Perdeu apoio da base eleitoral. Não terá vencido em qualquer swing state. Pode ter perdido o voto popular. A confirmar-se todo este cenário, a derrota não poderia ter sido mais pesada para a candidata democrata Kamala Harris, que esperava que o efeito “lua de mel” causado pela desistência de Joe Biden se pudesse prolongar no tempo e levá-la à vitória nestas eleições presidenciais. Mas não foi nada disso que aconteceu na madrugada desta quarta-feira.
Perante a derrocada eleitoral, a vice-presidente prefere manter-se em silêncio, contrariamente a Donald Trump, que já declarou uma “vitória histórica”. O número dois da campanha democrata, Cedric Richmond, confirmou que a candidata não “falaria à nação” esta quarta-feira de madrugada e que iria esperar mais algum tempo. Numa breve intervenção a partir da sede de campanha, o responsável insistiu que os democratas estão à espera de que “todos os votos sejam contados e que todas as vozes sejam ouvidas” e adiantou que Kamala Harris faria a sua declaração apenas esta quarta-feira.
Nas eleições presidenciais norte-americanas, coexistem dois fenómenos políticos. A primeira chama-se “miragem vermelha”, cor do Partido Republicano. O termo é usado para definir a vantagem inicial que os candidatos republicanos obtêm no início da contagem dos votos, uma vez que os bastiões republicanos — normalmente mais rurais — são os primeiros a divulgarem os votos. Depois costuma haver a “viragem azul”, em que os estados que votam tipicamente no Partido Democrata começam a revelar os resultados. Ao mesmo tempo, são divulgados os votos dos grandes centros urbanos, que tipicamente não votam nos republicanos.
Durante a madrugada, a campanha do Partido Democrata parecia ainda manter uma vaga esperança nessa “viragem azul”. Porém, o panorama não se revelava nada favorável. A Carolina do Norte, um estado que os democratas pensavam que podiam conquistar aos republicanos, continuou fiel a Donald Trump. Os republicanos voltaram a vencer na Geórgia e na Pensilvânia, que Joe Biden conseguiu ganhar em 2020.
Por tudo isto, a vice-presidente perdeu as eleições. No pior dos cenários, que parece muito provável, os republicanos podem mesmo vencer em todos os swing states. Até às 10h30 da manhã de quarta-feira, já perderam a Geórgia, a Carolina do Norte, a Pensilvânia e o Wisconsin. E o panorama continua a não ser nada animador no Michigan, Nevada e Arizona. Se também os perder, Kamala Harris pode obter a pior derrota dos democratas em anos.
Assim, a mensagem da candidata democrata de que a “América não ia voltar para trás” não ecoou entre os norte-americanos, assim como as bandeiras eleitas por Kamala Harris nesta campanha não foram suficientes para que os seus apoiantes votassem nela.
Eleitorado latino e negro terá falhado a Kamala Harris
Apesar de a contagem dos votos ainda estar a ocorrer em vários estados, há já alguns sinais do que poderá ter corrido mal na campanha democrata. Há uma parte do eleitorado que parece não ter ficado convencido com as promessas de Kamala Harris: os latinos. Uma sondagem da NBC News apenas no estado da Pensilvânia mostra que a população latina votou mais agora em Donald Trump do que em 2020.
Segundo a sondagem da NBC à boca das urnas, em 2020, apenas três em cada dez latinos votaram em Donald Trump na Pensilvânia. Quatro anos depois, quatro em cada dez latinos votaram no republicano. A diferença não é substancial, mas, numa corrida tão renhida em alguns estados, isso pode ter dado vantagem ao ex-Presidente em relação à adversária.
A mesma sondagem desvenda que os homens latinos votaram mais em Donald Trump, quando comparado com 2020. Cerca de 54% destes eleitores optaram, no boletim de voto, pelo Partido Republicano, enquanto 44% votaram em Kamala Harris. Há quatro anos, Joe Biden tinha tido o apoio de 59% dos eleitores latinos masculinos da Pensilvânia face a 36% do adversário.
Nem entre as mulheres latinas Kamala Harris obteve um resultado extraordinário na Pensilvânia, ainda que o tópico da defesa do aborto (mais apelativo ao voto feminino) tenha assumido uma grande preponderância na campanha dos democratas. A sondagem aponta para uma distância de 25 pontos face a Donald Trump, ao passo que Joe Biden obteve uma diferença de 39 pontos em comparação com o adversário.
Não foram apenas os latinos que terão falhado a Kamala Harris. Os negros também não terão mostrado muito entusiasmo na candidatura democrata. Outra sondagem da NBC revela que no Wisconsin, outro swing state, Donald Trump mais do que duplicou os seus votos naquele eleitorado face a 2020. Se há quatro anos apenas obteve 8%, em 2024, conseguiu 24%.
Em termos globais, como explica a Associated Press com base numa sondagem com 115 mil inquiridos, oito em cada dez eleitores negros apoiou Kamala Harris, enquanto em 2020 nove em cada dez apoiava Joe Biden. Nos latinos, verificou-se a mesma tendência: seis em dez apoiavam Biden e esse número diminuiu em 2024. Terá havido, neste contexto, uma transferência de votos para Donald Trump, que terá sido mais substancial nos swing states.
Os latinos e os negros costumam ser fiéis ao Partido Democrata e são uma importante base eleitoral. Nestas eleições, tudo indica que não foram atraídos por Kamala Harris. Outra tendência que explica a aparente vantagem do republicano deve-se a uma maior afluência às urnas dos eleitores brancos, que votam tradicionalmente no partido de Donald Trump. De acordo com uma sondagem da Sky News, 71% dos eleitores brancos foram votar, enquanto foram 67% há quatro anos.
Há outra base de apoio que terá falhado a Kamala Harris — os mais jovens. Normalmente, também votam no Partido Democrata. Em 2024, nas pessoas com menos 30 anos, registou-se uma diminuição da taxa de votação; passou de 17% em 2020 para 14%.
Não só foram menos votar, como também votaram mais em Donald Trump. A sondagem da Associated Press indica que cerca de 50% votou em Kamala Harris; há quatro anos, 60% optou por votar em Joe Biden. Em sentido inverso, Donald Trump obteve mais votos em 2024 nos eleitores mais jovens: obteve um terço em 2020 e agora quatro em dez assinalam que votaram no republicano.
A perda de votos nos democratas foi particularmente expressivo no voto masculino jovem, que foi cortejado pelo Partido Republicano durante a campanha: cerca de 49% votou em Kamala Harris, enquanto 47% em Donald Trump. Em 2020, a diferença entre democratas e republicanos foi mais expressiva: 52% preferiu votar no atual Presidente e 41% no magnata.
Em contrapartida, as mulheres votaram mais nesta eleição, o que poderia ter sido uma vantagem para Kamala Harris, que poderia tornar-se a primeira presidente norte-americana. Porém, como explica a Reuters, o eleitorado feminino branco continuou a apoiar o republicano; por exemplo, na Pensilvânia e na Georgia, manteve-se o mesmo nível de apoio do que em 2020.
A economia continua a ser um tópico importante — e Kamala Harris não conseguiu convencer eleitores
Kamala Harris deu grande protagonismo, nesta campanha, ao tema do direitos reprodutivos e à questão da democracia, realçando que o regresso à Casa Branca de Donald Trump seria um perigo para as instituições democráticas. O foco da campanha não terá resultado na plenitude e houve um tópico em que a democrata não conseguiu convencer os eleitores: na economia.
O descontentamento com o aumento de custo de vida deverá ter sido um motivo que levou a que Kamala Harris perdesse votos. Uma sondagem da ABC News revela que 45% dos norte-americanos sentem que perderam poder de compra em quatro anos. Esse número é mesmo maior do que aquele registado em 2008, altura em que houve uma recessão e uma profunda crise económica.
Apesar de o estado da democracia ser o motivo mais importante para os eleitores definirem o sentido de voto, era na economia que se encontrava os maiores ressentimentos. Grande maioria dos inquiridos (67%) assinalou que a situação económica estava em pior estado do que em 2020.
Apesar do início folgado que obteve após a desistência do atual Presidente norte-americano, Kamala Harris não conseguiu mantê-lo e acabou, ao que tudo indica, derrotada nestas eleições — e os democratas voltam a perder para Donald Trump. E ainda não é certo como vão reagir perante outra administração Trump e com os republicanos a voltarem a controlar o Senado.
Republicanos recuperam o Senado e tentam segurar a maioria na Câmara dos Representantes
Especial atualizado às 10h50 com a indicação de derrota democrata também no Wisconsin