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Os atores do elenco, com a bailarina Kali Musa, ao centro, durante um ensaio em Lisboa, semanas antes da estreia
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Os atores do elenco, com a bailarina Kali Musa, ao centro, durante um ensaio em Lisboa, semanas antes da estreia

Bruno Simão

Os atores do elenco, com a bailarina Kali Musa, ao centro, durante um ensaio em Lisboa, semanas antes da estreia

Bruno Simão

Em palco, o Bestiário chama Maria Gil para juntos dizerem: "O teatro também é dos ciganos"

"Homo Sacer" denuncia o anticiganismo, conta uma história que falta e inscreve-a no Teatro Nacional. Sem textos-panfleto e com narrativas próprias. "Não estamos a trazer nenhuma doutrina."

A primeira referência à palavra cigano no teatro português está numa pequena peça de Gil Vicente a que terá assistido D. João III, em Évora, em 1521. Chama-se Farsa das Ciganas e retrata ciganas como impostoras e ciganos como negociantes duvidosos. Elas tentam ler a sina à plateia, eles vender-lhes cavalos e burros.

“Retratou e utilizou os ciganos como uns idiotas para fazer uma crítica”, recorda a atriz e ativista cigana Maria Gil (n. 1972) sobre esse momento histórico. Desde então, a população cigana tem sido representada não raras vezes de um modo estereotipado — no caso do corpo feminino, “ou se é a feia velha bruxa e má, que faz as premonições, ou a sensual, a carmencita”. A história de perseguição e racismo que há séculos pesa sobre a comunidade não parece ter abrandado. Basta ver o que aconteceu depois de Balada de um Batráquio (2016), premiada curta de Leonor Teles que retrata a tradição xenófoba de colocar sapos de loiça à entrada dos estabelecimentos comerciais para afugentar a entrada de ciganos. O seu sucesso não suscitou uma diminuição, mas, de acordo com a realizadora, antes um aumento da venda de sapos depois da divulgação do filme.

A estrutura artística Bestiário, nascida em 2018 pelas mãos de Afonso Viriato, Helena Caldeira, Miguel Ponte e Teresa V. Vaz, desafiou Maria Gil, à criação de Homo Sacer, um espetáculo de teatro que procura refletir sobre o anticiganismo em Portugal. O ponto de partida é o livro Homo Sacer e os Ciganos, da alemã Roswitha Scholz, que destaca o significado do anticiganismo como variante específica do racismo no seio do capitalismo. “O anticiganismo é, de uma forma peculiar, o pária entre os vários tipos de racismo. O cigano representa o último dos homens na sociedade, a ‘escumalha’. Representa assim o exemplo por excelência a não seguir pelo cidadão normal; mostra-lhe ‘onde ele vai parar’ se não agir como deve ser e não obedecer, comportando-se antes como um cigano”, lê-se na obra editada pela Antígona em 2014.

A criação teatral procura, sob uma perspetiva “ao mesmo tempo antropológica e política”, percorrer a historiografia do povo cigano no Ocidente, desvelar as macro e micro histórias dos ciganos portugueses, refletir sob o anticiganismo e aludir aos crescentes populismos contemporâneos, “sem incorrer em moralismos ou idealizações”. O espetáculo prima pelo raro ponto de vista de incluir profissionais ciganos no processo de criação (evitando o habitual olhar exterior), dando espaço para a criação de narrativa e pensamento próprios. Um exercício que teve como princípio basilar fugir “à saia comprida, à simbologia, ao estereótipo”. “Nós não somos um símbolo”, sublinha Maria.

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O elenco: Afonso Viriato, Helena Caldeira, Kali Musa, Miguel Ponte, Teresa Manjua e Vasco Lello

Bruno Simão

A peça estreia-se esta sexta-feira, em Montemor-o-Novo, com outras duas récitas no sábado, 25, todas no Cineteatro Curvo Semedo. A circulação segue pelo Alentejo, passando por Elvas, onde se mostra no Cineteatro Municipal a 30 de novembro e 1 de dezembro, e Serpa, nos dias 7 e 8, também no Cineteatro Municipal. No final de cada sessão acontece uma conversa com a equipa artística. Em cada concelho, a equipa da Bestiário vai desenvolver um Laboratório Teatral – Manual para uma Manife – destinado a alunos do 3.º ciclo do ensino básico e do ensino secundário, partindo das temáticas levantadas pela peça. As paragens desta itinerância à boleia do projeto Odisseia Nacional, do Teatro D. Maria II, não foram escolhidas em vão. “Foi pensado”, admite Teresa V. Vaz, do Bestiário. “São zonas em que há uma população votante Chega a crescer e a questão do anticiganismo é uma questão muito visível, muito visível mesmo”.

A comunidade cigana, que constitui a maior minoria étnica da Europa, enfrenta desafios acrescidos num mundo de crescente avanço dos populismos e dos partidos radicais e nacionalistas. Mais de 60 por cento dos ciganos em Portugal declararam em 2021 terem sentido vítimas de discriminação no último ano, a percentagem mais alta dos 12 países participantes num estudo da Agência Europeia dos Direitos Fundamentais (FRA), divulgado em outubro do ano passado. Em junho, o Presidente da República revelou estar com associações a preparar, no biénio 2025-2026, formas de assinalar o quinto centenário da perseguição aos ciganos portugueses. “Trata-se de uma ocasião para relembrar o sofrimento e injustiça sofridos pelas portuguesas e portugueses ciganos nesses cinco séculos, mas também para celebrar mais de meio milénio de vida cigana portuguesa e o respetivo contributo para a cultura e identidade nacionais”, escreveu Marcelo Rebelo de Sousa.

Não existindo uma recolha de dados étnicos, “a verdade é que a invisibilidade das pessoas ciganas em Portugal é muito evidente”, diz a ativista Maria Gil. “Referem-nos como alguém que está cá, mas que não é de cá. Ainda há muitas pessoas com muitas indigestões. Ainda se manifesta nos balcões de atendimento, nos sapinhos que temos nas instituições, nos cafés, nas conversas. A normalização é um resquício de um fascismo que ainda temos internalizado, fascismo e colonialismo porque o corpo cigano em Portugal não foi colonizado territorialmente, mas colonizado culturalmente”, acusa. “Com este trabalho e este projeto inicia-se aqui uma nova proposta de pensar noutra forma”, espera.

“É a primeira vez que uma mulher cigana está numa co-direção no Teatro Nacional. Isso não diz nada sobre mim, mas diz muito sobre o que é que não se fez no teatro antes disto" 
Maria Gil, atriz e ativista cigana

Antes mesmo da estreia, Homo Sacer já fez história. “É a primeira vez que uma mulher cigana está numa co-direção no Teatro Nacional. Isso não diz nada sobre mim, mas diz muito sobre o que é que não se fez no teatro antes disto”, aponta Maria Gil que, numa relação que se espera de equilíbrio dialoga com a estrutura artística Bestiário. A encenação e dramaturgia são de Maria Gil e Teresa V. Vaz, num espetáculo que é co-criado e interpretado por Afonso Viriato, Helena Caldeira, Kali Musa, Maria Gil, Miguel Ponte, Teresa Manjua e Vasco Lello.

“Não é com este espetáculo e este processo que a coisa vai mudar. Não somos arautos. Não estamos a trazer nenhuma doutrina de salvação. A coisa vai continuar assim. Estou perfeitamente consciente do espaço que estou a ser convidada, da visita que estou a fazer a este espaço”, admite Maria Gil. “Estou de visita”. O espaço do Teatro Nacional será visitado por mais dois corpos ciganos, que ali chegaram através de um casting em busca de duas pessoas da comunidade com experiência profissional na área da dança ou do teatro. Desse processo sairam a bailarina Kali Musa e o ator Vasco Lello.

“A instituição Teatro não tem de interessar a toda a gente, mas existe uma diferença crucial entre falta de interesse ou sentir que um espaço não nos pertence”, escreve Teresa V. Vaz sobre Homo Sacer na revista Ítaca, do TNDMII. “Não temos acesso a um consumo do teatro porque é um espaço de elitismo cultural e seletivo”, acrescenta Maria Gil. Mas “o teatro também é dos ciganos, porque somos cidadãos portugueses”.

Kali Musa só agora sente o teatro como seu. “Nunca tinha visto um projeto que falasse sobre ciganos e sobre anticiganismo”, diz ao Observador, dias antes da estreia. Cigana, de 28 anos, é bailarina de profissão e faz parte do elenco da peça. Está a representar pela primeira vez. “Algumas pessoas enviaram-me a audição. Não sabia se devia tentar, estava a ponderar. É um tema que é muito forte para mim, mexe com muitas questões. Fiquei um pouco sem saber… A Maria Gil incentivou-me a fazer a audição. Foi no tempo certo. Às vezes, quando as coisas têm que acontecer, acontecem. Ver a Maria e o trabalho dela incentivou-me bastante a querer fazer parte do projeto, sabendo que tinha uma mulher cigana, ativista, atriz que estava à frente disto”.

“A dança e a música são sagradas para nós, contam a nossa história, contam os nossos passos. O ritmo da música cigana retrata isso. Eu não danço para entreter ninguém", diz Kali Musa

Bruno Simão

A jovem não esconde a importância do processo para a sua tomada de consciência. “É diferente quando uma pessoa tem consciência da sua ciganeidade, quando sabe o que o seu corpo representa na sociedade. Na escola ninguém fala sobre nós. Não estamos nos livros de História. Como é que querem que nos integremos na sociedade se a sociedade não nos vê?”, questiona. “O anticiganismo não é só violência física e verbal. O anticiganismo está impresso na sociedade. A violência não é só uma coisa que se vê”. Kali admite que viveu o anticiganismo com “muita força”. “Isso provocou em mim muita repressão da minha própria ciganidade. Eu sabia, tinha consciência, que o meu maior poder só se ia revelar em mim quando eu iniciasse este processo, quando tivesse essa coragem.”

Nasceu na Guarda, viveu em Viana e, mais tarde, em Nova Iorque e Los Angeles, para onde foi estudar dança e viver o sonho. Está em Lisboa desde 2019, quando não está a correr o mundo com o espetáculo Fashion Freak Show, de Jean Paul Gaultier. “Sou licenciada, fui estudar dança em Nova Iorque. Sempre frequentei os espaços onde não existem muitos ciganos. Sempre senti a necessidade de me esconder. Pelos muitos estereótipos que depositam nos ciganos. Perguntei-me: porque é que tenho de me esconder? Porque é que não posso ser uma cigana que estuda? Isso é apagar uma parte de mim que é essencial.”

“Na escola ninguém fala sobre nós. Não estamos nos livros de história. Como é que querem que nos integremos na sociedade se a sociedade não nos vê?”
Kali Musa, bailarina

Em Homo Sacer, é-lhe dado espaço para revelar o talento enquanto bailarina, interpretando momentos sem texto, alinhados com a identidade que o coletivo Bestiário tem vindo a desenhar, que “não é uma linguagem de teatro convencional, é híbrida, trabalha com o corpo”, nas palavras de Teresa V. Vaz, membro fundador.

Às tantas, escuta-se Burgalesa, dos Galandum Galundaina, embaixadores por excelência da cultura mirandesa, ou La Estrella, do espanhol Vicente Amigo. “O corpo cigano feminino é muito romantizado”, reconhece a bailarina. “Existe sempre um exotismo à volta disso. É uma romantização triste. É como se o meu corpo fosse um produto público em que as pessoas pudessem chegar, tocar, comentar e deitar fora. Já acontece com os corpos femininos, mas nos ciganos é raro a pessoa com quem eu fale que saiba o que é a etnia cigana. Faz-nos parecer um mito. Como se eu não fosse um corpo humano. Nós não servimos só para isso”, sublinha. “A dança e a música são sagradas para nós [ciganos], contam a nossa história, contam os nossos passos. O ritmo da música cigana retrata isso. Eu não danço para entreter ninguém. Danço porque me alimenta a alma.”

É de avisar o que Homo Sacer não pretende: ensinar. “[O espetáculo não é] Nada panfletário, pedagógico e também nada doutrinário”, frisa Maria Gil. “Há uma predisposição para que toda esta temática cigana seja sempre encarada como algo dogmático. Não tenho jeito para pregações.”

“A maioria das pessoas está à espera de ver os ciganos a bater palmas e a dançar. Não é nada disso”, atesta Kali Musa. “Vão ver o que é um pouco desse anticiganismo em Portugal e pode ser o ponto de partida para refletir”. Será um espetáculo que provoca desconforto? “Talvez”, diz. “Mas se sentes essa indignação toda, esse desconforto e revolta toda por um espetáculo falar sobre isto… É porque é necessário”.

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