Há vários anos que Bia Maria vem construindo um caminho que lhe dá o epíteto de “nome a ter em conta na música portuguesa emergente”. Agora, após lançar três EPs, a cantautora de 26 anos apresenta o álbum de estreia, Qualquer Um Pode Cantar, que é editado esta sexta-feira, 8 de novembro.
“Sinto que, até aqui, tinha estado sempre a dar passinhos pequeninos e a dizer que escrevo umas canções, tenho mais ou menos isto, é mais ou menos aquilo… Com este disco é mesmo: cheguei. Estou aqui, esta foi a sonoridade que encontrei, pré-produzi as minhas canções, trabalhei por elas e é isto que vos quero cantar, é isto que vos quero dizer. Ouçam-me. Isto é não ter medo de me expor, é mostrar o meu trabalho com confiança e segurança”, atira em conversa com o Observador.
Natural de Ourém, fez uma espécie de pré-apresentação do disco na cidade a que chama casa, no teatro municipal local, a 1 de novembro. “Já não me divertia assim há muito tempo em palco”, conta. Quando terminou o espetáculo, exausta e desesperada por dormir, virou-se para o agente, Pedro Oliveira. “Pronto, está feito, acabou”, disse-lhe. O agente só lhe respondeu: “Não, Bia, acabou de começar”.
Uma vida ligada à música
Beatriz “Bia Maria” Pereira está ligada à música desde pequena. Sempre escreveu canções, aos nove anos já tocava trompete. Lembra-se de ouvir muita música com o pai, em viagens de carro, onde se escutavam instituições pop como Tina Turner, Phil Collins ou Madonna, mas também muita música francesa. Através da avó, que “cantava imenso”, alimentava uma ligação à música popular portuguesa que se mantém. E não demorou até deixar-se fascinar por José Afonso ou José Mário Branco.
Durante a adolescência, começou de facto a estudar música. Deixou o trompete de lado e percebeu que se se agarrasse às teclas do piano ou às cordas da guitarra conseguia, em simultâneo, cantar os versos que escrevia. “Quando percebi que poderia juntar aquilo que escrevia ao piano ou à guitarra, descobri uma forma de expressão que para mim se revelou quase inacreditável.”
[o vídeo de “Marcha da Paridade”:]
Sempre fora tímida, tinha dificuldade em expressar-se, criava obstáculos e barreiras para se ligar às outras pessoas, mas nada disso era um entrave quando tocava e cantava. “Fluía e parecia que me saía um peso de cima. Foi uma bola de neve gigante, fui sempre escrevendo e tocando.”
Na escola de música que frequentava, conheceu outros músicos que já tinham tido experiências profissionais. De repente, a ideia de fazer música da vida, ou vida da música, já não lhe parecia assim tão irreal nem distante. Apaixonada pelo ensino, decidiu-se a ser professora de música, enquanto ia escrevendo e compondo os seus próprios temas.
Quando chegou à idade adulta, deixou Ourém rumo a Lisboa, para ingressar na Escola Superior de Música. Estudava Formação Musical e Direção Coral, um curso apropriado para quem queria dar aulas; mas pelo meio começou a dar-se com colegas do curso de Produção Musical, que estavam a criar a sua própria editora, a Chinfrim Discos. “Eles precisavam de artistas para começar e meio que surgiu uma oportunidade. Eu estava naquela fase de se calhar querer lançar as minhas canções, se calhar até era giro. As duas coisas juntaram-se e correu bem.”
Acabou por lançar os seus três EPs — Mal Me Queres, Bem Te Quero (2019); Tradição (2020); e do Roberto (2022) — pela Chinfrim Discos. “Fui fazendo, sem levar a coisa muito a sério, mas claro que desde há uns três anos percebi: gosto mesmo de fazer isto e quero trabalhar nisto, por isso tenho que me levar a sério, para as pessoas também me poderem levar a sério.”
Durante a pandemia, diz que começou a sentir alguma pressão para lançar um álbum. Supostamente até já tinha um disco, fruto de uma residência artística que tinha feito em Leiria, mas não se revia o suficiente naquelas canções. “Aquilo nunca fez muito sentido. Eram canções que eu tinha escrito, só que o álbum não tinha propriamente uma conexão, não havia uma produção coesa entre as canções. Estava tudo meio solto. E eu gostava que houvesse um conceito, então adiei esse álbum, também porque estava muito difícil conseguir apoios.”
A epifania conceptual que a conduziu ao álbum
Há pouco mais de um ano, olhou para as canções que tinha armazenado com o tempo e percebeu que “elas se ligavam de alguma forma”. “Eram só umas cinco ou seis, mas percebi que eram um álbum. Deixei a coisa maturar, continuei a escrever, surgiu mais uma e depois outra. Às tantas, faltava-me o nome do álbum e um conceito. Parecia que a ideia estava mesmo à minha frente, mas não estava. Faltava mesmo qualquer coisa.”
Candidatou-se a diversos apoios culturais para conseguir financiamento para o disco, mas as sucessivas respostas negativas levaram-na mesmo a considerar desistir, deitando tudo por terra. “Vou desistir, acabou, não quero mais, estou farta e cansada disto. E uma amiga disse-me: ‘Bia, isso não funciona assim, tu não podes de um dia para o outro dizer que não queres mais ser artista’.”
Admiradora confessa do trabalho de Tiago Pereira com o projeto A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria — que faz recolhas do cancioneiro popular português, registando-o para memória futura —, com o qual já tinha colaborado para o seu segundo EP, certo dia assistiu a um vídeo onde o mentor do projeto explicava o que o levava a gravar aqueles registos. “Ele acha que todos nós podemos cantar e temos direito a usar a nossa voz.”
Por volta da mesma altura, passou por um momento emocionante com uma das suas alunas. “No final de uma aula, mostrou-me que tinha escrito umas coisas. E disse-me: ‘professora, escrevi isto, e até tinha muita vergonha de cantar e não queria nada dar voz às minhas canções, mas como a professora está sempre a dizer que qualquer um pode cantar, de repente até ganhei força’. Emocionalmente mexeu muito comigo e lembro-me de que cheguei a casa, tinha vindo no caminho todo no carro a chorar, aquilo bateu-me de uma forma inacreditável e pensei: é isto. Peguei na guitarra, escrevi a Qualquer Um Pode Cantar e compreendi que o disco era todo um pouco à volta disto: da voz, da importância dela tanto individual como coletivamente. Nesse momento fez-se luz. Percebi que a importância da voz era aquilo que ligava todo o álbum e era o mote disto tudo.”
De “Ratatui” ao fenómeno das raízes portuguesas na música contemporânea
Influenciada pela música tradicional portuguesa, pelo fado, mas também pela pop internacional, Bia Maria foi construindo um híbrido muito próprio ao longo dos últimos anos. Neste disco, Qualquer Um Pode Cantar, acabou por integrar uma série de coros para participarem nas canções. Sempre tivera uma ligação aos grupos corais, mas tal fazia ainda mais sentido num momento em que se assiste a um ressurgimento dos coros na música portuguesa e à cada vez maior evocação das raízes populares na música contemporânea.
Quando se diz que “qualquer um pode cantar”, naturalmente fala-se sobre mais do que música. Bia Maria até dá um exemplo que tem a ver com culinária e com o filme de animação Ratatui. “Há uns meses estava a ver este que é um dos meus filmes preferidos. E o tema da cena e do chef é ‘qualquer um pode cozinhar’. De alguma forma, isso deve ter ficado dentro de mim. E é muito bonito porque, no final do filme, ele explica o que é que quer dizer com ‘qualquer um pode cozinhar’ e fez muito sentido para mim. Ressoou, porque também é uma das minhas perspetivas: ele diz que não é que qualquer um possa cozinhar, mas significa que um artista pode surgir em qualquer lado, pode vir de qualquer lado, pode ser qualquer pessoa. Isso para mim é super importante, porque não nasci com qualquer privilégio. Venho de uma família super simples, do centro do país, tive que ir para Lisboa estudar, voltei para Ourém… As pessoas com quem trabalho são maioritariamente de Ourém. Toda a estrada que fiz até agora foi a tocar num circuito de associações por todo o país. Acho que isso também formou estas ideias e me formou enquanto artista.”
[o vídeo de “Campo/Cidade”, canção de juntou Bia Maria a Jasmim no ano passado:]
A ligação às raízes que se tem vindo a notar cada vez mais na música nacional — patente em nomes recentes, de Rita Vian a Ana Lua Caiano, por exemplo —, naquilo que é também um fenómeno global de apropriação das músicas e culturas locais, beneficia o momento deste lançamento.
“Vivem-se tempos muito bons nesse aspeto, de haver cada vez mais malta a perceber que é super importante olhar para as raízes e fazermos música que temos vontade de fazer. Para mim é super natural. Neste disco tudo estava alinhado, tudo fazia sentido, havia essa referência meio popular e das raízes que ligava isto tudo. Tudo batia certo. Há 10 anos provavelmente não seria tão bem compreendido. Hoje as pessoas já compreendem as referências, de onde é que as coisas vêm e aquilo que estou a tentar dizer e mostrar.”
O processo de composição foi particularmente solitário. Bia Maria trabalha com recurso à epifania. “Sento-me ao piano e à guitarra e a harmonia, a melodia e a letra vem quase tudo de uma vez.” As canções são depois aprimoradas, seja nos versos ou nos arranjos, no estúdio que a cantautora instalou em casa, num processo que oscila entre instrumentos acústicos e produção digital.
“Pensei: ninguém vai fazer isto por mim. Também sou um pouco control freak, gosto que as coisas estejam a soar à minha maneira e às vezes isso é difícil quando se trabalha com outros, quando ainda não temos bem uma ideia definida. Não posso chegar ao pé do Guilherme [Simões] e do Rodrigo [Domingos], que produziram o disco comigo, e mostrar-lhes só as canções meio despidas. Porque eles vão querer inventar coisas e sei que não vai soar àquilo que quero. Então tenho de levar as coisas trabalhadas e não posso ser preguiçosa, não posso andar a arranjar desculpas. Isto vai ser difícil, mas tenho de conseguir. Aprendi a mexer no [software] Ableton, montei o estúdio em casa, comecei a gravar as guitarras, a melodia, e depois trabalhava a partir daí, a desconstruí-las.”
Bia Maria acredita que este primeiro álbum revela “outro tipo de preocupações que vêm com a idade adulta” e que não tinha no início do seu percurso. Várias delas são canções íntimas, mas também universais, sobre o que significa ser uma mulher no início da idade adulta, sobre as inquietações que marcam este momento da sua vida. Tem a ver com explorar e levantar o véu sobre as suas vulnerabilidades.
“Vivo muito dentro da minha cabeça e tenho esta preocupação constante de que sou insuficiente ou insignificante no mundo, que não estou a fazer nada que importe, ou que nunca vou ser suficiente para as pessoas, tanto pessoalmente como artisticamente, que o meu trabalho não vai importar, não vai interessar. Passo o tempo todo a pensar nisso e às vezes parece só que, por estar dentro da minha cabeça, não chego a ser tudo — aliás, não chego a ser nada. Então é preciso passar cá para fora, é preciso sair da cabeça, é uma reflexão que me tem acompanhado de há alguns anos para cá, porque sou uma overthinker gigante. Para chegar a este disco tive de mostrar os meus pensamentos e essa fragilidade ao mundo. As canções são sempre o meu refúgio e escrever é uma forma de demonstrar todas as minhas inquietações.”
O single Marcha da Paridade é uma canção feminista que aponta o dedo às desigualdades de género que as mulheres continuam a protagonizar. “Sempre tive dificuldade em ser empoderada e em me revoltar contra as coisas. Aceitava tudo, ficava sempre muito calada, era tudo para dentro e não posso dizer nada porque não vai fazer diferença. Comecei a ganhar consciência de que havia coisas que não eram de todo certas e que acontecem à maioria das mulheres. E quando uma mulher começa a falar com outra e com outra e percebe que não é normal, que isto acontece a todas nós, que há um padrão… Não está correto. Não nos podem vir dizer que somos livres, quando não somos livres e estas coisas continuam a acontecer ano após ano e nada muda. Parece que o mundo acha que demos muitos passos em frente, e demos alguns, só que demos outros para trás e há muitas coisas que continuam a ser erradas e precisam de mudar. Fui enchendo e enchendo e depois isso resultou nesta música. Foi o meu grito.”
Nos últimos anos, têm surgido em Portugal uma série de cantautoras e compositoras com projetos em nome próprio, equilibrando a balança no panorama geral da música nacional. “Dantes também podiam existir algumas, mas não havia as oportunidades e a projeção que existe agora. Vivemos tempos extraordinários, às vezes até há festivais com pouca equidade, com poucas artistas femininas a tocar, e muitas das vezes há a desculpa de que ‘não há assim tantas mulheres a fazer música’. Como não? Já não podemos usar essa desculpa, de todo. Vivemos numa altura em que a maioria das artistas que oiço, principalmente cantautoras, são mulheres. Vivem-se tempos ótimos. Claro que ainda há muitas coisas a melhorar, de desigualdades que se vivem, e certos estereótipos e sexualizações e uma data de contextos desagradáveis que se vivem dentro da indústria musical, e isso é sempre um trabalho a fazer, mas, a nível de projeção, estamos bem.”
Ao vivo, como dizia o seu agente no final do concerto no Teatro Municipal de Ourém, este é só o início. Este sábado, 9 de novembro, Bia Maria apresenta o álbum em Lisboa, no Musicbox. Toca baixos e teclas e vem acompanhada de Samuel Louro e Luar. Com uma série de concertos já agendados para 2025, nos quais planeia envolver coros das diferentes terras por onde irá passar, os horizontes de Bia Maria parecem promissores.
“Adorei este novo formato ao vivo, poder estar descontraída só a curtir as canções e a interagir com o público… Sinto que é uma outra parte de mim que de repente surgiu, então sinto-me super entusiasmada para andar aí a percorrer o país. As pessoas passam grande parte do concerto a cantar, é maravilhoso.”
Com Qualquer Um Pode Cantar, reforça a mensagem democratizadora de que o canto pode (e também deve) ser um exercício comunitário e amador, tal como os cantos populares se desenvolveram nos campos, no trabalho e nas tabernas, ao longo dos séculos.
“Sinto que as pessoas dantes cantavam muito mais. Nas tabernas, na rua, havia sempre alguém que tocava guitarra e outras pessoas juntavam-se e cantava-se. Parece que hoje não pode estar alguém a tocar na rua que vem logo alguém dizer: ‘desculpa, não podes estar aqui, tens de pagar, tens de ter uma licença para estares aqui a tocar e a cantar’. Perdeu-se essa coisa da canção de rua, de as pessoas simplesmente juntarem-se a cantar. O cantar, enquanto coletivo, tem o poder da transformação. As pessoas juntam-se e isso faz com que elas se conheçam e se respeitem e juntas também podem indignar-se sobre certas coisas, e é preciso esse lado interventivo. No fundo, cantar em conjunto é uma forma de intervenção.”