Prólogo e epílogo
Entre Maio de 2008 e Junho de 2014 apenas duas secções resistiram à hecatombe: o boxe e o ciclismo. O futebol foi ao tapete. E pior: nas etapas que se seguiram, o futebol perdeu a pedalada e foi ficando para trás, ficando para trás, não mais saindo das proximidades do carro vassoura. Até que a justiça desportiva, por intermédio da justiça civil, galopando sobre prémios de montanha e metas volantes, num derradeiro sprint, colocou o Boavista de novo no pelotão da frente. Ninguém sabe ao certo com que andamento lá chega. Vai ser preciso abrir o melão.
Capítulo 1 – A bola
Quando já faltava dinheiro, dinheiro para tudo, dinheiro para gasóleo e para comida, quando já faltava dinheiro para ter aquele talento e fazer melhor em campo, quando nem detergente havia para lavar os equipamentos, quando parecia que já não podia faltar mais nada, foi quando começou a faltar o elemento mais nuclear do jogo: a bola.
Uma vez, em Moreira de Cónegos, num treino, tão importante como a confecção da táctica ou o apuro da técnica, tão importante como um golo para o ponta-de-lança ou uma defesa para o guarda-redes, tão importante como essas vertentes todas do encontro, era, para o roupeiro do Boavista, conseguir sair do campo do Moreirense com mais uma bola na bagagem. No Boavista, campeão nacional em 2001, ainda antes da década da conquista do título, o desespero chegou a esse ponto com diâmetro de 22 centímetros, à bola. Não que já não houvesse nenhuma para treinar, não era ainda esse o caso, mas andava lá perto, havia cada vez menos, já tinham começado a ser poucas para o plantel.
O exemplo de Moreira de Cónegos, bem sucedido, foi decalcado noutras paragens, até mesmo em jogos oficiais da 2ª Divisão B. Jogar fora de casa e pedir a bola do jogo. Uma bolinha aqui, uma bolinha ali, o Boavista, no limiar da sobrevivência, foi trazendo o futebol de volta a casa. E em cada bola mais um treino, mais um remate, mais uns dias de ilusão.
Capítulo 2 – O corpo
O futebol está cheio de duas coisas: treinadores de bancada e lugares-comuns. Na segunda hipótese desta tese, os lugares-comuns, expressões como “comer a relva” ou “fome de bola” estão sistematicamente na ponta da língua. Cumprem a preceito a função do narrador, seja o narrador figura encartada (jornalista), seja o narrador treinador de bancada (adepto), todos o vão entender. Já se perceberá que o futebol passa muito bem sem frases feitas.
Cipriano Santos foi chamado ao clube em 2004. Função: responsável pela sala do pequeno-almoço. Orçamento mensal: 400 euros. Era todo o dinheiro que um plantel profissional conseguia, e podia, comer na altura, cumprindo à risca os pressupostos nutritivos do alto rendimento desportivo na primeira refeição do dia. E a seguir, equipar, palestra, massagista e treino. E assim sucessivamente.
Lá veio o dia em que esta rotina, à semelhança de tantas outras, também desceu de divisão, mingou. Os quatrocentos euros de orçamento para o pequeno-almoço passaram a ser zero euros para o pequeno-almoço. Começou a faltar pão, queijo, fruta, sumos. A mesa vazia, mais um problema para resolver. Cipriano, com o tempo transformado em bombeiro de serviço, foi parte da solução: “a Dona Lurdes, da Badalhoca, dava o pão. O pai de um atleta trazia o queijo. Havia sempre um amigo do clube que arranjava o que fosse preciso para não faltar nada aos jogadores”. Faltou também o café à mesa: “pouca gente sabe, mas o senhor Rui Nabeiro foi e é um grande amigo do Boavista. Quando vem ao Porto fica aqui perto num hotel. Ele gosta muito de fazer uma corrida matinal, mas não gosta do ginásio nem de andar no meio da rua a correr. Quando vinha do Porto telefonava para cá e nós no dia seguinte estávamos a abrir as portas do estádio às seis da manhã, para que ele, às sete, pudesse vir dar uma voltas ao campo”. E voltou a haver café no Bessa.
Durante esse período os jogadores foram muito criticados pela prestação desportiva menos conseguida, aquém das expectativas de um nome grande do futebol português. Quem viveu a experiência por dentro diz que houve alturas em que os jogadores não podiam dar mais, a alimentação dos atletas não era a mais adequada para atletas da sua condição: “os jogadores não rendiam porque não se alimentavam em condições”. Alguns, sem dinheiro, pediam logo ao pequeno-almoço uma ou duas sandes para levarem para casa. Neste cenário, a pressão dos adeptos não abrandava. Se a equipa perdesse um jogo sem demonstrar raça em campo, os jogadores tinham os adeptos à porta do estádio.
Outras dificuldades surgiram neste percurso da pantera pelo submundo do futebol nacional. Pelo menos quatro jogadores, sem casa, dormiam na sala de estágio. E ao jantar o restaurante do Ténis oferecia comida, os restos do almoço.
Capítulo 3 – O equipamento
Emblema centenário não tem camisola para ir a jogo. Podia ter sido título de jornal se o clube não estivesse tão longe da ribalta, logo tão longe das rotativas. No ano da descida de divisão as marcas de equipamentos ainda acreditavam na força da marca Boavista. Chegou-se à frente a italiana Kappa, um gigante mundial de equipamentos desportivos, que levou a melhor sobre a concorrência.
Diz-nos uma fonte da estrutura axadrezada que nos anos seguintes as marcas não queriam estar associadas ao Boavista. Começou por não haver patrocínio nas camisolas para depois não haver sequer camisolas oficias. Um empresa portuguesa, sediada em Vila Nova de Famalicão, resolveria o assunto. A empresa chama-se “Treze”. Foi a sorte do Boavista, que passou a ter dois equipamentos de treino e dois equipamentos de jogo.
Por falar em equipamentos, quem acabou por ser determinante neste capítulo foi também o dentista do clube. Conseguiu arranjar cuecas e camisolas interiores para todo o plantel.
A história da manta que é curta e não consegue tapar o corpo todo, também ela uma frase feita da narração desportiva, remata para golo este capítulo do equipamento. Havendo camisola, calção e meias, deixou de haver detergente para os lavar. Palavra passou palavra, a situação chegou aos ouvidos de um amigo de um amigo e o amigo do amigo passou a “patrocinar” os detergentes e a lavandaria voltou a funcionar que foi uma limpeza.
Capítulo 4 – A despesa
A descida às ruas da amargura prosseguiu em ritmo vertiginoso. O autocarro, adquirido após a conquista do título nacional, seria penhorado a meio da época 2010/2011. Há quem diga que se tratou de um golpe duríssimo: “o autocarro tinha um simbolismo tremendo. A solução passou pelo aluguer. Muitas vezes os directores metiam gasóleo com dinheiro do próprio bolso. Não havia dinheiro para tudo”.
Mais cedo ou mais tarde, todos os meses, aparecia uma má notícia na caixa do correio: a conta da luz. As facturas chegavam com valores nunca inferiores aos 12 mil euros e a mais alta atingiu aos 15 mil. Ainda hoje se fala, nos corredores do Bessa, das infindáveis reuniões para renovar contratos e evitar o corte da electricidade. Toda a formação treinava, e treina, à noite. E a formação tem mais de duas dezenas de equipas.
Durante algum tempo, esta foi a fatura mais alta. Com o acordo para resolver a dívida à segurança social e ao fisco, o clube ficou agarrado a outra renda fixa. A informação surge de alguém ligado ao processo, mas que prefere manter o anonimato. A informação revela que nos próximos 150 meses o Boavista, cumprindo o acordo, paga 120 mil euros por mês.
A parada pode aumentar, à luz de um acordo assumido com funcionários e ex-atletas. Destes, quatro em cada cinco, olhando ao momento aflitivo do clube, concordaram em esperar por melhores dias para cobrar a dívida. Quer isto dizer que daqui a dois anos o Boavista terá um novo encargo fixo de 120 mil euros, diz a mesma fonte.
A colossal contenção de custos, produzida pela(s) descida(s) de divisão, e pelas dívidas acumuladas, resultou num brutal emagrecimento da massa salarial dos atletas. Os jogadores mais caros do plantel, apenas cinco ou seis, recebiam mil euros por mês, e nem mais um cêntimo. Os restantes recebiam entre 150 ou 300 euros por mês. E como é que se construíam plantéis por estes valores? “Passava por fazê-los acreditar na subida e no processo de recuperação financeira do clube. Se fizessem uma boa época, iam conseguir melhores contratos noutros clubes”.
O dia de jogo, para lá do jogo, trazia um desafio suplementar, que era o de alimentar convenientemente os 18 convocados. Em casa, o proprietário do restaurante do estádio emprestava sala de refeições e cozinha. “Havia sempre quem trouxesse umas coxinhas de frango e esparguete. Resolvíamos bem o problema”. O recurso às fontes é constante. Pela delicadeza dos assuntos.
Os responsáveis do futebol, para lá do futebol, durante a semana tinham uma tarefa extra, a de procurar restaurantes que ficassem a caminho do estádio onde o Boavista ia jogar. Feita a triagem, pegavam no telefone e ligavam para reservar mesa. Mas só reservavam no restaurante que cobrasse menos de dez euros por cabeça ao almoço.
Despesa extra e pontual: por norma os clubes de futebol são compensados financeiramente pelas transmissões televisivas, mas neste caso não. Neste caso foi precisamente ao contrário. Neste caso o Boavista pagou 750 euros ao Porto Canal por cada jogo transmitido em directo. A direcção do clube acreditava que a exposição podia potenciar o negócio e trazer outra liquidez aos cofres.
Capítulo 5- O dinheiro
O dinheiro foi um milagre que aconteceu todos os dias, diz-nos uma das pessoas que se predispôs a juntar as páginas perdidas da história do Boavista. Outra testemunha dos dias traumáticos do xadrez, e que deixou vir o nome ao texto, sem ter tido conhecimento da sentença que dá início a este capítulo, atira um exemplo que lhe dá conteúdo. Gouveia foi campeão nacional no Bessa e regressou ao clube para treinar os juniores. “A equipa tinha 9 pontos em 9 jogos. Depois tivemos 14 vitórias consecutivas e subimos de divisão”. Um dos miúdos do plantel tinha abandonado o futebol e aceitou regressar quando Gouveia assumiu o comando técnico da equipa. O miúdo chama-se André Gomes. Foi titular nos seniores quando tinha idade para cumprir o primeiro ano de júnior. Deu nas vistas e foi transferido para o Benfica. Permitiu um encaixe financeiro importante. No Bessa há quem lhe chame milagre. Nessa primeira experiência sénior, André Gomes, recentemente contratado pelo Valência, fez parte do Boavista que mais perto esteve do regresso ao futebol profissional: “fui convidado para treinar os seniores. Nos últimos 8 jogos não tivemos derrotas nem sofremos golos. Ficámos empatados no primeiro lugar com o Padroense, que foi disputar o play-off da subida por ter um melhor goal-average”, recorda o treinador Gouveia.
O “milagre” André Gomes traz à memória a questão dos direitos de formação. Durante os anos de crise continuou a entrar no Bessa dinheiro relativo à venda de jogadores. Raúl Meireles, Bosingwa, Hugo Almeida e Ricardo Costa, de cada vez que mudavam de clube tiravam a conta-corrente do Bessa do zero. “Sem direitos de formação, o clube teria caído”. Isto foi-nos dito mais do que uma vez ao longo desta investigação.
Para fazer face às despesas, vários amigos do clube se chegaram à frente. Um só donativo garantiu os 12 mil euros necessários para a inscrição da equipa de sub-19. Jaime Pacheco e o falecido Vitor Nóvoa evitaram o corte da luz e pagaram entre eles uma conta daquelas de milhares de euros. Um patrocinador brasileiro pagou o alojamento dos atletas da formação. Outro ofereceu balizas e redes. Outro ofereceu 50 mil euros ao clube. Outro deu tintas. E ainda houve mais um que deu contentores para os balneários do campo de treinos.
O Bingo. O Bingo, enquanto deu, também ajudou à crise, mas entretanto, o Bingo, também ele encontrou as suas próprias dificuldades e deixou de ajudar.
Capítulo 6 – A enfermaria
A crise, se passou por lá, pela enfermaria do Bessa, nenhum jogador a terá sentido. Várias vozes conhecedoras do processo coincidem no mesmo ponto: “ali nunca faltou nada”. Dizem, juram a pés juntos, que ali nunca faltou um médico, um exame, uma consulta. Terá estado, no departamento médico, o lado mais profissional de um clube em apuros. Pelo cruzamento de confidências várias apuramos que vários médicos da cidade trataram gratuitamente das lesões mais graves. A velha história do amigo que tem um amigo que conhece um amigo voltou a resultar: análises clínicas eram feitas sem qualquer custo. E os armários estavam sempre repletos de ligaduras, vitaminas e medicamentos, como nos dias de glória.
Capítulo 7 – O relvado artificial
A relva do Bessa nunca mais foi a mesma desde a construção do estádio novo. Os entendidos defendem que os oito pisos em altura, a pique e à inglesa, mesmo em cima das quatro linhas, não deixavam o terreno de jogo respirar nem lhe deixavam o sol chegar em algumas partes. Já antes do declive desportivo e financeiro eram bem visíveis os diferentes tons de verde do tapete. Enfim, uma praga.
A empresa GlobalStadium apresentou uma solução a custo zero: “eles quiseram fazer do estádio do Bessa um showroom”. A solução passou pela colocação/oferta de um relvado artificial no Bessa, mais um sintético de futebol de 11 e outro de futebol de 7, para os treinos: “sem isso não havia Boavista! O clube tinha 22 equipas de futebol a competir”.
Capítulo 8 – Caricaturas
Centenas de jogadores passaram ao longo desta meia dúzia de anos pelos treinos de captação do Boavista. Nem todos chegaram à montra. Ficou na memória dos responsáveis axadrezados o dia em que um rapaz muito aguerrido, mas pouco habilidoso, divulgou a lista de clubes por onde tinha passado. Nomeou vários clubes de segunda linha, o treinador espantou-se, não o estava a ver com futebol para tanto. Então, o tal candidato a jogador do Boavista deixou cair o resto do currículo. “Joguei, mas em hóquei em patins”.
“Todos lá iam tentar a sorte”, recorda um boavisteiro do antigos.
Um investidor apareceu com a promessa de 90 milhões de euros, a seu tempo, a troco de um lugar no plantel para um internacional brasileiro pelas camadas jovens. O desespero financeiro aceitou o desafio, mas “quando ele deu um pontapé na bola” o avaliador de talentos viu “logo que ele nem sabia o que estava a fazer”. Um telefonema para a Confederação Brasileira de Futebol confirmaria todas as suspeitas. Aquele internacional brasileiro não existia em registo nenhum. Os 90 milhões de euros também não.
32 mil euros em multas numa época. Era a última coisa que um clube em apuros precisava, mas foi assim mesmo que aconteceu. A despesa “off-budget”, cultivada na sua maioria pelos jogos realizados fora de casa, teve episódios com árbitros: “um árbitro disse que não cumprimentava nenhum jogador do Boavista, disse que nós andámos muito anos a mamar e que agora tinham de mamar outros”. E teve episódios com a polícia: “em Pombal a polícia carregou sobre os nossos jogadores. Eles estavam a levar com cadeiras e reagiram. E a polícia carregou”. Teve episódios com adeptos adversários: “gritavam corruptos! Não pagam a ninguém!”. De episódio em episódio, a novela das multas atingiu os 32 mil euros.
Prolongamento
A última vitória do Boavista na Primeira Liga aconteceu a 20 de abril de 2008, por 1-0, sobre o Nacional da Madeira, com golo de Diakité.
O último jogo do Boavista na Primeira Liga realizou-se no estádio de Alvalade, a 11 de Maio de 2008. O último golo do Boavista na Primeira Liga foi marcado por Ivan Santos, aos 4 minutos. O último resultado do Boavista na Primeira Liga foi uma derrota por 2-1 com o Sporting, Romagnoli e Tiuí marcaram para os leões ainda durante o primeiro tempo. Na sua última classificação na Primeira Liga o Boavista ocupou a 9ª oposição, com 36 pontos. O último árbitro a apitar um jogo do Boavista na Primeira Liga foi Artur Soares Dias.