“Pai, foste tu o culpado disto?”. A frase saiu disparada da boca da criança enquanto ouvia na televisão o nome do pai ser apontado como um dos dez arguidos no inquérito que procura os culpados do incêndio de Pedrógão. A resposta foi sumida e dolorosa. Carregar nos ombros o peso da culpa de um fogo que arrastou consigo 50 mil hectares de floresta, 66 vidas e que ainda deixou ferimentos a 250 vítimas e mazelas na cabeça e no coração de muitos outros é demasiado.
São dez os arguidos que a procuradora do Ministério Público de Leiria, Ana Simões, constituiu desde dezembro de 2017 até agora. Entre eles há funcionários da câmara municipal (um ex-vice presidente, uma engenheira e um operador de máquinas), bombeiros (alguns dos que comandaram as operações, mas nem todos os que comandaram) e responsáveis por empresas que deviam ter limpado os terrenos, cuja matéria combustível alimentou a fome do fogo, tornando-o incontrolável e fazendo-o crescer e viver ao longo de uma semana. Nenhum deles quis prestar declarações ao Observador e o argumento comum assentou numa dúvida: porque são eles os arguidos? Mas fontes próximas de alguns explicaram os sentimentos dúbios que os atormentam: por um lado como arguidos podem falar com verdade sobre “tudo o que aconteceu”, há até quem queira que o caso seja julgado “para contar tudo”. Por outro, a pressão social que enfrentam chega a tornar-se insuportável.
O diagnóstico traçado naquele dia 17 de junho de 2017 e nos seguintes pela Comissão Técnica Independente (CTI), criada pela Assembleia da República, tem sido o principal instrumento usado pelo Ministério Público e pela Polícia Judiciária na investigação que tem quase um ano e que estará encerrada dentro de um mês. Nesse relatório, elaborado ao longo de três meses, os peritos concluíram que, naqueles dias, poucas coisas correram bem.
As condições meteorológicas eram por si só adversas, depois de um inverno seco e da previsão de temperaturas altas, mas outros fatores contribuíram para a tragédia: algumas autarquias afetadas não tinham planos para incêndios atualizados, houve informação retirada da linha do tempo onde se registam todos os passos de uma operação de combate a um fogo, foi detetada falta de limpeza nas matas e ausência de caminhos entre a matéria combustível, o sistema de comunicações falhou, não havia bombeiros suficientes para pré-posicionar e atacar logo um possível fogo, e o próprio centro de operações que controlou todos os meios mostrou-se desorganizado e chegou a estar localizado em três sítios diferentes.
No início do inquérito o Ministério Público começou por ouvir o máximo de testemunhas possível. Neste momento o processo conta já com 200 testemunhas ouvidas e várias perícias analisadas, como informou esta semana a Procuradoria Geral Distrital de Coimbra. Quase todas as que foram chamadas a prestar declarações em Leiria pela segunda vez foram constituídas arguidas.
Mário Cerol, o primeiro arguido, é advogado mas não era “sénior”
O primeiro arguido no inquérito aos incêndios de Pedrogão tirou o curso de Direito na Universidade Autónoma de Lisboa e inscreveu-se na Ordem dos Advogados em 2005. Chegou a exercer em Alcobaça, mas a sua paixão pelos bombeiros levou-o a fazer carreira ali. Foi comandante dos bombeiros locais, mas em março de 2017 seria nomeado para ocupar o cargo de 2.º Comandante Operacional Distrital, do Comando Distrital de Operações de Socorro de Leiria. Ao Observador disse que está à espera de autorização de Autoridade Nacional de Proteção Civil para poder falar. Até lá, mantém o silêncio que abraçou em dezembro, quando foi constituído arguido.
Naquele dia 17 de junho, segundo o relatório da CTI, assumiu funções de Comandante das Operações de Socorro (COS) pelas 19h58. O fogo que começara em Escalos Fundeiros — e que viria a afetar Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Alvaiázere, Ansião, Penela e Sertã — já lavrava há mais de cinco horas. Havia indicações de vítimas feridas e tinham sido pedidos equipamentos específicos, como máquinas de rasto.
“O Comandante das Operações de Socorro (COS) é o responsável por toda a operação. A cada momento há um e só um elemento a comandar. O COS é um elemento tecnicamente qualificado e dotado de autoridade para atribuir missões operacionais, articular e rearticular as forças que lhe forem atribuídas, dirigir e regular aspetos logísticos de interesse imediato para as operações, bem como gerir a informação operacional”, lê-se no relatório do CTI, que reconhece, ainda assim, que uma “gigantesca operação de Proteção Civil”, como esta foi, seria sempre de elevada complexidade para quem quer que fosse que viesse a assumir o comando da mesma”.
Os peritos que assinaram o relatório da CTI perceberam que três minutos apenas após Mário Cerol assumir o comando, chegou ao terreno o Comandante Operacional de Agrupamento Distrital, que “nunca se apresentou pessoalmente ao COS”, que estava presente no teatro de operações. As normas impõem que o comando seja assegurado pelo mais graduado, mas em declarações aos peritos Cerol admitiu desconhecer o que aconteceu. “Esta circunstância, que poderá ser entendida como um pormenor, é relevante na medida em que o que está determinado no Sistema de Gestão de Operações não foi aparentemente cumprido”, lê-se.
Por outro lado, conclui o relatório, Cerol nunca tinha estado ao comando de um incêndio com tais proporções, “embora a sua nomeação [para o cargo de segundo comandante distrital] pudesse pressupor que teria competência para o comando de uma operação com esta dimensão”, questionando por que razão até às 22h00, em que se “viveram momentos extraordinariamente difíceis, onde o incêndio era imenso, os meios eram escassos e os danos humanos e materiais começaram a fazer-se sentir”, não foi escolhido um outro comandante distrital “com um perfil sénior e de outro distrito”.
Mário Cerol e Augusto Arnaut foram dois dos sete responsáveis pelo comando de operações no terreno, entre os dias 17 e 21 de junho, mas foram os únicos constituídos arguidos.
Augusto Arnaut, o comandante da terra que ainda é olhado de lado
Um ano depois de um fogo nunca visto em 32 anos de profissão, o comandante dos Bombeiros de Pedrógão, Augusto Arnaut, disse ao Jornal de Leiria que ainda hoje os bombeiros são olhados de “maneira diferente” pela população. Ao que o Observador apurou, a entrevista valeu-lhe um telefonema por parte da advogada da Liga dos Bombeiros que o tem acompanhado no processo em que foi o segundo arguido, a 12 de dezembro. Terá que manter-se em silêncio.
Aos 51 anos, e logo após o fogo, Augusto Arnaut chegou a dizer aos jornalistas que o incêndio andou “sempre à frente” dos bombeiros. “Foi muito rápido”, descreveu. O comandante dos Bombeiros de Pedrógão assumiu o comando das operações às 15h10, menos de meia hora depois do alerta que levou uma equipa a Escalos Fundeiros — onde segundo o relatório da GNR, elaborado a 26 de julho e citado pela CTI, uma linha elétrica “por contacto ou descarga” com uma árvore provocou o incêndio. Essa linha de média tensão da EDP estava, segundo a PJ, “desprovida de faixa de proteção”. E terá sido atingida por um raio.
Os funcionários da EDP que falaram com os peritos da comissão admitiram que àquela hora receberam queixas de utentes que enfrentaram falhas nos seus eletrodomésticos. E que até chegou a haver um corte de corrente “não necessariamente associado à descarga que deu origem à ignição”. No local, a PJ encontrou um carvalho “completamente carbonizado e com sinais no tronco condizentes com o impacto de uma descarga”. “Terá sido o primeiro combustível a arder”, lê-se.
Pouco depois de assumir o comando das operações, Augusto Arnaut ordenou que fossem despachados “do seu Comando de Bombeiros e nos primeiros 30 minutos” sete veículos e 23 bombeiros, lê-se no relatório. Nesta fase foram também mobilizados bombeiros de Peninhe, Ansião, Pombal e Castanheira de Pêra. Às 17h08 Mário Cerol informou Arnaut que estaria a caminho e, cerca de uma hora depois, o comandante dos bombeiros de Pedrógão dá conta de “que o incêndio tinha quatro frentes, 60% a arder livremente”. Por esta altura, constata-se, já havia falhas de comunicações na rede SIRESP — “um sistema que deveria permitir responder adequadamente aos desafios colocados às forças de segurança e da proteção civil na sua atuação diária e em cenários de emergência – catástrofes, acidentes ou incêndios de grandes proporções”.
“A rede SIRESP está baseada em tecnologia ultrapassada (quando comparada com as tecnologias 3G e 4G). Representou, quando foi introduzida, um enorme avanço em relação à fragmentação passada. Mas não acompanhou a evolução vertiginosa que as tecnologias de comunicação sofreram nos últimos anos”, refere a CTI.
Estas falhas foram sendo colmatadas com o recurso às redes móveis públicas e à ROB – uma rede analógica que só permite uma conversação de cada vez o que condicionou as comunicações entre todos os agentes no teatro de operações. Estas são as referências da intervenção de Arnaut ao longo do relatório da comissão.
Sérgio Gomes, o arguido que nem estava no local quando tudo começou
Chegou a ser sapador bombeiro em Lisboa, mas foi em Óbidos que se destacou e chegou ao comando dos Bombeiros. Sérgio Gomes, 46 anos, foi chamado ao Departamento de Investigação e Ação Penal de Leiria pela segunda vez em abril de 2018, dias depois de ter sido promovido a adjunto nacional de operações do Comando Nacional de Operações de Socorro, em Lisboa. Acabou constituído arguido no processo dos incêndios de Pedrogão — porque à data era ele o Comandante Distrital de Operações de Socorro de Leiria. Mas, no dia em que tudo começou, nem sequer lá estava. Passou o dia no hospital onde o filho ficara internado depois de ter partido um braço.
No dia antes do fatídico incêndio, foi Sérgio Gomes quem passou a mensagem do planeamento para os dias 16, 17 e 18 de junho, vinda do Comando Nacional de Operações de Socorro, que determinou “a passagem de alerta especial para o nível Amarelo para todo o território” por causa das “condições meteorológicas adversas” e o consequente perigo de incêndio florestal. “Na descrição da situação meteorológica pode-se ler no 4º parágrafo do referido CTO, sublinhado e a bold no comunicado técnico: ‘entre os dias 16 e 18, a temperatura máxima poderá atingir valores entre 40 e 43 º C nas regiões do interior…”.
Nesta altura, estavam na fase Bravo e os meios disponíveis para atuar eram menores do que os da chamada fase Charlie. Ainda assim, constatou o CTI, “o único meio de reforço pré-posicionado para o quadro previsto” foi o Grupo de Ataque Ampliado da Força Especial de Bombeiros, na base de apoio logístico de Castelo Branco. Aos peritos, tanto Sérgio Gomes como outros comandantes distritais admitiram que não pré-posicionaram meios depois de obterem esta informação. Porquê? Porque não tinham homens suficientes para o fazer.
Assim, para o incêndio foi mobilizado um helicóptero que se encontrava estacionado em Ferreira do Zêzere, que chegou ao terreno com uma equipa helitransportada às 15h05. Mas os peritos questionam porque não foi mobilizado um outro meio aéreo que estava a cerca de 42 quilómetros do local (mais dois quilómetros do que o raio de distância a que é suposto recorrerem). “Atendendo às circunstâncias poderemos reconhecer que as decisões tomadas poderiam ter sido outras se não houvesse um excesso de zelo na mobilização do helicóptero estacionado no CMA de Pombal e se fosse considerado, desde o início, que as freguesias do concelho de Pedrógão Grande estavam referenciadas como freguesias prioritárias, e por isso apresentando um risco potencial significativo”, concluem os peritos contra Sérgio Gomes.
A engenheira Margarida, o vice-presidente José Graça e o operador de máquinas da câmara
Entre os arguidos há três que pertencem à Câmara Municipal de Pedrógão Grande. O então vice-presidente, José Graça, a engenheira e quadro da Proteção Civil, Margarida Gonçalves, e o encarregado geral da câmara, António Castanheira (um operador de máquinas). Todos eles sofreram com o fogo e ajudaram na recuperação do concelho após o incêndio, mas nem querem falar sobre isso. Quem os conhece diz que se sentem “injustiçados” por serem “meros funcionários da autarquia” e enfrentarem agora um processo em tribunal.
Todos eles, à semelhança dos comandantes dos bombeiros, podem vir a ser acusados de 66 crimes de homicídio por negligência e de 250 crimes de ofensas corporais também por negligência. São os mais recentes arguidos no processo. Antes deles, foram constituídos arguidos dois funcionários da empresa Ascendi e dois responsáveis por empresas que deviam ter feito a limpeza e a gestão de combustível.
O relatório da CTI, passado a pente fino pelo Ministério Público, concluiu, depois de falar com vários técnicos, que em todos os concelhos afetados pelo fogo a taxa de gestão de combustíveis à volta das casas (que deviam ter uma faixa de 50 metros) era “baixa”. “A limpeza dos 100 metros em volta dos aglomerados não é executada em três concelhos e nos oito restantes a taxa de execução é considerada baixa”, informa a comissão. Ainda assim, a gestão de combustíveis nas estradas, em termos gerais, apenas é realizada na de responsabilidade municipal, mas não atinge os 10 metros. Apenas um máximo de três.
No local, os peritos verificaram que, após os incêndios, a empresa Ascendi fez a gestão de combustível nos 10 metros para cada lado das vias. Verificou também que a REN e a EDP fizeram o seu trabalho nesta área em seis municípios, no entanto a EDP não o terá feito no troço de 500 metros sob a linha de média tensão onde começou o fogo.
O relatório conclui também que as faixas de gestão de combustíveis obrigatórias e definidas na Lei para salvaguarda de pessoas e bens, nomeadamente para proteção dos locais onde vivem pessoas, nem sequer foram definidas em sede de planeamento. E isto seria uma responsabilidade das autarquias.
Os crimes de que são suspeitos
Os dez arguidos no inquérito aberto aos incêndios de Pedrogão, do qual resultaram 66 vítimas mortais e 250 feridos, podem vir a enfrentar uma acusação por homicídio por negligência e ofensas corporais por negligência. Mas como é que é possível encontrar suspeitos deste crime num cenário como o que se viveu há um ano em Pedrógão?
O penalista e ex-ministro Rui Pereira lembra que desde 2007 que as pessoas coletivas podem ser responsabilizadas por crimes, mas não por crimes desta natureza. “O Estado pode ser responsabilizado civilmente num plano distinto. Penalmente há que procurar a responsabilidade de pessoas singulares“, sublinha. As responsabilidades têm que ser “apuradas individualmente” e é possível apontar o dedo a quem nem estava no local. “O facto de não estar lá não o iliba da responsabilidade do crime, que pode ser cometido por omissão e não só por ação”, explica.
Questionado pelo Observador quanto à responsabilidade penal de um técnico da câmara ou de um bombeiro num caso destes, que resulta do serviço dos arguidos, o penalista Rui Patrício explicou ao Observador que esta pode “assumir várias formas possíveis, por exemplo: homicídio, ofensas à integridade física, omissão de auxílio, incêndio, atividades perigosas, entre muitas outras possibilidades”. E pode entender-se que um dos profissionais em causa reúna os pressupostos destes crimes e outro não. “Depende sempre da análise do caso concreto, dos factos, por exemplo, do ocorrido, das funções, da esfera de responsabilidade, dos atos ou omissões… e da aplicação do Direito. Só perante uma análise do caso concreto e em posse dos seus detalhes, se poderá dizer se a opção do Ministério Público parece melhor ou menos boa”, conclui ao Observador, ressalvando que não conhece o caso.
Para o crime de homicídio por negligência, a lei exige três pressupostos: “Que ocorra uma morte que possa ser imputada, por ação ou omissão, a um terceiro, que a conduta deste seja violadora de um dever de cuidado a que estava obrigado, segundo as circunstâncias, e que podia cumprir, e ainda que seja ilícita culposa e punível”. Mesmo que algumas das vítimas do incêndio tenham morrido na sequência de acidentes quando tentavam escapar às chamas.