Peter Welter Soler, produtor alemão de 52 anos, mudou-se para Lisboa há pouco mais de um ano. Viveu nos Estados Unidos, estudou, trabalhou e afirmou-se em Espanha, um “golfinho” na indústria audiovisual internacional, a nadar num lago de tubarões desde os anos 90 do outro século. Ajudou o cinema espanhol a criar um sistema atrativo de incentivos fiscais para se tornar no top de países que recebem produções internacionais. Hoje basta olhar para a sua Fresco Film para perceber o peso que tem: “Westworld”, “Guerra dos Tronos”, “Uncharted”, “Killing Eve”. E claro, “House of The Dragon”, que esteve em Monsanto a rodar através da Sagesse Productions de Sofia Noronha que, além de “parceira de crime”, é sua mulher.
Encontramo-lo num café da Praça das Flores. Mesmo com o boom turístico português e o crescente número de estrangeiros a viver na capital, não é habitual encontrar com tanta facilidade um nome que Hollywood tenha nas suas relações mais próximas. Sentámo-nos com ele durante duas horas, à conversa sobre os bastidores da indústria, sobre o que é afinal ser um services producer, de como é possível fugir aos paparazzi numa das maiores séries de todos os tempos e de como Portugal corre o risco de deixar fugir a mão de grandes estúdios de cinema. “O cash rebate está uma grande trapalhada cá. Não há nada que os norte-americanos odeiem mais do que a incerteza. Vocês puseram o motor a trabalhar e agora não metem gasolina. Portugal está a perder grandes produções porque nada é claro. O processo não está a ser nada transparente”, confessa ao Observador. É por isso que a hipótese da segunda temporada de “House of The Dragon” voltar ao país está cada vez mais distante.
Peter foi ator, fez teatro, rumou ao outro lado do Atlântico para pôr a mão na massa das curtas-metragens. De Nova Iorque a Málaga, cedo percebeu que preferia movimentar-se nos bastidores. Perdeu dinheiro em produções, conseguiu garantir muito investimento noutras, aprendeu, falhou, recuperou, sentou-se à mesa com políticos e tentou (conseguindo) convencer parte da indústria espanhola a entrar no barco para colocar o país no mapa. Em 2021, dos 400 milhões de euros investidos por parte de grandes produções, 200 milhões serviram para pagar salários. Não nega a existência de cinema de autor, mas sabe que, tal como noutras áreas, o cinema é um produto. Ou é apelativo ou não é. Números, falemos sempre de números, que quer apresentar ao governo português a propósito da redefinição do programa de cash rebate. Para isso, é preciso tempo e vontade.
[imagens da rodagem de “House of the Dragon” em Portugal:]
Como é que é um dia na sua vida? O que faz um produtor no meio de uma mega produção?
Como produtor, ou service producer, o trabalho é ir para o set todos os dias com três funções: o de padre, o de bombeiro e de homem do lixo. Toda a gente quer falar ou confessar os seus problemas e o padre tem de ouvir toda a gente. Toda a gente. Há quem tenha problemas que nem estão relacionados com a produção. Quanto ao bombeiro, é porque me chamam quando há um incêndio. Se há um problema, somos nós que resolvemos. Já o homem do lixo, aparece de cada vez que há um problema que ninguém vê, sou eu que levo com ele nas costas. E tenho de viver com isso. Mas adoramos.
Por vezes temos a ideia de que o produtor só se chega à frente com o dinheiro.
É um termo velho do trabalho. Um produtor não coloca só o dinheiro, ele vigia-o. Vigia os investimentos, vai até ao estúdio e vende o projeto para garantir o dinheiro. No sistema europeu, tenta subsídios ou investimento privado. O dinheiro não é do produtor. A primeira regra que aprendi num curso em Ronda [cidade na Andaluzia, Espanha]: nunca devo investir o meu dinheiro. Nunca.
Estudou em Ronda?
Sim, fiz vários cursos sobre finanças e negócios. É preciso garantir o dinheiro e é preciso administrá-lo para que os investidores tenham retorno, porque se eles não fizerem dinheiro, eu não faço.
Alguma vez perdeu dinheiro?
Em 2010 foi a primeira vez que entrei num projeto só como produtor para assegurar fundos. E aí perdi, sim. Era um filme chamado “A Cor do Oceano”, o cast era muito bom e era sobre emigrantes sul-africanos que chegam à costa espanhola. Só que foi uma má experiência porque nos foi prometido fundos de uma entidade governamental de uma região espanhola. Era esse o investimento que tínhamos, só que no fim havia duas grandes produções que entraram na mesma localização e o orçamento prometido foi para aí.
O filme foi feito?
Sim. Deixou problemas e dívidas porque o nosso financiamento não chegou. Foi duro.
Quando criou a Fresco Film?
É uma produtora criada em 1972 com o nome “Iba Film”. Esta área de services production começou nos anos 50, mas era diferente. Mas a chamada mãe deste tipo de serviços na era moderna foi minha parceira e criou a empresa. Entrei em 1999 e como sócio em 2004. Mudei o nome porque queríamos um “início fresco”.
No site vemos títulos como “Westworld”, “Homem-Aranha” ou “Guerra dos Tronos”. Tornou-se também na empresa número um em Espanha?
Não gosto do termo “número um” porque não gosto de ser melhor ou pior do que ninguém. Tenho muito a agradecer a José Luís Escolar, meu professor e amigo, que esteve cá a filmar a série “Vampire Academy”. Foi muito conhecido em Hollywood e faz disto vida há muitos anos. Portanto, não, não sou o pai. Tudo isto foi uma cadeia de coincidências, porque quando não havia incentivos fiscais durante uma crise, a produção da “Guerra dos Tronos” ajudou a dar uma volta à economia espanhola.
Não se quer ver como um “tubarão”, como se costuma dizer.
Não, vejo-me como um golfinho. Trabalham em equipa. Acho que contribuímos.
Tem algum exemplo de uma história onde tenha pensado “não vou conseguir resolver esta situação”?
Há sempre grandes problemas. Quando os resolvemos percebemos que não existe mesmo um grande problema, nós é que os criamos. Por exemplo, falemos da legislação europeia e norte-americana ao nível dos drones. Em Espanha é muito restrita e nós estávamos a filmar uma grande série norte-americana em Valência, que tinha uma zona de exclusão de uso de drones porque estava próxima de uma aeroporto. Além disso, era considerada uma zona militar. E era no meio da cidade. O realizador dessa produção insistiu que queria usar um drone porque era essencial para filmar a abertura de um episódio. Uma série muito, muito conhecida. E um realizador muito, muito conhecido, irmão de outro realizador ainda mais conhecido.
Certo.
Continuemos. Ele não aceitava um “não” como resposta e isso era um problema porque ninguém do seu circuito próximo queria dizer-lhe “não”. Tive de ser o mau da fita e dizer-lhe que não dava para fazer o que ele queria. No fim, encontrámos uma solução a meio caminho: trouxemos uma grua enorme de Itália que colocámos num ponto estratégico.
A ideia foi sua?
Foi de muita gente. E é isto que adoro nos norte-americanos: juntam-se para discutir soluções durante as reuniões. Foi o que fizemos. Resultou. Foi possível imitar o movimento de um drone quase da mesma maneira para conseguir o plano que o realizador queria.
Ficou resolvido.
Tal como lhe disse, somos bombeiros. Também tivemos problemas de privacidade, com informação que foi leakada por causa dos paparazzi.
Como é que se contorna isso?
Não podemos ser agressivos porque uma das políticas da HBO é a de não ser agressivo, ser-se sempre simpático. Temos de estar dentro dos limites, temos de ser proativos. A Sony também é assim. A maior parte são. Só que é difícil, porque se torna num jogo de gato e rato. Se estivermos a gravar numa cidade como Cáceres, com milhares de janelas, sabemos que os paparazzi pagam aos proprietários para tirar as fotografias. Quando na “Guerra dos Tronos” filmámos uma cena entre os Lanisters e os Dothrakis, fizemo-lo na zona rural dessa cidade. Foi filmado em campo aberto, com árvores e montanhas. Nem sei quanto pessoal de segurança havia, até a Guarda Civil estava lá. Usaram helicópteros também. Mesmo assim, conseguiram fotografar. Levámos um “aperto” da HBO e decidimos ser criativos. Por exemplo, na temporada sete estivemos a filmar numa praia pública perto de Bilbau, no topo de um penhasco estava uma propriedade privada que era um hotel. Ele não queria alugar-nos porque já estava tudo alugado a jornalistas. Tentaram tirar fotografias com lentes enormes. A ideia foi enganá-los. A certa altura tivemos o “Knight King” na praia, confundiu toda a gente.
Estava a meter-se com os jornalistas.
Digo mais: na última temporada estávamos a filmar em Sevilha a cena final onde todas as personagens vivas se juntam para decidir quem será o herdeiro. Ninguém podia entrar, tínhamos um sistema anti-drones, só que ninguém confiava o suficiente que seria possível blindar aquele set. Então trouxemos grande parte dos atores mortos para Sevilha durante uma semana, ficaram no hotel só para criar uma grande confusão. Trouxemo-los para o set todos os dias, mesmo que não fossem representar. Foi muito engraçado ver a imprensa a lidar com o que tínhamos criado. Toda a gente a especular mas ninguém tinha a certeza do que se estava a passar. Este é o tipo de problemas de que estava a falar. É preciso lidar com eles.
Mudando de assunto, como se lida com uma série cancelada? Ainda agora o “Warrior Nun”, na qual também esteve a trabalhar, teve esse destino.
A Netflix está a fazê-lo mais do que os outros. “Westworld” também foi cancelado. Mas isto é um negócio. Quem investe, quer retorno. Se essa pessoa considera que o retorno não é suficiente, a próxima temporada vai ser cancelada. Podemos discutir o critério, claro. Mas eu trabalhei na série “Warrior Nun” como produtor na primeira temporada e na segunda fui supervisor. Afetou-me de todas as formas. O que sempre criticámos é que a Netflix segue o algoritmo, o que é legítimo, mas, por vezes, eles não consideram o fator humano que é muito importante. Isso pode subestimar a audiência.
Devia ter continuado?
Sim. A primeira temporada esteve em primeiro lugar durante um mês a nível mundial, a segunda também teve bons números. Pelo que li, um dos critérios principais é que se alguém vê a série toda durante os primeiros sete dias, isso é que conta. Se for um mês, não tem tanto sucesso. Foi isso que aconteceu com “Warrior Nun”. Outras séries tiveram o mesmo desfecho. Adoro a criatividade dos fãs que financiaram um cartaz em Sunset Boulevard ao pé da Netflix.
É trágico e fantástico. Os fãs não têm muito voto na matéria.
Às vezes têm. Li na revista Forbes que estavam a organizar um grande binge watch na comunidade de fãs para trazer a “Warrior Nun” para o top 10 de séries mais vistas para que a Netflix reconsiderasse a decisão.
Como é que funciona um cancelamento? Pode explicar aos executivos que a decisão pode ser má?
Não o posso fazer, a minha posição não é essa. Se for um produtor executivo, tenho uma palavra a dizer. Mas neste caso, não. Se os investidores decidirem, está feito, temos de seguir em frente, infelizmente.
Porque é que foi parar a Espanha?
Em Espanha? Não a Portugal?
Já lá vamos.
Fui “raptado” num sentido muito positivo. A minha avó mudou-se para Espanha em 1975 e nós fomos atrás. Estive sete anos da minha infância lá, voltei para a Alemanha e segui para os Estados Unidos. Em 1992, quando era obrigatório fazer o serviço militar, fui objetor de consciência. Quando terminei, disse: tenho que sair daqui. Voltei para Espanha.
Estudou Literatura.
Sim. E Filologia Inglesa. Andei na Escola de Atores. Fiz um bocadinho de tudo.
Como era Espanha nessa altura para um estrangeiro? Foi difícil integrar-se no meio cultural?Não. A vantagem em Espanha, de Madrid a Barcelona, é que quem quer integrar-se, integra-se. Na verdade,. acho que isso acontece um pouco por todo o lado. É preciso é querer e ter capacidade de adaptação.
Qual foi a importância do cinema para si?
Desde que sou miúdo que queria estar no cinema.
Mas não como ator?
O meu pai, além de ser chef de cozinha, era um realizador de cinema amador. Fazia-o como hobby. Ele filmou tudo. Toda a minha infância está em Super 8. Em casa tínhamos um laboratório onde ele editava de tudo, dos créditos aos efeitos. O meu pai disse-me que devia focar-me nisto, porque era bonito e porque podia viver do cinema. Adorei essa ideia. Também tive a minha câmara, fiz experiências. Mas não como o Steven Spielberg.
No caso do pai de Steven Spielberg, que era engenheiro, nem queria que o filho seguisse essa paixão.
Mas eu, como qualquer adolescente, queria ser ator. Fui estudar, fiz algumas peças durante dois anos no Freilichtbuehne Lilienthal, na Alemanha. Foi divertido. Ainda assim, queria sair do meu país. Em 1992, em Málaga, era muito difícil porque quase não havia indústria de cinema, só de publicidade. Mas era muito difícil sobreviver da representação. Hoje sim, especialmente por causa do Antonio Banderas. Málaga é uma das capitais culturais de Espanha. Em tudo. Antes, não. Lembro-me que durante um anúncio me deram a sugestão de trabalhar nos bastidores em 1993. E aqui estamos.
Recuemos outra vez até à Alemanha. Porque é que não queria ficar?
Não me dava o que queria. É um país que admiro, tem um nível de vida muito alto, mas procurava outra coisa. Gosto mais de climas quentes, precisava de sol…
Estudou Literatura. Gostava de escrever?
Quando estava na Alemanha escrevi duas peças, produzi e levei-as ao palco. Escrevia muita poesia, mas deixei de o fazer. Também tenho canções escritas num livro. Talvez deixe para a minha filha, nunca se sabe.
Deve ser porque estamos em Portugal. A realidade comparada com Espanha é muito diferente. Desde logo pelo reconhecimento internacional que o país irmão já conseguiu. Como avalia o momento atual do outro lado da fronteira? Qual é a grande diferença comparando aos anos em que aterrou em solo ibérico?
Há uma grande diferença. Quando cheguei, havia alguns canais privados que estavam a começar. Antigamente só havia dois canais estatais. Isso abriu mais oportunidades, mas não correu assim tão bem. É preciso distinguir entre a indústria nacional e a internacional. Por muito que tenha tentado trabalhar com a primeira, não o faria hoje em dia. É um mundo diferente. Não quero dizer que seja obscura, mas ainda existe um estilo velho de produção: se tiver dinheiro, não importa muito o que coloco em televisão. A outra não é assim e foi assim que aprendi. Tentamos colocar cada tostão que temos nos projetos que colocamos no ar, não queremos viver de subsídios — pôr uma parte desse orçamento no bolso, gastar um pouco e “o trabalho está feito”. São duas formas diferentes de lidar com salários, com equipas. Claro que a indústria nacional espanhola não consegue pagar o mesmo que a internacional. Prefiro, repito, distanciar-me da primeira.
A televisão espanhola manteve o método ao longo dos anos, é isso?
Sim, e o cinema também. Cresci nesta indústria, aprendi nos EUA, e é assim que quero trabalhar. Espanha sempre foi um destino internacional. Acho que desde os anos 50 que é o destino internacional de filmagens. “Dr. Jivago”, “Lawrence da Arábia”, “Patton”, “Indiana Jones”, todos estes blockbusters internacionais foram parcialmente ou integralmente rodados em Espanha. Muito graças à ditadura de Franco, porque era muito difícil às empresas internacionais tirarem dinheiro para fora do país. Samuel Bronston e o seu irmão viram essa hipótese, porque tinham muito investimento em Espanha, mas não conseguiram tirar o dinheiro. Decidiram então filmar lá e daí obter retorno financeiro.
Qual foi o real impacto da entrada de Hollywood em Espanha?
Foi negativo e positivo. Foco-me no primeiro. Espanha foi sortuda o suficiente ao ter essa hipótese em 1950. O que fez foi preparar o país para ter agora uma posição privilegiada, bem como países como o Reino Unido e a Hungria. Tem das equipas mais bem preparadas do mundo, foram décadas de preparação segundo os moldes internacionais. Até as equipas estrangeiras ficaram surpreendidas com o nível dos espanhóis. Trouxe benefícios. Porque agora cada vez que escolhem Espanha, além do apoio governamental, trazem cada vez menos equipas técnicas de fora. Os espanhóis prevalecem no trabalho. Já trabalhei em produções onde apenas se traz uma ou duas pessoas — por exemplo o realizador — para trabalhar nos filmes. O resto da equipa era espanhola.
É preciso tempo.
Sim, sim.
O que fez nos EUA?
Estudei e trabalhei em curtas-metragens. Mas não profissionalmente. Fui com um dos meus melhores amigos estudar cinema e estive também em Filosofia na Universidade de Nova Iorque [NYU]. A abordagem é muito diferente, muito mais prática. Só não resultou muito bem por causa do meu visto. O meu pai nessa altura tinha muitas dívidas, mas, em perspetiva, fico contente por ter ido. Na NYU era preciso formar equipas que têm de rodar. Tínhamos de filmar curtas-metragens todas as semanas. Produzir, realizar, aprender em todos os departamentos. Também trabalhei com produções norte-americanas, mas fora do país.
Qual foi o seu primeiro trabalho em Espanha?
A representar foi numa novela da BBC chamada “El Dorado”.
E em produção?
Trabalhei em muitas produções europeias independentes. Assim aquela que pode ser considerada a primeira em grande diria que foi a temporada 5 de “Guerra dos Tronos”, em 2014.
Vou perguntar algo muito óbvio: como é que isso foi possível?
Como muitas coisas na minha vida: coincidências atrás de coincidências. Estou a trabalhar na indústria desde 1993 e tenho estado muito ativo em Espanha como service producer [produtor que trata da rodagem de um filme estrangeiro num país local] em filmes e séries para televisão alemãs e inglesas como “East Enders”. Muitas mesmo. Um amigo meu era location scout [alguém que procura locais para filmar] em Espanha, mas era inglês e voltou para o Reino Unido. Em 2014, no meu dia de aniversário, recebi um telefonema a dizer que era de alguém da “Guerra dos Tronos”, que tinham chegado ao meu nome através de um amigo. Achei que era uma brincadeira. Não era. Afinal, esse meu amigo tinha conhecido um dos produtores da série e disseram que queriam ir para Espanha. Já lá tinham estado, mas não tinham tido uma boa experiência. Quando ficaram sem locais de rodagem na Croácia, decidiram que queriam expandir. Foi aí que me ligaram e toda a minha vida mudou.
Mudou quanto?
Drasticamente. Tive muito sucesso, estive em grandes produções como “Uncharted”, “Terminator: Dark Fate”, muitas mesmo, com a minha empresa Fresco Film. Também estive em “Westworld” e, claro, “Guerra dos Tronos” durante quatro temporadas e também em “Narcos”. Não me posso queixar. Deixou-me numa posição muito boa em Hollywood. Com honestidade, acho que tenho uma boa reputação, que tento honrar. O lado mais negativo foi estar muito tempo longe de casa, o meu primeiro casamento terminou, vi os meus filhos a crescer e não passei o tempo que queria com eles. Mas não devemos olhar para trás, no fim de tudo.
Nem sempre vemos alguém assumir o lado negativo do sucesso.
Não é arrependimento, sou uma pessoa muito positiva. Há conquistas ao longo do tempo, através do trabalho árduo. Acredito nisso, de que somos os arquitetos do nosso próprio destino. É o que digo aos meus filhos. Usa a tua energia para algo bom e vais conseguir mudanças. Pode demorar mais tempo ou não. Graças ao trabalho que fizemos em Espanha, consegui convencer os meus competidores, que são meus amigos, a criar uma aliança de produtoras no país. Já reuni várias vezes com o governo espanhol para conseguir alterações significativas. Criámos a base para que as produções internacionais trabalhem em Espanha.
Foi difícil conseguir unir o setor?
É um conceito muito latino. Prefiro a abordagem anglo-saxónica da competição. Todos fazemos o mesmo. Os meus competidores eram meus amigos quando comecei. Crescemos juntos. Esse conceito de tanque de tubarões, o que é que se consegue com isso? Se nos juntarmos, será melhor. Fazemos mais pressão.
Que tipo de mudanças conseguiu?
Quando fizemos a quinta temporada de “Guerra dos Tronos” não existiam incentivos fiscais em Espanha. A HBO, aquando da sua estadia, agradeceu, disse que tinha sido uma boa experiência, mas que, sem esses incentivos fiscais, não iria voltar. Tínhamos um governo conservador em que havia uma relutância relativa a este tipo de incentivos. A Spanish Film Comission já tinha feito esse estudo e, de repente, aconteceu. Esse sistema foi criado, a sexta temporada foi rodada em Espanha em 2015. Só que não ficou bem definido. Os termos e condições contratuais entre as empresas privadas e o Estado espanhol ficaram apenas num parágrafo. Ninguém pensou num modelo para preparar, a Spanish Film Comission fez um trabalho terrível nesse aspeto. Restava às empresas privadas, nas quais me incluo, tentarem sentar-se com o governo e discutir. Tive várias reuniões para discutir realmente como é que os filmes funcionam. Lembro-me de que numa das primeiras reuniões disseram-me que não queriam incentivos fiscais específicos em hotéis, veículos, catering. Porque não estava só diretamente relacionado com o cinema. O que fiz foi dar-lhes um exemplo, que é um dos favoritos e está relacionado com o passado militar do pai. Somos como um exército. No cinema é assim. Não usamos balas, mas máquinas de filmar. Disse-lhes para fazer uma comparação com o exército espanhol. Se o governo espanhol enviar soldados para o Afeganistão, vocês, no vosso executivo, dizem para apanharem o próprio avião? Não. Levam-nos lá, arranjam-lhes dormida, comida e transporte.
Como reagiram?
Disseram que era uma abordagem completamente diferente. Pois muito bem, mas era a que precisávamos na “Guerra dos Tronos”, onde filmámos em seis locais diferentes em todo o país, com equipas de 600 pessoas que precisavam de transporte, de comer e de dormir.
Eles perceberam a importância de garantir essas condições?
Não, ninguém percebeu. Acham que é colocar um ator à frente de uma câmara e já está. Somos das indústrias mais completas do mundo. Entretanto, e ainda bem, o governo espanhol mudou. Não quero ser político, é tudo igual neste caso, direita ou esquerda. Mas o primeiro-ministro Pedro Sanchez tem uma visão, percebe que a indústria cinematográfica pode trazer mesmo muito para o país. Ele percebe. O cinema emprega economistas, cozinheiros, advogados, pintores, atores, toda a gente. Nenhuma outra indústria o faz.
Disse-me que trabalhou em filmes independentes. O que é que essa parte do setor pensa sobre as plataformas de streaming? Em Portugal existe uma divisão clara entre a autoria e as exigências comerciais.
Mudei-me em 2022 para Portugal porque queria novos desafios. Acho que se podem estabelecer imensos paralelismos. O país está onde Espanha estava em 2015. Sei que aqui há muito talento, mas não avançará sem suporte político e estratégico. Falando da indústria, aqui está a mudar, sim, dou o exemplo do que aconteceu em 2014: a indústria nacional espanhola não queria trabalhar connosco. Não queria que fossemos membros. Isso já não existe agora. A mentalidade mudou. Claro que continuam a dizer que estamos a destruir a indústria porque pagamos melhor. Não é só sobre salários, é a forma com tratamos estas pessoas. O cinema é arte, mas também é uma indústria, só aí é que conseguimos mudar mentalidades, abrir-nos aos mercados e pagar melhor.
Mas não há o perigo de perder liberdade artística? Liberdade de contar as histórias que os autores portugueses querem contar e não aquilo que uma plataforma de streaming decide?
Não acontece, de todo. Players como a Netflix decidem, sim. Mas há sempre quem decida, em Portugal também. Ou a RTP ou o Instituto do Cinema e Audiovisual. Decidem o que se produz e o que não se produz. Alguém tem de o fazer. Temos de perceber que nenhuma arte será boa se não encontrar um público. Um pintor pinta porque quer ser visto numa galeria, em casa ou num museu. No cinema é igual. Acho que este é um problema europeu, e já sei que estou a entrar em terreno difícil…
Porque é que diz que é difícil?
Entendo que os subsídios estatais são necessários, especialmente para as gerações mais jovens. Mas uma indústria demasiado subsidiada leva a que realizadores e produtores não queiram saber do produtor final. “Faço as minhas merdas e não quero saber. Não quero saber de ninguém. Não quero saber do público.” Não criam um produto artístico que apela ao público. Se realizar o meu guião e não tiver feedback de como chegar a mais gente, faço para mim próprio. Nos EUA raramente filmamos depois de rever o guião no mínimo umas dez vezes, até que a história resulte. Aqui são apenas duas ou três vezes, está ainda imaturo. Quando oiço “esta é a minha visão”, fico com dúvidas. Porque é que os europeus continuam a preferir o cinema norte-americano ao nosso? Porque entretém. O mesmo acontece comigo. Quero ser entretido. Entretido para pensar, entretido para não pensar em mais nada. Odeio usar este termo, mas vou usá-lo: baja mental. A sério? Se não queres saber do produto, se é vendável ou não, então a tua indústria não vai singrar.
E para si entreter pode ter múltiplas formas.
Sim. É para um propósito de entretenimento, claro. Mas pode ser superficial ou histórias simples que nos fazem sentir, chorar, etc. Um dos meus realizadores favoritos, aliás tenho dois, nenhum deles usa efeitos especiais. O primeiro é o Clint Eastwood e o outro é Lasse Halstrom. Têm muito sucesso e contam histórias simples. As pessoas choram, criticam, riem-se. São apelativas para uma audiência. Se escreveres um livro que não apele a ninguém, não vendes. O mesmo com um filme. Escreves para ti? Não digas então que estás numa indústria, que és um profissional.
O problema é sempre quem decide o que é apelativo.
Não podemos esquecer o público. O dinheiro pode ser uma desculpa para me convencer de que estou a fazer algo apelativo. Vou dar outro exemplo: o realizador Alejandro Amenábar. Ele teve a ideia no filme “Tessis” e lutou por ele. Produziu-o com um orçamento baixo, depois fez mais e foi subindo. Hoje em dia é dos realizadores espanhóis mais conhecidos. Estou a tentar fazer o mesmo, quero afastar-me dos services e criar os meus projetos. Mas para ter dinheiro, preciso que seja apelativo. A arte foi sempre um produto. Até Miguel Ângelo pensava assim. A arte é expressão, mas se queres ser profissional tens de criar um produto.
Estaria aberto a que alguém mais novo o abordasse?
Estaria aberto, claro. Adoro storytelling, adoro cinema. Quem me abordar com uma história simples mas apelativa, vamos a isso. Essa é a essência do cinema. Pode ser “art house”, se for comovente, porque não?
E porque é que decidiu vir para Portugal?
Está a ver! Vocês são demasiado auto-críticos. Não se sabem vender. Os espanhóis e os portugueses são irmãos. Mesma história, mesma península. Encontro aqui os mesmos problemas que encontrei em Espanha. Eles têm a vantagem de ter um mercado maior, mas aqui existe a língua, está bem espalhada pelo mundo inteiro. Eu gosto de desafios, quando comecei a mudar a indústria lá, as pessoas começaram finalmente a ouvir-me.
Quando se mudou mesmo para cá?
Há um ano. Descobri Portugal em 2011 e apaixonei-me. Os dois países são quase iguais, mas muito diferentes.
Em quê?
Os espanhóis, mesmo quando não o são, comportam-se como se fossem os maiores. Aqui a mentalidade é que são pequenos, são miseráveis. Não! Parem de se queixar, há tanto talento, tantas possibilidades. Têm de parar de ser negativos.
Quando é que sentiu essa mentalidade portuguesa?
Em 2011 percebi logo que tinham equipas incríveis. Não percebi como é que ninguém no estrangeiro sabia como vocês trabalhavam. Senti-o mais a nível empresarial, com as equipas técnicas. Em Espanha, recebes dez “nãos” primeiro. É preciso continuar, porque à décima primeira, consegues. Cá as pessoas ouvem-me. No “Velocidade Furiosa” falámos com políticos. O que a Sofia [Noronha, da Sagesse Productions e mulher de Peter] conseguiu com a autoestrada a gravar lá durante cinco semanas… seria impossível em Espanha. Precisávamos de cinco quilómetros de estrada, e não de cem, para o “Terminator” e só o conseguimos por acidente. Aqui se acham que dá, dá. É positivo. Lá está, continuo a ser apolítico, sem ser nos extremos, toda a gente te ajuda em Portugal, mesmo a nível político. Foi preciso um primeiro-ministro espanhol perceber para acontecer esta evolução da indústria. No minuto em que exista a perceção de que é possível criar uma indústria que será boa para Portugal, como outro pilar da economia além da construção, agricultura e turismo… o turismo agora é um problema. O aumento dos preços do imobiliário, é brutal. Se fosse só por isso, não tinha vindo. Quando o governo português perceber o que estou a dizer… Em Espanha foi igual. É preciso largar o tal tanque dos tubarões e juntar forças. Como é que se convence um governo a mudar? Com números.
Que números? Quer-me dar um exemplo?
Claro. Quando os incentivos fiscais foram implementados em Portugal a partir de 2015, fizemos as nossas estatísticas. Lembro-me que nesse ano, as produções internacionais foram feitas por 90% da tal aliança de que lhe falei, gastaram 40 milhões de euros. Hotéis, segurança social, restauração. Acho que em 2021 foram gastos 400 milhões de euros. 400 milhões de euros gastos em Espanha. Sei que em Portugal é diferente porque há recibos verdes, mas em Espanha não, tem de haver folha salarial. Toda a gente é contratada e as empresas pagam segurança social. Dou outro exemplo: em 2018, durante o “Terminator: Dark Fate”, no mês de julho, a nossa produção gastou cerca de um milhão de euros só em segurança social. Só uma produção. Desses 400 milhões de euros gastos em 2021, de investimento que veio, acho que 200 milhões foram só em salários. Mais uma percentagem grande para a segurança social, logo o Estado espanhol beneficiou. Fez muito dinheiro. Os políticos precisam de factos. Há demasiada gente a dizer que são os maiores, mas é preciso provar. 400 milhões de euros, onde 200 milhões foram só em salários. Oito empresas gastaram isto, penso.
Mas em Portugal há a questão do financiamento, porque só agora é que as plataformas de streaming estão a entrar.
Se a indústria mudar, vão existir mais formas. Em Espanha há dois incentivos fiscais: nacionais e estrangeiros. Não há limite. Também existe a possibilidade de alguém investir na restauração ou em cinema, por exemplo, e é possível conseguir 25% em retorno do dinheiro investido. Se gastares dez milhões, recebes 2,5 milhões, por exemplo. Foi criado um catálogo de despesa qualificada. Em Portugal ,tudo o que é gasto é sujeito a entrar nos incentivos fiscais. É fácil implementar esta ideia cá. Existe dinheiro. Existe indústria, ainda que pequena. O que é que acontece com um carro? O motor aquece e começa a andar. Se criarem o ambiente que fomente a criação de uma indústria, é mais fácil atrair mais pessoas de fora, transmitir conhecimento, mais jovens poderão mudar-se para este negócio. Mas depende de nós. Demora tempo.
Já teve reuniões com políticos portugueses?
No “Velocidade Furiosa”, sim.
Foi preciso usar a metáfora do exército?
Não. Mas estou mais do que disponível para me reunir com políticos portugueses ao mais alto nível para explicar os benefícios. Já tenho os números da evolução desde 2014 até agora em Espanha, posso falar na primeira pessoa. Quero ajudar. Acredito neste país.
Acha que os produtores portugueses estão também abertos a essa conversa?
Não os conheço. Começaria como fiz em Espanha: pelos services primeiro, que mentalmente estão mais disponíveis. Depois seguiria para os produtores nacionais.
Não sabemos ainda o que vai acontecer com a Portugal Film Comission e há produtores que não sabem bem o que vai acontecer em 2023 no que diz respeito ao cash rebate. Só sabemos que, mais uma vez, o programa de incentivos começa com atrasos.
O cash rebate está uma grande trapalhada neste momento. Não há nada que os norte-americanos mais odeiem do que a incerteza. Eles gostam de preto no branco. Condições, termos, como vão ter o retorno financeiro. Neste momento, nada é claro. Não funciona assim. É preciso um sistema consolidado como em Malta, no Reino Unido, França ou Hungria. Que não dê espaço a dúvidas. É preciso fazer isso em Portugal muito rapidamente. Muito rapidamente mesmo.
Pode acontecer que o comboio dos grandes estúdios dos EUA passe e não volte.
Vocês puseram o motor a trabalhar e agora não metem gasolina. Porquê? Se o carro está a andar, mantenham-no. Portugal teve grandes produções no último ano.
O risco é real?
É iminente. Portugal está a perder grandes produções porque nada é claro. Não sei quais, mas sei que sim. O processo não está a ser nada transparente. É o que toda a gente me diz cá. A possibilidade de uma conversa não é séria. Não pode haver “ses”. “House of the Dragon” esteve cá. Na segunda temporada talvez não aconteça, mas podem voltar.
Não pode garantir.
Estamos a tentar que o interesse da HBO se mantenha, mas são muito, muito conservadores. Se as condições não forem claras, eles não arriscam. Não está fácil, não.
Essa produção já recebeu o dinheiro do cash rebate? O ministro garantiu que os projetos de 2022 receberiam todo o dinheiro até final do ano.
“House of The Dragon”, sim. “Fast and Furious” não sei, mesmo.