Piruka é hoje um dos nomes mais populares da história do rap português. Pertence à geração que apareceu há 10 anos e que, com a força do digital e de um público a crescer exponencialmente, expandiu a área de influência do hip hop em Portugal, levando-o até a uma dimensão pop — e tudo feito de forma orgânica e independente, sem editoras nem grandes máquinas por trás.
Muitos dos artistas que pertencem a essa geração estão em fase de consagração dos seus percursos. Piruka celebra este décimo aniversário de carreira com a estreia em nome próprio nos coliseus: atua em Lisboa a 20 de janeiro, e no Porto no dia 27.
Estes dez anos de carreira não são apenas marcados por álbuns elaborados ou singles vistosos que acumularam milhões e milhões de visualizações. Tudo mudou na vida de André Filipe de Oliveira, que passou da “miséria” para uma vida bastante abastada, enquanto se tornava num dos músicos portugueses mais ouvidos.
O filho de duas famílias muito diferentes
Desde a pandemia que Piruka vive no Porto. Já não ia à Praia das Avencas, na Parede, onde se encontra com o Observador, há vários anos. “Passei aqui a minha infância toda”, recorda. “O meu bairro, a pé, fica a uns 15 minutos. Vínhamos todos da Madorna para aqui, depois voltávamos ao final do dia. Eu, o Dillaz e outros amigos íamos até àquelas rochas lá ao fundo”, aponta. “Quando a maré está vazia, é o único sítio que tens para mergulhar.”
A praia foi renovada nos últimos anos. O pontão foi reconstruído e o bar da praia foi completamente remodelado. “Isto era uma praia a que ninguém vinha, era só rochas e pessoal do bairro. Agora é que se tornou uma praia do jet set. Também, quem arruinava esta praia era a minha geração”, diz, entre risos. “Traz-me boas recordações.”
[“Braille”, o mais recente single de Piruka:]
André Oliveira nasceu há 30 anos e vem de duas famílias muito diferentes. A sua história parece mesmo a de uma trama de filme ou telenovela. O avô materno, ligado à construção civil e à calçada portuguesa, com raízes na Linha de Cascais, era um homem rico. “Conseguiu fazer duas fortunas. Fez uma antes do 25 de Abril, depois ficou sem nada e teve de fazer outra.”
O pai, criado no bairro social da Madorna, tinha tido problemas com a lei e com as drogas. Era empregado do avô, que lhe arranjara um trabalho para o ajudar. Apaixonou-se pela filha do patrão e tiveram dois filhos. André viveu os primeiros três anos de vida com o avô. “Foi a minha figura paterna. A minha mãe estava na vida dela, o meu pai estava na vida dele, o velhote é que se agarrou a mim. Eu era louco por ele. O meu avô é como se fosse o meu pai.”
Quando a mãe o foi buscar “aos três ou quatro anos” de idade, passou a levar uma vida algo dividida entre duas realidades que se cruzavam frequentemente. Durante a semana, morava no Estoril, numa casa luxuosa onde não faltava nada, onde tinha o apoio de uma série de empregados. Andava num colégio. O avô manteve-se sempre por perto. Aos fins de semana, e durante boa parte das férias, ia para a casa do pai na Madorna, onde o ambiente era outro. Com mais de 10 tios e 60 primos, era mais um da família do terceiro direito.
Foi lá no bairro, com cinco ou seis anos, que ganhou a alcunha de Piruka. O pequeno André usava um fato de Carnaval do mosqueteiro D’Artagnan mas estava sempre a tropeçar na grande “peruca” da personagem. Primeiro, não gostou muito do nome com que havia sido batizado pelos outros rapazes, mas acabou por ceder e por passar a ostentar a alcunha com orgulho.
Aos 10 anos, tudo mudou, quando o avô morreu. “O velhote partiu a saber que a família dele estava orientada. Infelizmente, quem ficou cá não teve cabeça para gerir as coisas”, conta Piruka, referindo-se a um tio que não teve o discernimento para gerir a herança. De um dia para o outro, André, a mãe e a sua irmã passaram de uma casa luxuosa com três andares e piscina para um anexo onde chovia lá dentro. Do Colégio Amor de Deus, passou para a escola de Matarraque, um dos bairros de Cascais com mais problemas sociais. A mãe, que até então não tinha tido necessidade de trabalhar, teve de encontrar empregos precários para conseguir sustentar os filhos.
Despertar para o rap
André Oliveira já ouvia rap, sobretudo artistas norte-americanos como Eminem ou Dr. Dre. Por volta dos 11 anos, sem muitos amigos, numa altura de mudanças drásticas na sua vida, sentia que precisava de desabafar. Foi quando se agarrou ao papel e à caneta para começar a escrevinhar os primeiros versos. A primeira letra focava-se precisamente na perda do avô. Precisava de lidar com o choque de realidades, de expressar tudo o que tinha dentro de si.
“Fez-me abrir os olhos. Na vida que eu tinha era tudo muito embelezado e simples, mas de um momento para o outro as coisas mudaram. Foi um momento que definiu muito a minha personalidade. Comecei a ter medos que não tinha, a lidar com problemas que não tinha. E passei a olhar para a minha mãe e a ter pena dela.”
Piruka tornou-se um adolescente “revoltado”, que “só fazia porcaria”. “Também porque o meu pai estava agarrado às drogas, estava-se a cagar, eu via-o na vida louca e ele estava-se a cagar para mim. Quando tu és miúdo, isso consome-te a cabeça. Eu só queria que o meu pai visse que eu era bom a fazer alguma coisa, para ele chegar ao pé de mim e dizer: boa, filho. Era essa a luta. Por isso, tinha uma grande revolta. Só fazia merda, e a minha mãe é que arcava com ela.”
Inspirado por Dillaz, um pouco mais velho e um dos seus bons amigos da altura, foi começando a aperfeiçoar o seu rap. Mas só mais tarde levaria a música a sério. Durante a adolescência, esteve metido em problemas e chegou a enfrentar risco de cadeia na viragem para a idade adulta, tendo conseguido ficar com uma pena suspensa. Aos 17 anos, saiu de casa para depois ir viver com a namorada, grávida da sua primeira filha, Clara. Piruka nunca tinha trabalhado a sério e começou a servir às mesas numa pastelaria, em longos turnos de 14 horas por dia. Precisava de fazer dinheiro para sustentar a filha. Isso também coincidiu com a altura em que lançou o seu primeiro disco.
Se, por um lado, enfrentava uma série de dificuldades na vida; por outro, estava determinado a ter sucesso na música. “Quando era puto ficava em frente ao espelho a cantar as músicas do Sam The Kid, do Mundo Segundo, dos Black Company, do Chullage. Tu sonhas. Vês os concertos deles, ganhas ambição. Acho que tens de te ver lá. E eu, sem nada, na miséria, dizia: um dia vou ser o gajo mais ouvido deste país. E fui.”
De empregado de mesa ao rapper mais ouvido em Portugal
Piruka começou por estar associado ao coletivo M75, de Dillaz, Zeca e Vulto. Uma das suas faixas, Dias do Passado, entrou mesmo na mixtape de 2013 com que Dillaz chegou a um público maior, o segundo volume de Sagrada Família. Mas Piruka acabou por decidir seguir o seu próprio caminho, gravando com Khapo o seu trabalho de estreia, a mixtape Quatro Cantos, editada em 2014.
Nessa altura começa a ser convidado para dar concertos, mas é com outro single que apresenta nesse ano que sente que, de facto, iria chegar mais longe: Tens de Intervir tem um enorme impacto e acumula milhões de visualizações no YouTube. “Foi quando percebi que tinha aberto a porta.” Com uma escrita autobiográfica e muito centrada na sua família, adornada por refrões melódicos, seguiram-se temas como Escuta-me e Pensa ou Está na Hora, que anteciparam o EP Pára e Pensa, editado em 2015. Com produções de nomes como Lhast, Charlie Beats ou Spliff, incluía faixas como Vim Para Ficar, Música ou Não Quero Acordar, que se revelaram autênticos êxitos.
Aos poucos, Piruka tornava-se num dos maiores fenómenos de popularidade do rap português. Essa jornada foi-se intensificando à medida que ia lançando mais singles e atingiu um novo patamar com Ca Bu Fla Ma Nau, tema em português e crioulo feito a meias com Mota Jr. Apesar de ter um registo de rap cru de rua, tornou-se um sucesso comercial. Em três semanas, chegou aos dois milhões e meio de visualizações. O tema começou até a passar na rádio, algo nada habitual para este tipo de rap, sobretudo com rimas em crioulo.
Acabou por integrar o alinhamento do seu primeiro álbum, AClara, que foi lançado em 2017, em homenagem à filha. Com refrões melódicos e instrumentais atualizados para a sonoridade trap, o disco também incluía Se Não Acordar Amanhã, Não Se Passa Nada ou Sirenes. Piruka tornou-se num dos músicos em Portugal com mais concertos por ano e construiu tudo de forma completamente independente. Sempre recusou os convites que lhe chegaram das grandes editoras, que passaram a ser frequentes.
Em 2017, lançou ainda o single Salto Alto — que hoje soma mais de 40 milhões de visualizações no YouTube — e manteve uma intensa disputa musical com os rappers Holly Hood e 9 Miller, com faixas de parte a parte, destinadas uns aos outros, a alimentarem uma rivalidade. Hoje, olha para esse momento ultra mediático com outra perspetiva. “O beef foi bom para a cultura. Mesmo pessoas que não sabem o que é o rap, ficavam a ouvir só para perceberem no que é que aquilo iria dar. E houve uma altura em que a tendência era eu. Não era o rap que estava a bater, era o Piruka. O meu agente, antes de trabalhar comigo, achava que eu comprava as visualizações. Até ficava pálido, quando começou a ver o impacto dos primeiros singles que lançámos juntos.”
Lançou o álbum Coroa em 2020 e, no ano que passou, foi a vez de Iluminado. Enquanto tudo isto acontecia, Piruka — que tinha tido tudo, para depois levar uma vida de “miséria”, voltava a enriquecer graças à música. Cometeu excessos.
“Esbanjei muito dinheiro no início, porque era um miúdo que não sabia o que era ter muito dinheiro. Não sabia o que era ganhar 5 ou 10 ou 15 mil euros na quinta, sexta, sábado e domingo. E chegar a segunda-feira com 50 mil euros no bolso… Era normal chegar ao meu bairro para ir ter com os meus amigos e quem eu queria comigo, e se queria sair daqui e ir para o Porto, ia com 10 para o Porto. E não pedia um cêntimo a ninguém. Digam o que disserem, ninguém é feliz sozinho. E, se eu comesse um bife do lombo, os 10 que estavam comigo tinham de comer um bife do lombo. Então, rebentei com muito dinheiro. Faz parte da maturidade. Vão-me condenar porque rebentei um milhão ou porque ofereci não sei o quê? Se o fiz e me senti bem na altura a fazê-lo…”
A pandemia, porém, deixou-o a pensar de forma diferente, até porque a crise sanitária colocou a indústria da música em suspenso. “Tenho a noção de que nada é garantido desde que o meu avô morreu. Mas durante a Covid-19 pensei que isto da música poderia também não durar para sempre. E se a música quebra? Tenho de ter outros meios.”
Por isso é que, nos últimos anos, Piruka se tem vindo a tornar um homem de negócios, investindo no setor dos automóveis e do mercado imobiliário. Hoje, são vários os que tem a seu cargo. Tem três filhas, vai ser pai novamente em março (tudo aponta para a primeira semana do mês, quando Piruka também celebra o seu aniversário) e a sua mãe já não trabalha. “Fui eu que quis que ela deixasse de trabalhar. Já não tem que limpar a merda dos outros, como limpou durante anos.” Tenta compensá-la pelos erros que cometeu, embora saiba que nunca será suficiente. “Mesmo que ganhe o Euromilhões e lhe dê 50 milhões para a mão, nunca vai chegar. No que eu puder, aquela velhota vai ser levada ao colo até não dar mais.” O rapper também chegou a ter um café com a irmã em Sintra, para lhe garantir uma fonte estável de rendimento, embora esse negócio já não exista.
Foi também durante o período da pandemia que se decidiu a mudar para o Porto, onde viviam as pessoas da sua equipa, com quem trabalha no dia a dia. Lidar com tanta fama e dinheiro, na casa dos 20 anos, estava a tornar-se um desafio.
“Houve uma altura em que já pedia para o fanatismo à minha volta parar. Inconscientemente, eu era muito produtivo e deixei de fazer música. Tive dois anos sem lançar sons. Quis mesmo recuar, não estava a conseguir lidar com aquilo tudo. Por isso, mudei de sítio, fechei-me mais, estava à procura de paz”, conta. “Foi uma luta, com os meus anjinhos, os meus demónios… Chorava de raiva. Hoje já não a tenho, já não tenho esse ódio todo dentro de mim. Mas foi sempre a raiva que me tornou na pessoa que sou: quando não tinha nada e tinha a gana de mostrar ao mundo que conseguia, de que ia ser o melhor.”
Piruka tornou-se numa autêntica estrela pop. Diz que não consegue frequentar discotecas e mesmo as idas aos centros comerciais são curtas e às escondidas. “Vou lá a correr. Ou escondo-me para ir ao cinema com a minha filha.” O mediatismo é real. “Vivi vida de jogador a viver do rap. Acho que em Portugal o nome ‘Clara’ aumentou muito desde que a minha filha nasceu”, diz, entre risos. “Chego aos meus concertos e tenho desde os miúdos de 6 anos aos 12, aos 16, aos 20, aos 30… Às vezes tenho velhotes na fila da frente a abanar a cabeça. Sou o Tony Carreira do rap”, brinca.
Embora sempre tenha sido algo divisivo e controverso, Piruka tem um forte espírito solidário e ajuda cada vez mais os outros. Afinal, também ele sabe como foi passar por dificuldades para ter comida na mesa. “Encho frigoríficos. Mandam-me mensagens a dizer que não têm comida e eu mando-lhes. Não gosto de mandar dinheiro, mas peço à minha mãe para encomendar nos supermercados que fazem entregas… E não partilho nada, não quero beneficiar disso. Não há um mês em que não ajude alguém”, revela.
“A minha mulher diz que não posso ter moedas no bolso se estiver numa avenida. Se tiver 20 euros em moedas no bolso e passar por 10 homens, vou dar 2 ou 3 euros a cada um. E durmo descansado, durmo feliz comigo. Não sou perfeito, não vou morrer perfeito, mas vou limando as minhas arestas, tento todos os dias ser um bocado melhor. Já fui muito louco, já fiz muita coisa boa e má, mas consegui amadurecer e estou a tornar-me um senhor, num homem com responsabilidades. Não quero olhar para mim daqui a 10 anos e ter a mesma imagem e o mesmo pensamento que tinha quando apareci. Olharem para ti e veres que não evoluíste nada?”
Os concertos nos coliseus (e a reinvenção artística que deseja fazer)
Os concertos nos coliseus serão verdadeiramente especiais, promete o rapper. “Não é só um concerto. Estamos a criar um conceito que vai além disso. Estamos a abordar tudo de uma forma diferente e acho até um bocado único para o que estamos habituados a ver por cá, principalmente no rap. Sei que quem lá for vai ficar espantado”, deixa no ar. “Estou mesmo ansioso, porque é um espetáculo todo feito por nós, desde o sistema de som até ao homem que vai estar na porta. Não nos associámos a ninguém, o investimento é todo nosso. Se correr bem é nosso, se correr mal é nosso. Por isso, gera aquela pressão e aquele nervosismo de tudo correr bem.”
Hoje, assume que tem como principal objetivo manter o estatuto que conquistou na última década. “Acho que conquistei aquilo que queria. Tenho é a ambição de continuar no posto onde me meti. Porque às vezes chegar não é o difícil. Difícil é manteres-te lá em cima”, acredita. “E sei que no meu ramo fiz história neste país. Daqui a 30 ou 40 anos ainda vão falar do meu nome.”
Porém, sente a necessidade artística de se reinventar de alguma forma. “Há uns tempos que ando com a vontade e com a necessidade de me reinventar. Mas depois sinto que a mentalidade portuguesa é muito fechada. Vou ser sempre o Piruka, que fala da vida, o tal que passou por isto e aquilo. Então, sinto que agora se me quiser reinventar enquanto artista, muita gente vai opinar: “vendeu-se”. Já me vendi há muitos anos. Vendi-me quando comecei a fazer dinheiro, como eles todos. Diz-me um rapper da minha geração que esteja há 10 anos ainda sem editora. Está tudo assinado.”
Diz que a sua base é o rap, mas que deseja acompanhar a evolução dos géneros musicais. “Há vários estilos em que aquilo já não é rap, mas tem rimas, não estão a cantar. Se aparecer com um beat diferente, sei que vou levar logo muito hate. Mas, se quiser, consigo reinventar-me. Hoje em dia oiço outras coisas. Gosto de ouvir um beat que é de rap mas tem ali um afro… Mas, graças a toda a minha trajetória, se hoje fizer isso já me vão crucificar. E este receio também te parte muito as pernas. Seja como for, vou sempre ser eu. Bati estes milhões todos sendo tão eu. Nunca vesti nenhuma capa, nunca fingi ter nenhuma personalidade. O que me fez bater foi ser eu e isso irá continuar.”