Em 2006, Mike Judge apresentou ao mundo Terra de Idiotas, filme com uma premissa que muitas acharam estúpida, exagerada, até cínica (como Paul Feig nos diz nesta entrevista). A sociedade moderna incitou a classe média/formada a não procriar, seja pela obsessão com a carreira ou pela problematização de tudo e mais alguma coisa (a crítica vai para lá da procriação); em oposição, os idiotas não paravam de se procriar. Décadas e décadas disto levaram a uma idiotização da sociedade e a um wrestler profissional tornar-se presidente dos Estados Unidos. Sejamos autocríticos: este mundo demorou menos tempo do que a previsão do filme a eleger Donald Trump.
Jackpot!, o novo filme de Paul Feig, imagina uma realidade não muito distante, onde os pobres ficam cada vez mais pobres, e novos bilionários surgem todos os dias. E, como tudo é entretenimento, em Los Angeles inventou-se uma lotaria muito específica, que funciona como uma lotaria normal com um senão, o vencedor tem que se manter vivo, dentro dos limites de Los Angeles, durante um período de tempo. Se alguém o matar, esse ficará com o prémio. Ou seja, sempre que a lotaria anda à roda, há uma cabeça a prémio. Única regra? Não se podem usar armas de fogo.
Paul Feig imaginou uma certa distopia com os tais elementos idiotas misturados com Battle Royale, género que ficou com esse nome graças ao filme de 2000 de Kinji Fukasaku. Não parou aqui, juntou o imaginário dos filmes de Jackie Chan com uma grande dupla: a comediante Awkwafina (é ela que terá a cabeça a prémio) e John Cena. Cena prova, mais uma vez, que está disposto a não ser levado a sério. E isso torna-se num eficaz ator de comédia, muito melhor do que aquele que vemos nos filmes de ação.
É mais um filme em que Paul Feig pega em imaginários dos 1980s e 1990s e desconstrói-os. O elemento principal parte de uma personagem feminina. Foi assim com Caça-Fantasmas, Spy, Armadas e Perigosas e, claro, A Melhor Despedida de Solteira, filme de 2011 que o colocou finalmente nos holofotes e que mostrava que a comédia com mulheres também podia ser de camaradagem como a dos homens: não precisávamos de estar presos no loop de A Ressaca. Antes disso, criou uma das séries mais importantes das últimas três décadas, Freaks and Geeks – A Nova Geração (2000). E foi com um obrigado que começou esta conversa (parte omitida de propósito para evitar momentos embaraçosos a quem escreve).
Ao ver Jackpot! não parei de pensar num mashup entre Terra de Idiotas e Battle Royale. Estou longe da verdade?
Isso é uma grande descrição! Adoro ambos os filmes. Eu vejo Jackpot! como o meu filme Jackie Chan. Uma boa história, uma situação divertida e uma protagonista [Katie, interpretada por Awkwafina] que se pode tornar muito engraçada pela forma como nos relacionamos com ela: às vezes estamos tão dentro da nossa cabeça que não nos apercebemos de como o mundo se vira contra nós. Ainda para mais, ela tem problemas de confiança, que vão ser resolvidos por uma pessoa que está a tentar ajudá-la genuinamente, ao contrário do que se poderia esperar, que seria enganá-la.
Também me ocorreu Jackie Chan. O que o levou nessa direção?
Adoro esses filmes vindos de Hong Kong, eram tão divertidos. Também gostei das propostas exageradas de filmes como O Caça-Polícias e o outro com Nick Nolte [48 Horas]. Porque acontecem numa realidade assustadora, perigosa, mas também são divertidos pela forma como as personagens reagem a tudo o que acontece. Sempre pensei que isso era um bom lugar para a comédia, porque se sentia como real, ao contrário da comédia mais genérica dos 1990s. Gostaria de me relacionar com personagens como aquelas no mundo real.
Cresceu com esses filmes. Vê como um privilégio recriar estes géneros?
Adoro, adoro os filmes, como foram feitos, mas alguns deles tendem a ser hipermasculinos. É mesmo divertido pegar neles e meter mulheres nos papéis principais, porque me identifico mais com mulheres divertidas, gosto de trabalhar com elas. É território pouco explorado. Não é só trocar o género, mas meter uma pessoa completamente diferente no papel principal. Porque tira alguma da toxicidade… eu gosto muito daquele género de comédia, mas era muito masculina, bro-ey. As mulheres eram usadas como acessórios nesses filmes. Tem piada trocar isso e colocar as mulheres no poder, são elas que estão a controlar as histórias.
O John Cena é o gajo menos bro-ey dos bros?
Exato! Ele é um tipo grande e nerd neste filme. Ele quer ajudá-la de forma sincera, ela não está convencida do que lhe está a acontecer; ele também tem mais em mãos do que consegue, realmente, lidar. No processo, ele não quer magoar ninguém, só a quer proteger. É bondoso, doce, é uma personagem que vem de um bom lugar.
Porque é que acha que o John Cena não se importa que gozem tanto com ele?
É por isso que eu gosto tanto dele. A primeira vez que falei com ele – num Zoom – , ele disse-me logo: “Não penses que tens de me fazer cool.” Se fosse outra pessoa, iria dizer: “não vou fazer isso”. O John diz: faz-me parecer parvo, estúpido. Não conseguiria fazer o filme de outra forma, porque não seria divertido, mas ele consegue ser parvo, consegue mostrar-se impotente… e ser o tipo de quem as pessoas se riem. Ele adora isso, ele disse-me que quer continuar a fazer comédia. Espero voltar a trabalhar com ele.
Como vê a personagem da Katie?
Qualquer protagonista tem um passado, algo aconteceu, ou perderem a confiança, não sabem o seu lugar no mundo. Relacionas-te com elas, porque a maioria de nós sentiu-se assim em algum momento, ou sempre. Ela é boa pessoa, a primeira vez que a vemos, está a defender uma rapariga no autocarro, de uma forma muito criativa – tem um bom coração. Gosto da ideia de que é alguém inocente que se vê envolvida numa situação muito perigosa. E como reage a isso, porque ela reage de uma forma muito real. Entra em pânico, à procura de ajuda de alguém e depois aparece alguém, mas ela não confia nessa pessoa, porque como é que podes confiar em alguém quando vales tanto dinheiro? Isso torna-a muito relacionável. Além disso, sou amigo da Awkwafina e há algum tempo que andávamos à procura de algo para colaborar. Isto chegou-me às mãos com ela já associada ao projecto… divertimo-nos mais do que imaginávamos.
Ela teve de aprender artes marciais?
Ela não teve de aprender a ser boa, teve só de aprender a reagir em certas situações. É isso que adoro na Katie também, ela não é uma lutadora profissional, aprendeu o que sabe numa escola para atores. Acho que isso também a torna muito relacionável, era o que o que eu faria naquela situação.
Pegando no aspeto Terra de Idiotas do filme. Acha que estamos a ficar mais burros enquanto sociedade?
Tem piada, quando vi o Terra de Idiotas pensei: é tão cínico, o mundo não ficar assim…
Mas…
E aqui estamos. Mas ainda tenho a minha esperança na humanidade, acho que chegamos a um ponto em que as coisas ficam muito más e depois voltamos atrás. Por exemplo, nem toda a gente está a jogar a lotaria, só quem compra bilhete. Por isso, há uma grande maioria que não aprova isso. Acho que não vamos totalmente na direcção de Terra de Idiotas.
O não ir totalmente é porque acontece em Los Angeles?
[risos] Acho que tem a ver com a parte da lotaria, só participas se quiseres. Há muita gente que não quer participar nisso, algo que é representado pelo segurança no Museu da Cera, interpretado pelo Leslie Baker, que diz que não concorda com aquilo. Isso faz toda a diferença para mim.
Trabalha com comédia há muito tempo. O que sente que está a mudar?
Eu acho que hoje em dia há muita comédia, somos muito dirigidos pela comédia. Nas redes sociais há muita piada, muita gente esconde-se por detrás da comédia… e os políticos também, embora muitas vezes não são bem piadas, é só maldade. Na generalidade, a comédia é muito poderosa e acho que as pessoas querem isso. O que as pessoas não querem é comédia parva, que se sentem como piadas frívolas. Tem de ter alguma ressonância, tem de ser honesta. Este filme fica muito doido, mas é algo muito credível: isto podia acontecer.