A ideia não é “inventar a roda”, mas antes “pô-la a girar mais rápido”. Em plena preparação do programa eleitoral para as eleições de março, Pedro Nuno Santos lança-se agora às medidas com que vai tentar concretizar aquele que tem sido o seu lema: quer continuar o legado de quem o antecedeu, mas juntar-lhe um “novo impulso”. Foi o que tentou fazer este sábado, anunciando já uma bateria de propostas para tentar mostrar que, oito anos de governação depois, o PS continua fresco e com ideias para apresentar — ao contrário, argumenta, do PSD e da nova-velha Aliança Democrática.
O fórum de discussão do programa eleitoral, que decorreu durante a tarde no Porto, trouxe assim várias medidas concretas. Desde logo, a promessa de mexer na mais controversa condição de acesso ao Complemento Solidário de Idosos: se for primeiro-ministro, Pedro Nuno Santos promete que os rendimentos dos filhos destes idosos deixarão de ser tido em conta para acederem ao apoio. É uma proposta particularmente importante para o PS num momento em que a AD de Luís Montenegro admite querer “reconciliar-se” com o eleitorado pensionista, faixa cujo apoio perdeu na época da troika.
Ora os socialistas querem assegurar que continuam a agarrar o apoio dos mais idosos, e por isso Pedro Nuno dedicou-se, além do anúncio da proposta em si, a ‘malhar’ no PSD: disse que os socialistas não precisam, ao contrário do PSD e do CDS, de se “reconciliar” com os idosos porque têm com eles uma relação de “confiança e respeito”; que os mais velhos foram mesmo “os cidadãos mais mal tratados pelo PSD e pela AD”; e explorou possíveis desconfianças nesse eleitorado, ao lembrar que o PSD tinha prometido em 2011 não cortar pensões — “só que a primeira coisa que fizeram foi exatamente o contrário: cortar as pensões dos nossos reformados e pensionistas”.
Outras duas propostas têm a ver com temas recorrentes, e sobre os quais a oposição fez propostas, nunca concretizadas, ao longo dos anos. Por um lado, e embora a medida não seja igual à que quase se concretizou em 2019 através de uma coligação negativa (o PSD acabaria por recuar, depois de o PCP ter exigido que a proposta não tivesse nenhuma contrapartida), o PS quer reduzir o IVA da energia, na seguinte modalidade: duplicando os limiares dos quilowatts que contam com IVA reduzido, para que os primeiros 200 quilowatts consumidos por mês, pelas famílias, tenham uma taxa mínima de 6% — uma redução que passaria a abranger 3,4 milhões de utilizadores, em vez dos atuais 300 mil, assegurou.
Por outro, garantiu que é desta que se vai concretizar a pretensão antiga de acabar com as portagens nas ex-SCUT, no interior e no Algarve (A4, A22, A23, A24 e A25), depois de lamentar que o país se dê “ao luxo de se encolher numa faixa de litoral” e de não se “olhar para o restante território — que será muito beneficiado, assegurou, com o projeto do comboio de alta velocidade, “o mais estruturante que podemos ter nos próximos anos na ferrovia”, trazendo viagens com durações muito encurtadas para o interior.
A quarta proposta que decidiu anunciar serviu, de novo, para marcar as diferenças entre o projeto do PS e o da AD, naquele que será o eixo mais definidor: a economia. No caso, trata-se de uma redução em 20% da despesa com as tributações autónomas nas viaturas das empresas. O argumento de Pedro Nuno é que esta é uma proposta, tal como a já concretizada extinção do Pagamento Especial por Conta, que abrange todas as empresas, ao contrário da proposta da direita para a redução do IRC.
A ideia é que o peso do IRC já recai sobre uma quantidade parcial de empresas e que já existem benefícios para quem investe lucros em inovação. “Não queremos cortes cegos, transversais, sem uma intenção de transformar a economia, que só beneficiam uma minoria das empresas”, argumentou, justificando assim a opção do PS.
A proposta foi o pretexto para explicar as diferenças de fundo na visão dos dois projetos sobre a economia, e numa altura em que o novo PS tenta agarrar a bandeira do crescimento económico e evitar que esta se cole apenas à direita. Depois de Francisco Assis ter assumido, no mesmo palco, que o PS não está satisfeito com o ritmo de crescimento do país, e depois de Pedro Nuno Santos já ter insistido por várias vezes que convergir com a média europeia não chega, embora essa fosse a métrica do tempo do costismo (voltou a repetir este sábado que Portugal tem de estar “no topo”), o líder socialista sentenciou: “Somos também o partido da economia e desenvolvimento económico. Sabemos a economia que queremos e qual é o papel do Estado a conduzir essa economia”.
Para isso, voltou a defender a ideia em que tem insistido desde que conquistou a liderança do PS: o país tem sido pouco “seletivo” nos incentivos que atribui e precisa de selecionar setores com capacidade de “arrastamento” na economia, para que haja um “choque de transformação” (Assis também diferenciava o projeto da AD e do PS, minutos antes, dizendo que não é preciso um “choque fiscal”, que só “destruiria imediatamente” o Estado social, mas antes um “choque organizacional”).
Quanto à estratégia da direita, foi usando adjetivos como “velha”, “antiga” e outros sinónimos para a colar às alianças passadas daquele lado do espetro político. Na área do Trabalho, ironizou: quando a direita diz que quer “simplificar” a legislação laboral e cortar “custos de contexto”, o verdadeiro objetivo é “cortar direitos dos trabalhadores”.
O choque fiscal, ironizou também, é apresentado pela AD como um “passe de mágica que fará a economia florescer”: “Não sabem como transformar estruturalmente a economia”, sentenciou, acusando a direita de se preparar para provocar um “rombo profundo” nas contas públicas e na capacidade de investimento público. O mesmo para as promessas de “reforma do Estado”, “mais uma fórmula antiga e repetida até à exaustão” que “quem acaba por pagar sempre” são os funcionários públicos”, apontou.
“Não nos esquecemos, porque pagamos as consequências desta reforma do Estado. O último Governo de PSD e CDS não foi assim há tantos anos e achou que tínhamos professores a mais. Hoje pagamos da forma mais dura o corte nas gorduras do Estado que fizeram há oito anos”, atirou. O mesmo para o número mais reduzido de médicos que hoje em dia se formam: “Hoje pagamos caro”. Em resumo, a ideia é: o país já conhece as propostas da direita — que tenta sempre colar unicamente à memória da PaF — e a única coisa que muda são as “palavras” com que as apresenta.
Conclusão, a disparar contra a AD, que foi o seu único alvo neste discurso: se o PS, assegurou, é capaz de fazer uma renovação, “não se passa o mesmo” com o PSD, “que sentiu necessidade de se esconder numa coligação antiga, com pessoas antigas, propostas do antigamente. É a mesma proposta de sempre. A estratégia é exatamente a mesma. Queremos derrotá-la porque provocou mais problemas do que soluções”, atirou.
Já o que Pedro Nuno Santos diz que traz não é só um programa eleitoral, mas um “plano de ação” — mais um esforço por se apresentar como o “fazedor” que vem para “concretizar” e não “adiar sonhos e projetos”. “Quantos sonhos vamos adiando durante décadas?”, atirou para a plateia, tornando-se difícil não recordar o projeto do aeroporto, que vem de facto sendo adiado há décadas — e que o socialista tentou acelerar quando estava no Governo, contornando António Costa para aprovar um despacho nesse sentido e vendo o documento ser revogado menos de um dia depois, o que levou a que tivesse de fazer um pedido de desculpas público.
Ainda assim, e apesar dessas “cicatrizes” do seu passado que tem assumido, o novo líder socialista assegura ser capaz de fazer a ponte entre o legado do PS e o seu futuro, dando-lhe um “novo impulso”. “Não vamos desconstruir nem destruir o que outros Governos fizeram. Não vamos inventar a roda, queremos é pôr a roda a girar mais rápido. Queremos que o país avance com mais energia e um novo impulso”. É essa imagem de energia que quer conciliar com a ideia de que o PS tem supostamente algo que mais ninguém tem — a sua “experiência de governação”, que faz com que “saiba governar e governar bem”. Sempre por oposição ao PSD e à AD. Os outros adversários ficaram para outros protagonistas.
Vitorino: PS tem de saber entender “grito de alma” dos votos de protesto
Se Pedro Nuno Santos não falou noutros adversários nem tocou na ideia do Chega, houve quem o fizesse — em boa parte para apelar a que se fale com o eleitorado descontente e se impeçam “tentações” de um voto de protesto que não leva a lado nenhum. Foi essa a mensagem principal que o histórico socialista António Vitorino, cuja presença em fóruns partidários é rara, quis passar, defendendo que cabe ao PS “dizer aos eleitores que na democracia existem propostas para responder às suas ansiedades, medos e aspirações”.
Num discurso muito em linha com o que o novo líder fazia, em jeito de aviso ao próprio partido, na sua primeira Comissão Nacional enquanto secretário-geral, Vitorino avisou: “Para aqueles que se sentem inseguros quanto ao futuro, descrentes, até zangados, no PS temos mais uma vez a responsabilidade histórica de demonstrar que não é a gritaria, o discurso do ódio, o protesto pelo protesto que pode melhorar a sua situação”.
O PS, defendeu, precisa de “demonstrar que sabe ouvir e entender o grito de alma que um voto de protesto pode representar” — isto depois de Pedro Nuno Santos já ter defendido, na reunião da Comissão Nacional, que o PS deve ser empático e “humilde” no contacto com os eleitores.
Para Vitorino, que frisou que o PS não pode ser “insensível” ao crescimento das desigualdades sociais nem aos problemas nos serviços públicos, o voto do protesto é “uma desistência da democracia” e cabe ao PS impedi-lo: “Isso representa uma desistência da democracia e não queremos que nenhum português desista da democracia.”
Pedro Nuno “impulsivo” e o elogio da pedagogia
Quanto a Francisco Assis, cabeça de lista pelo Porto e um dos primeiros grandes apoios públicos de Pedro Nuno Santos, decidiu citar o autor checo Milan Kundera — “a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento” — para lançar uma ideia nova: “A luta do homem contra a mentira e a falsificação da história é a luta da memória contra o esquecimento”.
Foi a ponte para criticar a extrema-direita, à beira do aniversário dos 50 anos da democracia: “Estamos a assistir a uma das maiores operações de falsificação da História que já vi na minha vida. A extrema-direita vem de forma sistemática e progressiva a espalhar um discurso sobre o nosso período democrático que assenta numa simples ideia”, e que, como foi explicando, tem a ver com a ideia de que tudo o que o PS fez foi “mau”, que a história do período da democracia é uma história de “fracasso” e todos os problemas que se foram instalando no país durante os anos de democracia são da sua responsabilidade.
Defendendo que o PS tem uma “responsabilidade especial” de travar esse combate, e de impedir que ideias “erradas e mentirosas” como essas se espalhem de forma impune, deixou mais uma linha no guião que o PS deve seguir, a tal combinação de orgulho e humildade de que Pedro Nuno Santos fala. “Nós não temos vergonha do nosso passado, temos orgulho no nosso passado. Não podemos aceitar esta ideia de que tudo o que fizemos foi mau. Há que ir mais longe? Claro”.
Lembrando que com a nova liderança acabou o seu período de exílio partidário do costismo — “Já recebi mais mensagens nas últimas semanas do que últimos dez anos. É natural, quando estamos politicamente isolados pagamos o preço”, disse, provocando risos na plateia — Assis lá reconheceu que o líder que apoia é efetivamente “impulsivo”, traço que a direita lhe tem repetidamente colado à pele. Mas não é necessariamente um traço mau, defendeu, ensaiando o elogio do Pedro Nuno “fazedor”.
“Já se viu que num ou noutro momento é um pouco impulsivo. Mas isso é uma qualidade, a qualidade de querer mudar, alterar. Essa é uma qualidade rara no nosso país. Temos alguma aversão ao risco e à mudança”, diz Assis. Com a ideia da ação e da energia que Pedro Nuno Santos quer lançar bem presente, terminou com mais um recado para os socialistas anotarem na campanha. “À demagogia vamos opor uma palavra: pedagogia, a grande pedagogia democrática”.