Em pleno centro de Lisboa, as obras decorrem a todo o gás. O teatro que Almeida Garret imaginou para o Rossio ficará pelo menos mais um ano fechado, garante Pedro Penim, que prevê abrir as portas do Teatro Nacional D. Maria II (TNDII) em janeiro de 2025. O criador e fundador do Teatro Praga acaba de vencer o concurso público para a direção da instituição, que dirige já desde 2021, depois de ter sido chamado a assumir a posição de Tiago Rodrigues quando este rumou ao Festival de Avignon.
O segundo mandato, que inicia a 1 de janeiro e termina em 2027, servirá para correr mais riscos. “No primeiro mandato tinha a Odisseia Nacional em mãos, não tinha capacidade de o fazer. Agora há todo um espaço de pensamento no sentido da desfragmentação do poder”. Como será o futuro? É o que antecipa em entrevista ao Observador, horas antes de partir para Loulé, onde entre 14 e 16 de dezembro participa no evento “Cenários Futuros”, o terceiro evento de pensamento desenvolvido pelo Teatro Nacional D. Maria II, no âmbito da Odisseia Nacional, com o objetivo de refletir sobre o país e a cultura.
Em 2024, o TNDII continuará com programação por todo país, numa Odisseia Nacional menos ambiciosa — este ano foram 93 municípios, no próximo serão 38 —, mas tornará a Lisboa, com uma programação espalhada por diversos espaços e dedicada às comemorações dos 50 anos do 25 de abril.
Prestes a começar um segundo mandato, já pode olhar para o primeiro. O que funcionou melhor e pior?
O que funcionou melhor foi, sem dúvida, a coragem de conseguir encontrar um conselho e uma operacionalidade para a Odisseia Nacional. Houve ali um momento de grande felicidade conceptual, criativa, mas também de grande responsabilidade e capacidade de trabalho das equipas do Teatro Nacional e de todos os parceiros que estão envolvidos na Odisseia. Ainda me continuam a dizer: “pois, tiveste um bocado de azar, chegaste ao teatro e o teatro imediatamente teve que fechar”. Mas para mim é exatamente o contrário: é uma oportunidade de luxo ter a capacidade e oportunidade e ter meios para fazer uma coisa como a Odisseia Nacional, que eu não trocava por nenhum ano de programação no edifício. Claro que isso tem o seu interesse e é desafiante, mas algo como a Odisseia nunca se repetirá. O que era ambicioso, complexo, de uma envergadura enorme, mesmo para a própria dimensão do teatro, que já não é pequeno, é a coisa que me deixa mais contente.
E o que correu menos bem?
Também está relacionado com a Odisseia Nacional. Talvez tomar um bocadinho estes territórios por adquiridos, ou seja, achar que se parte para um sítio, e que mesmo estando lá duas ou três vezes se conhece o sítio por onde estamos a viajar. Chegar às várias cidades e depois ver histórias completamente diferentes, porque não há uma narrativa única. O esforço de mediação se calhar poderia ter sido mais intenso, com as populações locais, e isso teria permitido alguns projetos. Em alguns projetos poderíamos ter ido mais longe. Mas por isso é que há um segundo ano de Odisseia para corrigir essas assimetrias. Esse caminho não foi um mar de rosas, foi um caminho às vezes acidentado. Estamos a falar de 90 municípios, obviamente que nem tudo poderia correr bem. Mas a continuidade também dá essa capacidade.
Quer dar um caso concreto?
Vou dar um caso concreto que correu muito bem e que foi surpreendente: Barrancos, que é uma vila pequeníssima, com pouquíssima gente, com uma capacidade de investimento reduzidíssima, mas um auditório bem equipado, ainda que pequeno, e uma capacidade de mobilização, um entusiasmo por estarmos lá. Apesar de não ser um projeto de causa e efeito com uma envergadura enorme de público, porque os números não são incríveis, há essa vontade de continuar. Depois há maus exemplos, mas é melhor não falar deles.
Em 2017, em entrevista ao Observador, dizia: “Às vezes há pessoas que me perguntam: então, mas não gostarias de ser o diretor do teatro ‘não sei o quê’? E penso que até queria, que podia ser uma coisa gira, mas depois começo a pensar no que é que isso implica de facto, de perda dessa liberdade. Estou numa posição privilegiada. Dá para fazer exatamente o que quero, sem filtro ou censura.” Que “filtros” ou “censuras” encontrou como diretor do Teatro Nacional?
Tenho que mandar uma mensagem para esse meu eu de 2017 [risos]. “Censura” é uma palavra impossível de usar nesse contexto. Obviamente não há censura. Filtros, sim, há muitos. Há um caminho de razão que está nessa resposta, com o qual me identifico totalmente e que tem a ver com uma posição altamente privilegiada que tinha quando estava no Teatro Praga, que era: só estar preocupado com um projeto de cada vez, a fazer aquilo que queria, sem que a ideia da missão pública tivesse grande influência nas minhas escolhas, num clima de criação muito mais protegido, muito mais possível de dar passos sem conhecer muito bem qual a finalidade ou o que sairia dessas decisões.
Permitia-se a tomar mais riscos?
Com mais riscos ou pelo menos mais capacidade ou possibilidade de risco. Agora há uma instituição, que é uma instituição com uma história enorme, quase 180 anos, que tem uma posição na sociedade portuguesa de coisa pública altamente relevante. Tem estatutos e missão que eu enquanto diretor artístico tenho de cumprir. Esses são os filtros. Há um contexto e uma situação que me obriga a pensar e a criar estratégias de programação e de criação muito diferentes das que tinha nessa altura. Isso pode ser entendido como menos liberdade, de estar menos à vontade nas escolhas, mas depois, por um outro lado, enquanto criador e também quanto diretor artístico, dou-me muito bem com balizas e com limites porque funcionam sempre como catapulta para a criação de uma coisa inesperada que eu nunca tinha pensado. Não sinto que esteja a criar condicionado por uma ideia. Apesar de ela estar lá e obviamente tenho essa noção. Quando estou a programar não estou a programar para o meu gosto, ou para aquilo que gosto de ver, ou para aquilo que me interessa mais explorar. Estou a criar para uma instituição muito generalista se compararmos com aquilo que acontecia no Teatro Praga.
No texto da programação para 2024 descreve um Teatro Nacional “assumindo o seu papel político de forma clara e empenhada”, por uma “sociedade mais justa e igualitária” e pelo “combate à discriminação de grupos sociais sub-representados nas artes e na cultura”. Vê a direção artística de um teatro como um cargo político?
Sim, também é. Não há forma de olhar para um Teatro Nacional sem que a sua ação seja politizada, pelo menos. E ela pode ir, obviamente, em muitos sentidos. Há um espaço de interpretação da missão do Teatro Nacional que permite, enquanto diretor artístico, imputar naquela missão as diretivas que se acha que são consequentes, não só pelo percurso de cada um e do que se gostaria de fazer com esta ferramenta, mas, ao mesmo tempo, com aquilo que se pode pensar ideologicamente ou no sentido do que o setor espera do que o Teatro D. Maria faça, o que faz sentido em termos de inscrição na história contemporânea do teatro português. Aí é que entra esse espaço de interpretação daquilo que se pode querer fazer. A centralidade do Teatro Nacional da Dona Maria II — não só no sentido geográfico, mas simbólico — não permite que se possa tratar esta instituição como arte pela arte. Ela, obviamente, tem uma dimensão política, social, de intervenção pública que é absolutamente necessária e operativa.
Em 2021 foi uma escolha da anterior ministra da cultura, Graça Fonseca. Depois, foi decisão do ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, que os diretores dos Teatros Nacionais passassem a ser encontrados através de concursos públicos. Qual acha ser o modelo mais adequado?
Não sou ministro da Cultura, felizmente não tenho de tomar essa decisão. Acho que nenhuma das duas opções é perfeita. A escolha colegial do júri é, obviamente, mais democrática, por princípio, e permite também que quem esteja a candidatar-se ao meu cargo tenha necessariamente de fixar uma proposta e de apresentar um projeto. Isso nunca pode ser mau porque há diretrizes e indicações que precisam de ser defendidas. Na escolha direta isso não aconteceu, fui convidado sem ter de apresentar um projeto para aquilo que me propunha a fazer. Pode ser muito perigoso. Obviamente a ministra há-de ter pensado muito, ter-se aconselhado com muitas pessoas antes de me telefonar, mas há um risco porque o projeto não está fixado. Já passei pelas duas experiências, ser nomeado diretamente e agora ter um projeto.
Daí colocar-lhe a pergunta.
A responsabilidade de ter um projeto é maior, porque, de alguma forma, ele já foi discutido, analisado, pensado também por aquele júri. Há uma maturação mais concreta.
Portanto, tende a privilegiar o concurso?
Em teoria, mas o concurso, apesar de ser um processo mais democrático, não quer dizer que produza o melhor resultado. Essa é a questão. Mesmo sendo a nomeação direta uma decisão arriscada do ministro, porque está, de alguma forma, a dar um aval que não está estabelecido àquela pessoa, isso não quer dizer que não possa ser, como já aconteceu com o meu antecessor, por exemplo, uma escolha consensual e muito proveitosa para o teatro. Como um concurso público, e há muitas provas disso noutros concursos públicos, já produziram péssimos diretores artísticos.
As mudanças no cenário político são muitas vezes acompanhadas por mudanças nas direções de instituições culturais. Em plena crise governativa, o cenário político tem um impacto para quem dirige uma instituição cultural?
Totalmente, obviamente que sim. Estamos a viver neste momento um perigo de podermos ver as nossas instituições democráticas postas em causa. Há uns anos esta discussão tem estado na ordem do dia e ela não é fictícia. É real, até se olharmos para as sondagens percebemos que esse perigo é real. Obviamente isso tem um impacto direto nas instituições culturais e na sua independência e autonomia. A garantia que há um Governo de pendor democrático para mim, enquanto diretor artístico, é a única garantia que me permite estar à frente de uma instituição como esta, sem a tal censura que falava na minha diatribe sobre o meu possível futuro à frente de uma instituição. Essa garantia é absolutamente essencial. Não há nenhuma espécie de censura nem de exigência do poder sobre as minhas escolhas artísticas. Não digo sobre a gestão do teatro ou sobre a gestão de outros equipamentos culturais, obviamente, aí há uma questão de administração que tem que ter um aval mais claro do que o aval da tutela.
Um diretor do Teatro Nacional nunca é totalmente independente?
Nunca se é totalmente independente como ser social. Essa independência é teórica e está altamente dependente das pessoas que nos rodeiam. Mas estando aqui à frente deste teatro e tomando a decisão de me candidatar a um segundo mandato, esta decisão só é possível porque há uma confiança nas equipas e nas pessoas que estão a trabalhar comigo.
Sobre as mudanças no panorama teatral em Lisboa, em 2017, dizia: “Haver mudanças significa também que há vitalidade, mas há o perigo gigante do gatekeeping: aquela intelligentsia que domina tudo, que gera uma espécie de gosto uniforme. É um perigo e já se começa a ver. Até estou a falar contra mim – temos as mesmas pessoas constantemente nos mesmos teatros. O teatro em Lisboa precisa de continuar a ser diverso”. Isto não é o oposto de se propor a um segundo mandato?
Não. Acho que essa noção de que programar é servir o gatekeeping é um dado adquirido. Fazer escolhas é dizer “sim” e dizer “não”, logicamente. Está-se a criar um perfil específico para aquilo que se está a escolher, mesmo que seja um perfil suficientemente generalista. Mas há estratégias que podem ser criadas para de alguma forma atenuar aquilo que está na génese de uma direção, que é fazer escolhas. No meu caso, e no caso de quase todos os diretores artísticos das instituições culturais portuguesas, isso está muito assente na posição e na pessoa que está à frente das instituições. É uma monocultura excessiva e de poder dessas pessoas. Contra mim falo, também. É nossa responsabilidade, que estamos à frente das instituições, criar esses mecanismos e estratégias que permitam atenuar aquilo que muitas vezes é dos estatutos das próprias instituições. Quanto a isso não há grande coisa a fazer. A tutela é que poderá, eventualmente, fazer essa proposta de uma alteração estatutária que permita, por exemplo, que a programação possa ser um gesto mais horizontal. Neste momento, ele não existe. É altamente hierarquizado, está totalmente assente, neste caso, sobre mim, no caso do Teatro Nacional D. Maria II. Partir para um segundo mandato é [criar] um espaço que me permita essa correção.
De que forma?
É uma coisa que digo desde o início. Estar à frente do Teatro Nacional, para mim, é também uma missão de desfragmentação, de abertura, de pluralização. Não só no sentido de representatividade de quem está em cima do palco, mas também do ponto de vista das autorias — e isso a minha programação fala por mim, não preciso de a defender —, do ponto de vista do organograma do teatro, da possibilidade de diversificação das equipas e dentro da minha própria equipa, daquilo que é a direção artística. Há um processo de institucionalização dessa diferença, dessa alteração.
Refere-se a uma direção artística partilhada, por exemplo, como a que agora existe no Teatro Municipal do Porto [com Cristina Planas Leitão e Drew Klein]?
Nesse caso os estatutos permitem que isso aconteça. Aqui não existe essa possibilidade.
Então a que se refere?
Dentro da minha ação enquanto diretor artístico, que é a programação, há uma possibilidade de encontrar soluções projetuais que possam corrigir essas assimetrias do ponto de vista da decisão e da direção artística. Isso já acontece noutras instituições. Muitas vezes há festivais que se programam dentro de uma instituição e a programação é entregue a alguém que vem de fora e que fica encarregue dessa fatia da programação. Há estratégias, é preciso é criatividade. No primeiro mandato tinha a Odisseia Nacional em mãos, não tinha capacidade de o fazer. Agora há todo um espaço de pensamento nesse sentido da desfragmentação também do poder, que acho que é necessário.
O segundo mandato serve para correr mais riscos?
Sim [risos].
Ao fim deste primeiro ano da Odisseia Nacional — em que os espetáculos viajaram pelo país —, os números de espetadores encheram-lhe as medidas?
Não tenho necessariamente uma obsessão com os números. Temos teatros com grande capacidade e é muito triste quando se vê 30 ou 40 pessoas num teatro que leva 700. Tentei programar espetáculos que tivessem esse alcance para grandes públicos nesses teatros. Isso também é uma missão do Teatro Nacional, levar propostas para o resto do país para que possam encher casas, sem que isso seja uma cedência de coisíssima nenhuma. Por outro lado, essa decisão cria uma bolsa que depois permite um outro lado da programação que já não tem que se preocupar tanto com a questão dos números. No Teatro Nacional há essa necessidade de contrabalançar uma coisa com a outra.
Há uma ideia generalizada de que alguns dos lugares nos quais os espetáculos da Odisseia Nacional se apresentaram são mais conservadores do que cidades como Lisboa ou Porto. No caso da peça Homo Sacer, sobre anticiganismo, as criadoras revelaram ao Observador que que os teatros que receberiam o espetáculo — no Alentejo, por exemplo — foram escolhidos precisamente por estarem em zonas “em que há uma população votante Chega a crescer e a questão do anticiganismo é uma questão muito visível, muito visível mesmo”. Tem sentido diferenças na receção de determinadas peças fora dos principais centros urbanos?
Sim, essa programação arriscada foi também altamente calculada. Não queria uma programação do território muito segura que desse até aso a essa visão de que as cidades fora do eixo Porto-Lisboa são mais conservadoras e que, portanto, precisam de propostas mais comerciais ou com um pendor um mais seguro que permita que esses públicos supostamente menos educados possam fruir mais dessas propostas. Não fomos nada por esse caminho. Há propostas bastante arriscadas, como Homo Sacer, descobri-quê?, Nau Nau Maria ou Outra Língua, que põem o dedo na ferida em algumas das questões mais prementes da discussão política e social. Tentámos perceber, nos vários territórios por onde íamos passar, onde é que isso poderia fazer de facto mais diferença. E essa diferença não era necessariamente no sentido de confrontar. Há nestes artistas uma enorme capacidade, e isso foi incrível de se ver, de criar uma discussão produtiva, mas não necessariamente de confronto. No caso da Homo Sacer, obviamente no Alentejo sabemos que a discussão da comunidade cigana e sua integração é uma questão muito premente. Se foi fácil? Não. Porque, obviamente, quando estamos a colocar questões desta maneira e nestes territórios estamos também à procura que essa discussão seja intensa. E foi.
Houve momentos de tensão?
Houve, houve momentos de tensão.
No caso desta peça?
No caso desta peça também.
Como é que geriram essas situações?
Há uma imensa inteligência dos artistas para prever algumas discussões que, dependendo dos títulos onde estamos e dos temas que estamos a tratar, já são polémicas, por si. Portanto, prepararam muito bem as possíveis reações. Fazer uma proposta de conversa pós-espetáculo, que não tem que ser sempre necessária, em alguns destes casos acabou por se revelar bastante produtivo, onde há mesmo uma necessidade de criar um chão comum para conseguir discutir o tema em específico.
Mas as conversas são geralmente pós-espetáculo, altura em que o público já foi conquistado. Quando fala em tensões, houve espetáculos interrompidos?
Não. Houve comentários, algumas reações mais acesas durante o espetáculo, algumas ações polémicas, também, durante alguns espetáculos. Mas isso só nos fez ter mais confiança e mais convicção daquilo que estávamos a fazer. Porque não sabemos quem é que vem ver o espetáculo. Preparamos uma obra, que é uma obra de arte. Depois a receção podemos imaginar, fazer cenários, mas nunca sabemos exatamente quem é que vai estar na sala. Houve alguns casos em que quem estava na sala estava claramente contra aquilo que o espetáculo estava a tentar veicular. E isso cria atrito, em alguns casos, mas, no nosso lado, deixa-nos ainda mais convictos, porque nos permite reafirmar, repensar, reconciliar também, mas sem deixar de dizer aquilo que há para dizer. Quando se parte desse princípio já se sabe que há sensibilidades que eventualmente serão postas a causa. E isso aconteceu.
No encontro de pensamento promovido em Torres Vedras, em julho, foi sublinhado por autarcas e criadores o desejo de que a presença do Teatro Nacional noutros territórios além de Lisboa não fosse um facto episódico. Já disse que a Odisseia Nacional se tornou uma “obrigatoriedade” e no próximo ano voltará a acontecer, por força do edifício ainda estar em obras. De futuro, de que forma é que planeia que isso aconteça?
Se me permite a correção, a continuidade da Odisseia Nacional, neste momento, já não tem qualquer relação com a abertura do teatro. O que se criou foi um sistema que obriga, neste momento, o Teatro Nacional a dar continuidade àquilo que se poderia temer ser episódico e não deixar um lastro desejado. Nesta ideia de viagem, pensa-se também no pós-viagem, e no que é que pode ficar de todo o esforço que foi encetado pelo Dona Maria e pelas autarquias e pelos artistas. Muito rapidamente se percebeu que a missão pública do Teatro Nacional está intimamente relacionada com esta necessidade de estar próximo das populações, e que isso nos obrigava a pensar na continuidade da Odisseia Nacional. Tanto que fazia parte do open call para a nova direção artística. Viesse quem viesse, fosse eu ou outra pessoa, fosse com o nome de Odisseia Nacional ou com outro nome qualquer, havia já uma obrigatoriedade de pensar a ação do Teatro Nacional mediante esta necessidade de estar fora de Lisboa também. Claro que quando o teatro reabrir será necessário equilibrar uma coisa e outra, com uma programação permanente aqui no edifício do Rossio, a continuidade da Odisseia, e obviamente também o projeto internacional do teatro.
Já mencionou a importância da presença do Teatro Nacional por todo o território, mas que impacto teve ou ausência de Lisboa, cidade em que inevitavelmente o tecido teatral é mais efervescente?
Enorme. Não tinha assim tanta noção do buraco que iríamos deixar em termos de programação regular na cidade de Lisboa. Fui recebendo esse feedback, de que a cidade sente essa falta do Teatro Nacional. Sabendo que continuamos a manter o edifício em obras, foi preciso encontrar criativamente formas de programar, que para mim neste momento já é o meu modus operandi. A programação Abril Abriu surge como essa necessidade de voltar a Lisboa e de programar não só em teatros congéneres, e noutras instituições culturais, mas também conquistando outros espaços, não convencionais, espaços públicos. Há aí também um espaço interessante para percorrer enquanto missão pública do Teatro Nacional: estar na rua, ainda mais havendo aqui a felicidade da comemoração de 50 anos do 25 de abril, que é uma revolução da rua. É poder também encontrar aqui novas formas de programação do Teatro Nacional, que tem sempre essa imagem muito forte e eventualmente elitista da relação com o edifício.
No podcast Um Chão Comum, do Centro Cultural de Belém [CCB], em maio, convidado a dizer o que mudaria na instituição, disse: “Tenho saudades de uma versão do CCB em que estava à frente do seu tempo”. Acha que o Teatro Nacional está à frente do seu tempo?
Acho, sinceramente, que o Teatro Nacional é um farol. Já achava antes de ser diretor artístico. Há não só essa capacidade financeira, como essa capacidade simbólica e também em termos de força de trabalho, o que faz do TDMII uma ferramenta ideal para ser uma instituição à frente do seu tempo. Não conheço outra. A versão de Teatro Nacional de São João será outra. A direção anterior e eu de alguma forma temos essa função: de servir de exemplo, mas que esse exemplo possa ir sempre no sentido de encontrar formas que muitas vezes outras instituições ou ainda não são capazes ou não estão ainda a conseguir visualizar aquilo que poderá ser feito. Nós temos essa responsabilidade. Nesse sentido, sinto-me muito apaziguado com esse desejo para o CCB.
O teatro, e não é caso exclusivo em Portugal, vive um momento histórico em que há uma corrente de discursos e agendas pautadas por questões identitárias e políticas, com questões de representatividade muito presentes nos espetáculos. Enquanto diretor artístico e criador, sente-se um facilitador da criação desse discurso em Portugal? Reconhece-se esse papel?
Sim, admito que com o meu discurso anterior com o Teatro Praga, que é uma companhia que de alguma forma foi pioneira em alguns desses discursos que menciona, chego ao Teatro Nacional também com essa carga, essa carga histórica da qual me orgulho bastante. No entanto, não sinto que esse seja o único caminho. Ou seja, acho que há uma necessidade de diversificar esse discurso. Ele não pode ficar encerrado numa lógica auto-referencial, em permanência, e de regurgitação e de mastigação de axiomas políticos conhecidos de uma forma em que parece que muitas vezes estamos a falar com o mesmo grupo ou que estamos só a falar entre nós. Há uma necessidade de abertura para formatos que possam ser mais tradicionais e que continuam a ser válidos. A questão do repertório é uma questão bastante relevante porque cada vez se faz menos repertório em Portugal. Repertório clássico, digamos.
Não é um resultado deste fenómeno?
Claro que sim. Por isso é que há essa necessidade de um pensamento mais aberto e não numa nova cristalização de uma metodologia. Aquilo que em tempos foi revolucionário muito rapidamente se torna a norma e se torna um cliché. Há que reativar permanentemente a necessidade de estarmos à procura de formas novas ou de alguma redistribuição formal daquilo que é possível no teatro e que muitas vezes vai buscar coisas que já foram feitas e coloca-as noutros contextos. Outras vezes há uma reformulação e uma releitura de clássicos do teatro e isso acontecerá sempre. Mas acho que há essa necessidade de equilibrar esses discursos para que essa herança não se transforme também numa monocultura, o que seria trágico.
Como observa a crítica de que se faz hoje um teatro pedagógico?
Acho que é uma crítica justa. Quando se fala de alterações sociais… Por exemplo, muitas dessas propostas de que estamos a falar lidam com políticas pós-coloniais, com teoria pós-colonial, e obviamente estamos a falar de uma necessidade de criação de manifestos, de confirmação de intenções e muitas vezes eles aparecem dessa maneira pedagógica porque é a única forma de fazer com que tenham validade e possam ser entendidos por mais pessoas. Passado esse tempo, que eu não sei se é este, há uma necessidade de encontrar uma outra perspetiva para essa ideia pedagógica. Isso é histórico. Aconteceu exatamente a mesma coisa com o teatro bretchiano. Há uma produção de teatro épico muito direcionada para uma alteração política e para um formato que venha a despertar as mentes, neste caso, de uma classe operária para usar o teatro como uma ferramenta para essa transformação social. Agora, início do século XXI, nas primeiras décadas do século XXI, estamos também, de alguma forma, nessa senda dessa reformulação social, que é um outro paradigma, mas igualmente válido e é preciso ultrapassá-lo. É preciso continuar permanentemente a testar a sua validade e a encontrar temas, vocabulário e formatos que possam não estar constantemente a bater na mesma tecla, porque isso é importante para os artistas e para o público.
Na programação para 2024 há um espetáculo da sua autoria, Quis Saber Quem Sou, que parte da canção E Depois do Adeus, eternizada na voz de Paulo de Carvalho. Qual foi o ponto de partida para este espetáculo, depois de Casa Portuguesa?
A Casa Portuguesa era bastante didática [risos]. Mas depois A Farsa [de Inês Pereira] já não era. Quis Saber Quem Sou parte de um projeto que se chama The Langley School’s Music Project, um projeto que foi feito nos anos 70 no Canadá, em que um professor de música ia de escola em escola e propunha aos alunos que cantassem em coro um cancioneiro pop entre Beatles, David Bowie, Beach Boys, que era depois interpretado por essas vozes, por esses corpos muito jovens, e que se transformou num objeto de culto. Ele ficou perdido durante muito tempo e depois em 2000 ou 2001 foi recuperado. A Pitchfork fez uma recensão e, de repente, aquilo tem uma aura entre o encantatório daquelas vozes pouco preparadas a atirarem-se àquele repertório e cria uma dimensão quase onírica na relação com aquele cancioneiro.
Imediatamente me surgiu a ideia, não necessariamente de fazer a mesma proposta, porque é impossível repetir tal e qual como foi feito nos anos 70, mas de poder fazer isso com o cancioneiro pré e pós-revolucionário. Porquê? Porque é uma referência identitária para mim, uma referência fortíssima não só em termos musicais, mas de poesia e de palavras de ordem. Todas essas canções estão obviamente muito engajadas com o período e têm um propósito muito específico e de sentir que para as gerações mais jovens já não é assim. Passaram 50 anos, naturalmente essa distância vai-se avolumando e a distância simbólica também. Este espetáculo pretende de alguma maneira aproximar gerações mais jovens desse cancioneiro e porque considero, e depois cá estarei para provar se é verdade ou não, que há um potencial, mais uma vez político, simbólico, poético e artístico que precisa de ser reativado, que precisa de estar na ordem do dia outra vez.
Perante o subfinanciamento de artes performativas, sente responsabilidade, enquanto diretor do Teatro Nacional, e vindo de uma estrutura como o Teatro Praga, de acompanhar de perto pequenas estruturas, permitindo-lhes continuar a atividade com condições dignas?
Por um lado, sim, sobretudo neste período pós-pandémico, onde a classe teatral sofreu bastante não só com o desinvestimento na cultura, como também com todas as impossibilidades de realização de muitas atividades e de muitos espetáculos. Encontram nas instituições, no Teatro Nacional, esse porto de abrigo que permite a criação de condições para coproduções ou produções que possam de alguma forma colmatar aquilo que a DGArtes não consegue fazer ou que não consegue chegar, ou as autarquias. Sinto essa responsabilidade de continuar esse apoio e que ele possa ser mais constante e possa até ser um bocadinho mais justo daquilo que se exige às produções da casa, de se poder também dar as mesmas condições a outras produções que vêm de fora.
Por outro lado, há uma noção muito clara da finitude da possibilidade do Teatro Nacional conseguir acudir a todas as pessoas que precisam da instituição. E isso é muito duro, porque as escolhas, voltando à conversa do gatekeeping, são programáticas, são escolhas estéticas também, do que é que é necessário fazer este ano no teatro. E isso deixa muita gente de fora necessariamente. Vai sempre deixar. Nesta linha de raciocínio tento sempre pôr-me no sítio onde estava antes, como artista e alguém que pertencia a uma estrutura independente e da criação de uma possibilidade de trabalho que não esteja tão dependente destas estruturas, sabendo que elas obviamente têm um raio de ação limitado. É uma garantia também de alguma liberdade, porque as instituições têm missões, têm identidades claras e acabam por encaixar projetos que de alguma forma também possam servir a sua missão e o Teatro Nacional tem obviamente uma missão bastante específica. Procurar outros espaços, procurar outros locais que não as instituições, foi uma coisa que fiz, durante muito tempo, sobretudo nos anos 90. Havia muito essa cultura de procurar o espaço não convencional à margem da instituição. Até porque não havia instituições, então era mesmo uma questão de necessidade. Acho que é um exercício também altamente libertador da relação obsessiva com a instituição. As duas coisas precisam de conviver: a ideia do apoio e por outro lado a ideia de nos libertarmos, agora falo também como criador, do peso da instituição, das salas da instituição, do local, da visibilidade que a instituição obviamente oferece.
Desde que assumiu funções, em novembro de 2021, enquanto diretor artístico do TNDMII criou dois espetáculos enquanto criador: Casa Portuguesa, espetáculo estreado em setembro de 2022, e A Farsa de Inês Pereira, em outubro de 2023. Para ambos decidiu abdicar dos honorários a que tem direito como autor e encenador. Porquê?
Acho que por uma questão… Qual é a palavra? Pudor. O meu salário, não sendo milionário, é bastante generoso comparativamente com outros salários que a maior parte dos artistas e gestores da cultura e agentes culturais aufere. Por isso, por essa questão quase de higiene financeira, me parecia complexo estar ainda a cobrar por um trabalho que obviamente me dá muito prazer fazer, porque estar no Teatro Nacional não só me obriga a todas as questões que têm a ver com a gestão da programação do teatro, mas também me dá essa possibilidade e há também essa expectativa de que o diretor artístico possa criar os seus próprios espetáculos, criando repertório para o teatro, que é altamente relevante para uma estrutura como esta. Não quer dizer que não altere esta minha forma de pensar, porque acho que ela também precisa de ser suficientemente elástica, dependendo da situação. Mas neste momento sinto que é mais justo se não cobrar por essas criações.
É por esse mesmo “pudor” que nunca programou o Teatro Praga no Nacional?
[risos] Sim, é um bocadinho a mulher de César, “não basta ser, tem de também parecer”. Foi um compromisso que fiz comigo mesmo. Ninguém me disse, ninguém me obrigou, ninguém me indicou “vais, mas vê lá, não programes os Praga”. Muita gente me acusou de chegar ali e imediatamente programar os Praga. Mas fiz esse compromisso comigo mesmo e partilhei-o com os Praga, dizendo que durante o meu primeiro mandato não programaria nada nem ninguém daquela estrutura.
Às portas do segundo…
Estamos no segundo, é outra fase. Essa relação acho que já estabeleci no sentido da independência. Agora posso olhar para o trabalho deles e estou curiosíssimo com a estreia no Teatro São Luiz de uma forma mais saudável. Não vejo nenhuma incongruência nem nenhum inconveniente de programar os Praga. Não quer dizer que vá acontecer, mas como princípio é outra fase.
Na programação revelada para 2024 há um projeto participativo cujo título é “Que Teatro Queremos Ser?”. Que teatro quer que o Teatro Nacional seja?
O teatro que queremos ter não quer necessariamente dizer o teatro para os próximos cinco anos, pode ser o teatro para os próximos 500 anos. Acho que esse limite temporal pode ser bastante alargado. Até porque acredito que muitas vezes quando estamos sobretudo a lutar por causas e convicções não estamos necessariamente a lutar para que elas aconteçam no nosso tempo de vida. Podemos estar a lutar para coisas que não vamos viver. Acho que é um exercício de generosidade que é bastante produtivo e bonito até. Gostaria que o Teatro D. Maria II fosse cada vez mais horizontal. Apesar de isto ser uma imagem mais geométrica ela pode ser interpretada obviamente de muitas maneiras, mas como desafio acho que é um bom desafio. Sabendo que, na minha opinião, continua a ser uma estrutura bastante vertical. [Quero] atenuar essa verticalidade com projetos que possam de alguma forma garantir que o teatro é mais participado, que as decisões são mais discutidas. Gostava que o teatro tivesse mais amigos. Acho que o teatro tem muitos interesses, mas não tem necessariamente muitos amigos.
O que é que isso quer dizer?
As pessoas olham para o teatro como uma instituição onde há uma lógica mutuamente extrativa onde o teatro encontra nas pessoas uma ocasião para fazer valer a sua missão e as pessoas encontram no teatro também uma oportunidade para financiar os seus projetos, para lhes dar mais visibilidade, para lhes dar uma alavanca que sozinhas não conseguiriam. O que é absolutamente legítimo. Mas essa relação é muitas vezes uma transação. Preferia que ela fosse mais amigável, mais emocional, mais discutida e mais próxima. Mais familiar. Acho que o teatro precisa de família e a relação com as pessoas é muito fria para aquilo que pode ser. A relação com o Teatro Nacional pode ser muito mais presente, pode ser uma casa onde as pessoas frequentam muito mais, onde querem estar, onde querem vir todos os dias discutir o que se está a passar, o que pode acontecer. Quero que seja uma lógica mais participada, com um maior entrusamento ao nível da cidadania e não só num esquema produtivo do sector teatral. Às vezes parece que descarrila para aí.