponível só para assinantes: a amizade. A música, a tensão, a Kate Bush, está tudo lá. E quem não fica de coração apertado neste episódio não é filho de boa gente. Ou não tem amigos. O que não tem mal, desde que não se torne num psicopata todo desfigurado que adora relógios. Numa altura em que a saúde mental faz parte, mais do que nunca, da agenda mediática, os pais deste planeta podem pegar neste episódio e tentar perceber o que raio se poderá passar com os seus filhos. Afinal, a televisão continua a ser uma boa companhia, mas toda a gente precisa de bons amigos.

Menção Honrosa: “Causa Própria” (HBO Max), uma série de crime muito bem realizada por João Nuno Pinto, com um guião cuidado, sem chavões, um casting certeiro e uma clara intenção em circunscrever-se a um universo tipicamente português (num ano em que se esperava um subida maior de degraus na produção portuguesa).

Desilusão do ano: “The White Lotus 2”
(HBO Max)

Não é para ser contra corrente ou hater profissional, mas a sátira de privilégio branco criada por Mike White deixou-se levar pelo sucesso monumental (e merecido) que foi a primeira temporada. Desta vez levou a sua grupeta de ricos brancos até à Sicília e, das duas, uma: ou quis mostrar que os norte-americanos conhecem muito pouco do mundo, ou quis mostrar, mesmo à americana, que, como acha que os europeus não passam de um povo trapaceiro, preferiu retratá-los com dignidade, através da sua excelente capacidade para filmar Itália com dinheiro. Na primeira temporada, “White Lotus” conseguiu explorar a irritante premissa de “problemas de primeiro mundo”, indo ao exagero de matar um tipo de um hotel só porque não quis arranjar a melhor suite.

DR

A famosa morte aqui, que nos prende novamente em mistério através de sete episódios, transforma-se numa cómica narrativa só resolvida por Agatha Christie. Não é acidental como a primeira, é premeditada. Não é impulsiva como a primeira, é racional. E isso retira-lhe força, porque a sátira é substituída pelo drama. Além disso, nesta nova saga o autor de “School of Rock” preferiu seguir a maré de temas que são comuns a todos, ricos ou pobres — traições, relações familiares e desigualdades sociais — e transformar os ricos em pessoas normais. Ainda assim, a desilusão até pode ser bom sinal, porque continua a denotar-se um cuidado especial com os guiões (mais nas falas do que no desenvolvimento das personagens) muito acima da média de projetos deste género. É dar uma nova oportunidade à terceira temporada, quem sabe rodada num cinco estrelas de Lisboa.

Susana Romana

Melhor Série: “Better Call Saul”
(Netflix)

48. Este número podia ser a idade até à qual Cristiano Ronaldo planeia jogar ao mais alto nível de titularidade, mas é a quantidade de vezes que “Better Call Saul” foi nomeado para um Emmy. Número de galardões levados para casa: zero. Nicles. Um prémio é só um exercício de vaidade de importância reduzida e limitada, bem sei, mas não me conformo. É que chegados à sexta e última temporada da prequela de “Breaking Bad”, estivemos perante a série perfeita.

Não uso este adjetivo de ânimo leve. “Better Call Saul” tem guiões irrepreensíveis, realização extraordinária e atores absolutamente notáveis. É uma das séries mais bem feitas de sempre, um exercício de estilo e conteúdo digno do cânone. 2022 não mereceu a pedra preciosa que foi o adeus ao advogado mais canalha (ou será que não?) do mundo, um adeus que conseguiu ser surpreendente e, ao mesmo tempo, absolutamente lógico e reconfortante. É a Capela Sistina das séries de drama. Perdeu os Emmy, ganhou-me a mim arrebatadamente para a vida toda. Desculpem, vai ter de servir como prémio de consolação.

Melhor Personagem: Deborah Vance
“Hacks” (HBO Max)

Uma personagem que é um bombom para qualquer atriz, colocada nas mãos de uma sempre extraordinária Jean Smart (que tanto está à vontade neste registo de comédia como resulta plenamente em dramas como “Mare Of Easttown”). Deborah Vance é ambiciosa, implacável, cínica e antipática. Mas mesmo assim, é impossível assistir a “Hacks” sem torcer por ela e pelos seus impecáveis fatos com padrões dignos de Las Vegas.

Uma comediante de stand up veterana a tentar manter-se à tona num showbiz ainda muito masculino, Vance desvia-se dos clichés e torna-se num símbolo feminista que, provavelmente, reviraria os olhos a tal epitáfio. “Hacks”, enquanto um todo, é uma série com bons personagens e bons momentos, mas não tenhamos o pudor em constatar o óbvio: chamem um ortopedista, que é o carisma de Deborah Vance que carrega uma das comédias do momento às costas. O facto de Smart o fazer parecer fácil é só mais uma das provas de como é um raro meteorito que o cinema não soube aproveitar, para gáudio da televisão.

Melhor Episódio: “System”
“The Bear” (Disney+)

A primeira vez que ouvi falar de “The Bear”, ainda soava a um segredo passado discretamente em papelinhos na fila de trás. Série sem vedetas, de baixo custo e com um pano de fundo muito específico, a temporada de oito episódios foi-me apresentada como uma comédia. Vão de sobreaviso: não é propriamente verdade. Estamos perante a saga de um premiado chefe de excelência que larga tudo ao herdar o negócio de sandes do irmão, que se suicidou. Há muito que contextualizar neste primeiro episódio: quem é Carmy (o tal chefe, que logo na primeira cena confronta um urso, uma espécie de representação zoológica da sua ansiedade), o que faz ali, quem o rodeia, o que aconteceu ao irmão.

Mas, acima de tudo, é preciso representar com convicção o ambiente nos bastidores de uma cozinha profissional. E é aqui que “The Bear” acerta com distinção e taquicardia. Os restaurantes, sobretudo os de chefes de renome e mau feitio, são alvo de fascínio no mercado do entretenimento nas últimas duas décadas. Mas, regra geral, em modo de talento/reality show (de “Hell’s Kitchen” a “Masterchef”) ou através de exercícios mais ou menos eficazes de autobiografias (com Anthony Bourdain à cabeça). Na ficção, nunca tiveram uma representação que seja ao mesmo tempo convincente e entusiasmante. Até agora. Reservem mesa sem medos.

Desilusão do Ano: “Borgen”
(Netflix)

O jogo de expectativas, tal como o jogo político, é tramado. Um passo em falso, uma quebra de confiança, deitam tudo a perder. “Borgen” foi um fenómeno de culto, a série que colocou as séries dinamarquesas no mapa e apresentou atores que viriam, mais tarde, a fazer séries como “Guerra dos Tronos”.  Terminou em 2013, após três temporadas no DR1, o canal público da Dinamarca. Fast forward para 2022, em plena era Netflix. O gigante do streaming percebeu, à boleia de fenómenos como “Casa de Papel” ou “Squid Game”, que era possível atingir o sucesso planetário com produções fora do eixo anglo-saxónico, geralmente com orçamentos mais modestos.

E resolveu trazer de volta uma das séries europeias de maior sucesso da última década. Mais valia terem ficado quietinhos. À quarta temporada, “Borgen” não sabe o que fazer com as personagens antigas, descaracterizando-as, mas também não sabe construir convincentemente as novas. Tenta trazer a narrativa para a atualidade à boleia da emergência climática, mas escorrega na pseudo moralidade da complexidade do tema. O final, então, roça o amador. Se viu as primeiras temporadas, deixe-se ficar onde já foi feliz. Não ganha nada nesta viagem à Gronelândia.

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