Em Espanha, já há muito que não se espera da monarquia contos de fadas e histórias de encantar. Nos últimos anos, os contos passaram a ser antes do género policial, onde o nome do rei emérito Juan Carlos passou a estar no centro de histórias que lhe apontam em suma dois tipos de fraqueza: o da carne, com histórias de amantes a surgirem em catadupa; e a moral, com o avolumar de suspeitas de ter feito fortuna de forma ilegal, com esquemas montados em Espanha, na Suíça, em Marrocos ou nos países do Golfo.
O último capítulo do já extenso livro de polémicas e suspeitas de Juan Carlos é também provavelmente o mais grave de todos. Misturando as duas fraquezas que lhe são imputadas — a da carne e a moral —, esta história começa com as declarações de uma antiga amante do rei, a empresária alemã Corinna zu Sayn-Wittgenstein, que foram secretamente gravadas por José Manuel Villarejo, um ex-agente da polícia que fez fortuna no setor privado e que está preso desde novembro de 2017 pelos crimes de organização criminosa, suborno e branqueamento de capitais.
“É um descrédito para uma pessoa que já estava muito desacreditada”, resume, ao Observador, o historiador Juan Carlos Jiménez Redondo, da Universidade CEU San Pablo, em Madrid.
Tudo se terá passado em 2015, no apartamento londrino de Corinna, em Eaton Square. Numa reunião cujos contornos ainda não são totalmente claros, a empresária alemã recebeu a visita de José Manuel Villarejo e também de Juan Villalonga, empresário e ex-diretor da Telefónica, que terá apresentado o ex-polícia (Villarejo) à empresária alemã. De acordo com o El País, José Manuel Villarejo terá apresentado um mandado falso do Centro Nacional de Informações (CNI) a Corinna, informando-a de que existia o risco de ser presa caso não colaborasse. Diante daquele papel, e de um polícia que já há muito tempo que não o era, falou.
Perante um microfone do qual não se terá dado conta, Corinna fez várias acusações ao seu ex-amante e explicou como o rei emérito tornou a sua vida num “pesadelo” quando ela lhe fez saber que não queria alinhar nos seus alegados esquemas de lavagem de dinheiro. “O rei não distingue entre o que é ilegal e o que é legal”, garantiu.
Nas gravações que ficaram conhecidas como “As Fitas de Corinna”, divulgadas pelo El Español e pelo OK Diario, a empresária alemã contou que Juan Carlos alegadamente cobrou uma comissão de 100 milhões de euros por ter mediado, em 2007, a concessão da construção de uma linha ferroviária de alta velocidade entre Meca e Riade, na Arábia Saudita. O dinheiro, explicou Corinna, ter-lhe-á sido depositado numa conta bancária na Suíça, por intermédio de Shahpari Azam Zanganeh, então mulher do entretanto falecido multimilionário saudita Adnan Khashoggi, que fez fortuna com a venda de armas aos EUA.
Há mais. Falando ora em castelhano ora em inglês, Corinna conta como o rei a terá usado como testa-de-ferro na aquisição de terrenos em Marraquexe ou para depositar dinheiro em contas offshore. E como depois lhe exigiu a passagem dos bens de facto: “Sem que mo tivessem dito, puseram o meu [nome]. E depois dizem: ‘Esta não quer devolver-me as coisas’. Mas, se o faço, é branqueamento de capitais”, diz a mulher que manteve uma relação íntima com Juan Carlos entre 2006 e 2013. “Há coisas que nem pedi, nem das quais fui informada. Puseram-nas em meu nome não porque gostem muito de mim, mas porque resido no Mónaco. Por isso, não tenho o problema de declarar o património”, acrescentou.
E continua. Falando no caso de corrupção Instituto Nóos, que resultou na condenação a cinco anos de prisão do genro do rei emérito, Iñaki Urdangarin, e do qual a infanta Cristina foi absolvida in extremis, Corinna meteu o nome de Juan Carlos bem no centro do esquema. “No Instituto Nóos, quem fazia todas as chamadas para haver dinheiro? O rei”, disse em 2015. “Ele ligava: ‘Podes, por favor, fazer um contrato de 100 mil aqui, um contrato de 1 milhão ali…’. Eu estava ao lado dele.”
Em 2015, Corinna queixava-se também de ser perseguida por Juan Carlos e pelos serviços secretos espanhóis, o CNI, contando que chegaram a estar na sua casa no Mónaco durante três semanas. “[O diretor do CNI] ameaçou a minha vida e a dos meus filhos”, garantiu. “O rei sabia disto.”
O caso caiu com estrondo em Espanha, levando a que desta vez a Casa Real merecesse mais a atenção dos jornais mais prestigiados do país e não da imprensa cor-de-rosa — um feito cada vez mais comum mas que, até aos últimos anos do reinado de Juan Carlos, era muito raro.
A tudo isto, seguiu-se o debate político. A primeira pedra foi lançada pela bancada do Unidos Podemos, coligação do Podemos com a Esquerda Unida, onde era exigida a instauração de uma comissão de inquérito parlamentar à qual, entre outros, Juan Carlos seria chamado. A proposta, que contou também com o apoio de partidos independentistas e de caráter regionalista, foi chumbada. O Partido Popular, a maior força política do Congresso dos Deputados, rejeitou-a ao lado do Ciudadanos. O PSOE, que lidera desde junho um governo apoiado numa frágil base de apenas 84 deputados em 350, também rejeitou essa hipótese. Para a troca, propôs uma sessão à porta fechada com o diretor do CNI.
Depois daquela sessão, o governo de Pedro Sánchez deu o assunto por arrumado. “O Governo está satisfeito com as explicações dadas”, disse Isabel Celaá, porta-voz do executivo socialista.
E na justiça? De acordo com o que o gabinete de Serviços Jurídicos do Estado respondeu informalmente ao governo espanhol, o rei goza de imunidade para todos os seus atos cometidos durante o seu reinado — iniciado a novembro de 1975 e do qual abdicou em junho de 2014 — e no momento em que desempenhar funções oficiais — algo que ainda faz, embora com cada vez menor frequência. Além disso, a ser julgado, Juan Carlos só poderia sê-lo pelo Tribunal Supremo, que tem também a competência exclusiva para fazer uma possível investigação ao rei.
Por mais alarde que tenha provocado, é, pois, possível que este tema seja submetido a um processo de silêncio. Será ele pacífico ou, antes pelo contrário, incómodo? E que consequências trará para a monarquia espanhola?
“O maior erro de Juan Carlos foi ter deixado de ser rei nos anos 90”
Diz-se que, em Espanha, não há monárquicos — há, isso sim, juancarlistas. Para essa ideia, muito contribuíram os primeiros anos de poder de Juan Carlos, depois de o ditador Francisco Franco, nos seus últimos tempos, ter permitido a reinstauração da monarquia e ter dado, em 1975, a possibilidade ao até então príncipe de formar governo.
Nessa altura, em que a morte de Franco era uma questão de pouco tempo, Juan Carlos, com a ajuda de setores liberais do franquismo e de defensores da democracia, soube levar Espanha ao processo da Transição. Esta culminou com as eleições gerais de 1977, com votação da Constituição em 1978 e, enfim, a sua adoção após referendo em 1979.
Pela frente, Espanha teve anos em que procurou consolidar a sua democracia. O maior teste deu-se a 23 de fevereiro de 1981 quando, durante a votação de uma moção de censura ao governo de Adolfo Suárez, um grupo de militares e guardas civis irromperam pelo Congresso dos Deputados, disparando para o ar e exigindo a subida ao poder de um governo liderado por um militar. O sequestro dos deputados e do governo no parlamento manteve-se ao longo de várias horas, durante as quais Juan Carlos assistiu de perto ao seu desenvolvimento no Palácio de Zarzuela.
Por fim, depois de negar aos golpistas o apoio que estes lhe pediram, Juan Carlos fez um discurso já em horas avançadas que foi transmitido na televisão pública. Numa frase, assegurou o fim do golpe: “A Coroa, símbolo da permanência e unidade da pátria, não pode tolerar de forma alguma ações ou atitudes de pessoas que pretendam interromper pela força o processo democrático que a Constituição votada pelo povo espanhol determinou”.
Se é certo que o papel de Juan Carlos no golpe nunca foi claro — sobram dúvidas de se teria a informação de que ele ia acontecer e era sabido que, juntamente com quase todos os setores da política espanhola, também o rei queria o fim do governo de Adolfo Suárez — a verdade é que, aos olhos da opinião pública, ficou confirmada a sua posição de estadista e garante da democracia espanhola.
Logo no ano seguinte, em 1982, Espanha torna a ir às urnas e o PSOE vence com maioria absoluta. É nessa altura, e com um domínio socialista que seria prolongado até 1996, que Juan Carlos começou a mudar de papel — e, assim a abrir caminho às suas facetas menos passíveis de celebração.
“Com a entrada do governo do PSOE, em maioria absoluta, a figura do rei começa a cair de forma acentuada. Era lógico que isso acontecesse, que o rei voltasse aos seus trâmites constitucionais, mas foi aí que começou a ter elementos obscuros e amizades perigosas”, diz o historiador Juan Carlos Jiménez Redondo, numa entrevista por telefone. “O maior erro de Juan Carlos foi ter deixado de ser rei nos anos 90.”
Foi já na segunda metade dos anos 90 que o muro de silêncio em torno de Juan Carlos começou a cair com estrondo. De um fino fio, passou a catadupa ao longo dos anos, culminando com a abdicação do trono em 2014.
Primeiro, surgiram as suspeitas de, através do favor das petromonarquias do Golfo durante as crises petrolíferas da década de 70, ter acordado com Franco uma comissão por cada barril de petróleo importado por Espanha. Depois, pessoas da maior proximidade ao rei viram-se a mãos com a justiça: além da sua filha, a infanta Cristina, que foi absolvida, o seu genro, Iñaki Urdangarin, e o seu amigo e colaborador Manuel Prado y Colón de Carvajal foram condenados a penas de prisão efetiva.
Além disso, as amantes. Apesar de estar casado com a rainha Sofia desde 1962, Juan Carlos teve várias relações extra-conjugais ao longo do matrimónio que até hoje se mantém. Além do mais recente, com Corinna, o caso com a atriz Barbara Rey é também conhecido. Em 2017, soube-se como, entre 1996 e 1997, espiões do CNI terão depositado 26,3 milhões de pesetas (atualmente, equivalente a cerca de 160 mil euros) numa conta no Luxemburgo. Em troca, a atriz teria de entregar ao CNI gravações de áudio e de vídeo onde o rei figurava ao seu lado.
Por fim, houve também o escândalo da caçada de elefantes no Botsuana — organizada precisamente por Corinna, que já mantinha uma relação com o rei há cinco anos a essa parte —, com fotografias de Juan Carlos a posar ao pé de um daqueles animais mortos a surgirem na imprensa. O rei, que teve de ser operado depois de ter partido a bacia nessa caçada, acabou por pedir desculpas por este caso.
“Lamento muito. Equivoquei-me e não vai voltar a acontecer”, disse, à saída da clínica onde esteve internado.
https://www.youtube.com/watch?v=sy88haw5z5s
O affaire com Corinna é, porém, o mais grave de todos: acrescenta a questões do foro íntimo acusações de fuga ao fisco, branqueamento de capitais e corrupção.
Para já, só foi publicada uma sondagem sobre a confiança na monarquia desde o rebentar da crise d’”As Fitas de Corinna”. A sondagem da Electomania, divulgada pela revista Contexto, indicava que 49,9% dos espanhóis preferem o sistema monárquico e que 47,4% querem viver numa república. As principais sondagens socio-políticas espanholas, elaboradas pelo CIS, pela Metroscopía ou pela Sigma Dos, ainda não se debruçaram sobre este tema após a divulgação das gravações de Corinna.
Para Fernando Vallespín, colunista do El País e professor catedrático da Universidade Autonoma de Madrid, o debate entre monarquia e república é uma questão ultrapassada já desde a consumação da Transição — e não será o caso Corinna a trazê-lo à tona, garante. “Este é um tema resolvido. Quando Espanha mudou da disjuntiva monarquia-república para a disjuntiva entre monarquia parlamentar e sistema autoritário, este tema ficou resolvido para os espanhóis”, diz numa entrevista por telefone ao Observador.
Sobre o caso Corinna, Fernando Vallespín coloca algumas reticências. “As declarações dela não foram propriamente numa entrevista ao The New York Times, são declarações gravadas de forma secreta por uma pessoa que está na prisão e que provavelmente quis usá-las como meio de chantagem”, diz. “Que credibilidade se pode dar às declarações de alguém que tem motivos para poder prejudicar a Casa Real?”
E, continua, este é um caso que serve, acima de tudo, aos partidos mais à esquerda no Congresso dos Deputados. “Isto permite à Esquerda Unida e ao Podemos fazer uma oposição mais legítima à monarquia, mas não a coloca em perigo”, sublinha. “Já se percebe que algumas publicações que lhe são próximas estão a utilizar o tema da ‘monarquia sim, monarquia não’ com uma seriedade e empenho maiores do que noutras alturas”, diz. Um exemplo, que o colunista não refere mas que encaixa no que diz, é o abaixo-assinado promovido pelo jornal espanhol Público a favor de um referendo à monarquia. Atualmente, conta com mais de 127 mil assinaturas.
Juan Carlos Jiménez Redondo admite que, se este tema tivesse surgido num momento de maior estabilidade política, económica e social em Espanha, a reação seria “muito mais potente”. No entanto, o atual contexto espanhol é tudo menos de estabilidade. “Espanha tem vários problemas neste momento. Tem uma taxa de desemprego de mais de 15%, uma situação económica que embora esteja melhor ainda é má, tem problemas sociais, vive com corrupção e tem uma instabilidade política que inclui o governo e a questão da Catalunha”, diz. “Tudo isto é muito superior a qualquer coisa que se possa passar com um senhor de 80 anos.”
Tal pai, tal filho? Antes pelo contrário — e não por acaso
O historiador Charles Powell, especialista na monarquia espanhola, acredita que, mesmo que a reputação do rei emérito saia manchada desta história, o mesmo não acontece com a instituição da Coroa e o seu atual titular, o rei Felipe VI.
“Juan Carlos abdicou em 2014 precisamente para estabelecer uma distinção e fechar uma etapa, para que assim o rei Felipe tivesse uma nova”, diz ao Observador o professor da Universidade de CEU San Pablo. “A opinião pública faz essa distinção com uma certa facilidade e entende que Juan Carlos teve uma atuação importante numa época muito especial como a Transição e que Felipe VI opera uma monarquia que é muito mais sólida.”
Charles Powell explica que, ao contrário do que se passou com Juan Carlos e o retomar da monarquia quase em simultâneo com o da democracia, Felipe VI atua num contexto “mais regrado, mais institucionalizado e com o intermédio de órgãos eleitos” aos quais tem de responder.
“O que Felipe VI tem a fazer, e está a fazê-lo, é aprender com as vivências do seu pai e ser sensível à opinião pública”, diz o académico hispano-britânico.
O distanciamento entre os dois monarcas não é, porém, apenas nas ações — é também físico. Naquele que está a ser um dos verões mais difíceis para a Casa Real de Espanha, a ausência de Juan Carlos das férias da família real tem franzido alguns sobrolhos. A justificação foi dada pelo próprio Felipe VI, que disse que o pai “está muito chateado, porque tinha muita vontade de vir”, mas que os médicos lhe recomendaram repouso.
Porém, àquela paz aparente, antecediam a notícia do cancelamento da presença de Juan Carlos da Copa Del Rey de regatas, competição à qual o rei emérito não ia desde 2009 e para a qual se sabia que se estava a preparar nos últimos tempos. Segundo o El Español, com o surgimento do caso Corinna, Juan Carlos foi levado a cancelar a sua presença naquele evento, onde Felipe VI estará presente.
Tudo porque, no Palácio de Zarzuela, se estimava que era melhor não aparecerem os dois juntos. Juan Carlos terá recebido mal esta ideia. Segundo uma fonte do palácio real citada pelo El Español, quando soube que teria de cancelar a sua presença naquela competição, Juan Carlos “saiu do seu gabinete com uma neura das grandes”. “Deixou claro a toda a gente que viu pelo caminho que ia competir em Palma de Maiorca e que, se o seu filho não quisesse ser visto com ele, que não fosse”, contou a mesma fonte.
Episódios e quezílias à parte, Charles Powell sublinha a importância de dar resposta às perguntas que o caso Corinna levantou. “Se for demonstrado que Juan Carlos agiu de forma pouco ética ou até ilegal, será projetada uma sombra sobre o conjunto da monarquia, cuja credibilidade ficaria afetada aos olhos de muita gente”, adverte. “É necessário saber se o rei Juan Carlos utilizou estas pessoas como testa-de-ferro para meter dinheiro fora de Espanha e também qual é a origem desse dinheiro.”
Para lá da justiça e do seu ritmo obrigatoriamente mais lento, o académico da Universidade CEU San Pablo lança também alguns alertas quanto à utilização política que pode ser feita deste caso.
“A esquerda mais radical e o separatismo catalão querem debilitar a instituição em si. Por um lado, os populistas de esquerda sabem que Juan Carlos é um dos fundadores do que eles dizem ser o regime de 1978. Por outro, os separatistas catalães partilham esse interesse porque olham para a monarquia como um garante da integridade territorial de Espanha”, explica Charles Powell. “Há uma convergência para debilitar a instituição em si. E pensam que, atacando o pai, atingem o filho.”