“A vida é muito bonita para estar agarrada ao telemóvel”, atira Kareem, um turco de barba farta e olhos escuros, rasgados, instalado à porta da sua loja de jóias, a Robi Diamond, no número 4 do Grand Bazaar — o principal pulmão comercial de Istambul. Ainda atordoada pela abordagem, lá lhe explico que sou jornalista, que viajei para a Turquia a propósito do jogo do Benfica com o Fenerbahçe e que estava, na realidade, a tirar notas para uma reportagem. O sorriso, aquele sorriso que nunca desmaia mas que também não é postiço, abre-se ainda mais no rosto de Kareem. “Ah, é jornalista! Gosto muito de jornalistas! Mas porque é que vocês não contam a verdade?“.
Devolvo-lhe a provocação. “Muitas vezes, porque as pessoas não nos contam a verdade”. Estavam ainda frescas na minha memória as conversas que acabara de ter com outros quatro turcos como Kareem, a propósito do momento delicado que vive a Turquia — em plena guerra diplomática com os Estados Unidos. A moeda do país, a lira turca, tem estado a desvalorizar para níveis históricos nos últimos dias: 15% face ao dólar na passada sexta-feira — na sequência do anúncio de Donald Trump de que iria duplicar as taxas alfandegárias sobre a importação de aço e alumínio da Turquia —, mais 8% na segunda seguinte, num total de 30% só no último mês.
E agora Erdogan? Até quando pode resistir uma Turquia sem aliados e com que custos
Voltando às conversas com os turcos e às provocações de Kareem: muitas vezes, a vontade de “contar a verdade” esbarra no seu encobrimento por parte de quem a vive. E neste caso não foi exceção. Os turcos entrevistados pelo Observador foram unânimes em reconhecer o medo que sentem perante o momento do país, mas na hora H — a hora de colar a história aos seus responsáveis, a hora, por exemplo, de opinar sobre a presidência de Recep Tayyip Erdogan —, as palavras dão lugar a sorrisos nervosos, a despedidas apressadas, a um desejo secreto de que se compreenda nas entrelinhas o que querem dizer, mas que sentem não poder.
É o caso de Toni Arslan, dono da Aslan Jewellery, no número 34 do Grand Bazaar. As bandeiras brasileiras na montra não enganam: Toni é meio turco, meio brasileiro. Nasceu no país sul-americano, mas mudou-se há 40 anos, ainda criança, para Istambul, quando os pais resolveram regressar à terra natal. Qualifica de “inacreditável” a desvalorização da moeda nos últimos tempos e assegura que os turcos “estão muito preocupados com o futuro”.
O negócio, diz, já sofreu efeitos: “O ouro é negociado em dólares, então para mim é a mesma coisa. Mas quando transformo o preço em liras, fica muito caro, por isso não consigo vender a turcos. Nas duas últimas semanas o movimento caiu muito entre os turcos”, explica o comerciante que, quando se põe no papel de consumidor, também sente dificuldades. “Os preços ainda não dispararam, mas já começaram a subir, sobretudo a gasolina, o gás e a eletricidade”. É chegada a hora de fazer a pergunta incómoda: de quem é a culpa disto? “De quem é a culpa?”, confirma Toni, procurando atrasar a resposta alguns segundos, para medir bem as palavras. Não se atreve: “Não dá para responder… pensa tu e escreve”, diz com um sorriso nervoso e um encolher de ombros que é quase um pedido de desculpa.
Algumas portas ao lado, Huseyin, repete o mesmo método, mas com uma nuance: na hora do aperto, empurra a batata quente para o amigo Mesut — “que percebe muito de política“. Antes disso, ainda reconhece estar “com medo do futuro”, assegura que o presidente Erdogan não tem estado bem no conflito diplomático com os Estados Unidos, mas que Trump também não e ainda esclarece que a popularidade do presidente está muito dividida: de um lado os mais radicais, que o apoiam devotamente, do outro aqueles que lhe atribuem a culpa pela situação do país.
Mas não toma partido. À medida que vou fazendo perguntas, o desconforto torna-se evidente e vai afrouxando o sorriso de Huseyin. É altura de chamar Mesut, que está do outro lado da rua principal do Grand Bazaar — onde trabalha desde os 11 anos no negócio de família, a loja de doces turcos Ramazan Canbaz. Lá vem ele, de ar gingão, vestido de polo amarelo e calças de ganga, como se de um ocidental se tratasse.
As perguntas esbarram em mais uma muralha. Desta vez, a saída é o galanteio — apurado ao longo dos anos de experiência num país em que a arte de vender é encarada como um exercício constante de charme (que cai, quase sempre, no piropo fácil). Mesut é (ainda) mais contido. Não responde a rigorosamente nada. “Tem sentido o aumento dos preços?”, pergunto-lhe. “Não vou falar de política. É um assunto que me deixa muito chateado. Prefiro ver o seu sorriso”. Mais uma tentativa. “Mas porquê? Tem medo?”. “Medo? Claro que não! Só tenho medo de me apaixonar por si”.
“Estamos em choque. Ninguém sabe o que há-de fazer”
Resolvo desistir e dou de caras com o guia turístico Ahmed (nome fictício, já vai perceber porquê). Desta vez, a estratégia é diferente. Ahmed fala e muito, mas na altura de comentar mais a fundo os problemas — e de falar, por exemplo, nos investimentos megalómanos do presidente Erdogan — pede que não escreva o seu nome verdadeiro na reportagem. “Senão vou preso”, diz, tentando embrulhar a apreensão num sorriso.
Ahmed garante que os turcos estão “em choque”. “Ninguém sabe o que há-de fazer. Os preços ainda não subiram muito, mas vão subir. Sobretudo as mercadorias importadas, que podem aumentar 50%”, sentencia. “As pessoas têm menos dinheiro e quem o tem também não compra, porque fica mais prudente. Não sabemos o que vai acontecer no dia seguinte”.
Diagnóstico feito, está na altura de esmiuçar a origem do problema. E é exatamente aqui que Ahmed pede para que o seu nome não seja divulgado. As palavras querem sair, mas o guia turístico joga à defesa: quer assegurar-se de que não há consequências. “Estupidamente” — diz –, “a Turquia preferiu crescer com o dinheiro emprestado, porque [no tempo da crise internacional] o crédito tinha um juro baixo”, explica. O reverso da medalha é que “esse dinheiro foi usado para betão”. “Não se investiu para melhorar as fábricas, para a produção de nada — por exemplo de alta tecnologia. Fizemos pontes, passagens subterrâneas, mas não trabalhámos para a nossa independência como país”.
Está claro para Ahmed que a grave crise vem do presidente Erdogan e da utilização que deu aos fundos públicos. “É precisa uma mudança?”, pergunto. “Com certeza, com certeza”, confirma. Mas não como aquela que foi cozinhada na madrugada de 15 de julho de 2016, quando militares do exército turco tentaram um golpe de estado — que acabou fracassado, com o presidente aclamado pelo povo. “O golpe militar foi um teatro. Foi tudo feito de madrugada, os militares prenderam os políticos às cinco da manhã, o presidente estava de férias fora da cidade, às 9 da manhã bloquearam a passagem da ponte intercontinental… Não é assim que se faz”.
O guia turístico garante — como já dissera Huseyin — que as opiniões entre os turcos estão divididas a respeito do presidente. “Para metade do povo ele é um profeta, para a outra metade é um filho da mãe. Não há meio termo”, assegura. É como se o país se dividisse entre os fanáticos religiosos que apoiam o seu líder máximo e aqueles que assistem, com alguma massa crítica, às manobras de reforço do poder levadas a cabo pelo presidente turco, sobretudo no referendo de 16 de abril de 2017, que transformou uma república parlamentar num sistema presidencialista. Entre outras mudanças, os deputados deixaram de ter poder de escrutínio e interpelação, o cargo de primeiro-ministro foi abolido, passando o poder a concentrar-se integralmente no presidente, que pode agora, até, nomear juízes do Supremo Tribunal de Justiça do país, quebrando o princípio da separação de poderes.
“Agora tudo depende do presidente“, sintetiza Ahmed. “Ele criou um sistema presidencial que nem é bem presidencial, é mais uma monarquia. Basta ele dizer que uma coisa vai ser proibida, que no dia seguinte já é proibida, não é preciso parlamento, não é preciso nada. Pagamos um salário muito alto aos deputados, mas eles não têm força. Se o presidente diz que vai dividir a Turquia em quatro, ele consegue”, critica. “Ninguém o tira do poder, vai ficar lá até morrer…”.
“O turismo pode ser uma saída, mas não podemos usar o dinheiro para coisas estúpidas”
Um dos efeitos da desvalorização da lira turca face a outras moedas mais fortes é o aumento do turismo no país. Tudo fica mais barato para quem vem de fora. É como se, por magia, o dinheiro esticasse e nele coubessem muito mais produtos. Ahmed sabe-o melhor do que ninguém. “Este ano o turismo tem crescido muito, está tudo muito barato para os outros países. Em 2016, o turismo morreu por causa dos atentados terroristas [foram 14 no país, em apenas um ano], em 2017 houve uma recuperação e este ano está muito melhor“, garante o guia.
A perceção de Ahmed bate certo com os números apresentados pelo Ministério da Cultura e do Turismo turco, que avança que, na primeira metade de 2018, houve mais 30% de turistas em relação ao ano anterior. Trocado por miúdos, “16 milhões de estrangeiros visitaram o nosso país nos primeiros seis meses do ano”, confirmou aos jornalistas, em junho, o ministro da pasta, Mehmet Ersoy.
Ahmed é comedido. “O turismo pode ser uma saída para o país, mas não podemos utilizar o dinheiro para coisas estúpidas, para construir uma grande mesquita ou fazer projetos sem sentido”, opina. A pergunta sai disparada deste lado: “Em que é que se deve investir mais?”. O guia pega na questão pela base. “É preciso investir na educação dos jovens. Erdogan insiste para que haja uma educação religiosa, mas não há no mundo um país desenvolvido, como os EUA ou a Suíça, com uma educação religiosa“, remata.
Uma cidade-mundo que mais parece um turbilhão
Contrastes. Istambul é uma cidade de contrastes. Primeiro, de culturas: há mulheres de burqa, de quem apenas conhecemos os olhos, ao lado de outras, de saia curta e salto alto, exuberantes. De cheiros, entre o adocicado das especiarias e o amargo do milho assado que é vendido em carrinhos ambulantes de riscas vermelhas e brancas, um em cada esquina. Também de paisagens: os monumentos bizantinos, com as suas imponentes torres pontiagudas e cúpulas arrendondadas estão a escassos metros de avenidas que podiam estar em qualquer metrópole europeia.
Depois há, claro, o contraste próprio de uma cidade — a única no mundo — que se distribui por dois continentes, o europeu e o asiático. Atravessamos o Bósforo pela ponte mais recente, inaugurada há apenas dois anos pelo presidente Erdogan na sua missão assumida de construir uma Turquia moderna. É a maior ponte suspensa do mundo, custou 798 milhões de euros e tem uma arquitetura que a um português faz, de imediato, lembrar a lisboeta ponte Vasco da Gama.
Do outro lado, do lado onde a Ásia nasce em Istambul, é como se estivéssemos noutra cidade. Noutro mundo. Logo à saída da ponte, o casario amontoa-se na encosta, tijolo com tijolo. Os prédios têm uma cor gasta. Alguns não têm cor de todo. São edifícios de dormitório, amorfos, incaracterísticos. Mais à frente, há torres espelhadas de dezenas de andares, ao melhor estilo de Hong Kong, que desenham uma paisagem caótica e monocromática. Quase ninguém fala outra língua que não turco. Não há uma única placa em inglês. É a intuição, mais nada, que nos diz que onde está escrito “giriş” é onde devemos entrar num lugar e onde se lê “çikis” é onde devemos sair. As mulheres de burca são agora a maioria. Os rostos são mais fechados, não há o mesmo charme, a mesma simpatia.
Istambul é uma cidade-mundo, que por vezes parece perdida na sua própria identidade, indecisa entre o cosmopolitismo de uma grande metrópole e a tradição imposta pelo islamismo. Como acontece na Mesquita Azul, um dos cartões de visita da cidade. Cá fora, há uma fila de torneiras de mármore para se lavar os pés antes da oração. As regras para a entrada são rígidas: todos têm de se descalçar (e transportar os sapatos em sacos de plástico distribuídos para o efeito), as mulheres têm de ter a cabeça coberta e as pernas não podem estar à mostra.
Pelo caráter sagrado do lugar e pelo preceito com que se faz a entrada, acreditamos ser ali que desliga o botão do mundo agitado que corre lá fora. Puro engano. A amálgama de vozes, de línguas, de pessoas que percorrem o chão de alcatifa quase desvirtua o lugar. Quase, porque atrás de onde estamos é possível ter um vislumbre das silhuetas curvadas em oração — os homens à frente, na área principal, as mulheres atrás. Juntos nunca: “Não é discriminação”, apressa-se a explicar o guia que acompanha a visita. “Deus diz que o homem é um ser muito fraco e não pode ser sujeito a tentações. Se uma mulher muito bonita se baixa em frente a um homem, ele pode começar a pensar noutras coisas…”.
Não há forma de se desligar a cidade — Istambul é um turbilhão. O trânsito é caótico. Não há cá civismos; é o salve-se quem puder. O acidente parece assombrar-se a cada momento, enquanto os carros se esgueiram por espaços impossíveis e desdobram duas faixas de rodagem em três ou quatro. Vendedores de água, lenços e até flores espreitam a oportunidade entre o caos e fazem negócio na berma, por entre os carros.
Em cada esquina uma surpresa: ora um homem grita palavras em turco à porta de uma loja, de cartaz vermelho em punho, apelando a quem passa que entre, ora um músico batuca na sua tabla (instrumento de percussão muito usado no oriente) procurando atrair as moedas de um grupo de turistas de máquinas em riste para segurar o momento. Junto ao mar, um grupo de homens alheio ao burburinho de carros que lhe passa a escassos metros, refastela-se em cima de pedras escuras, tomando demorados banhos de sol — uns em toalhas, outros em estruturas mais complexas, que se assemelham a tendas.
Quando acreditamos que o ritmo vai, definitivamente, abrandar, eis que somos mais uma vez surpreendidos. Às cinco da manhã acontece a primeira oração do dia e a antecedê-la há o chamamento — ou ezan, em turco —, um cântico que mais parece um choro, demorado e doído, amplificado por colunas instaladas no exterior das mesquitas. A cidade é mesmo assim, vibrante, caótica, sedutora. É por isso que quando Kareem, o turco de barba farta e olhos escuros, rasgados, que nos aborda no Grand Bazaar, pergunta como que por ingenuidade se “podemos ser amigos ou se acho que a Turquia é inimiga”, a resposta só pode ser uma: “É claro que podemos ser amigos”.
O Observador viajou para Istambul a convite da Betclic.