[este é um texto original de 19 de novembro de 2022, republicado a propósito da morte de Fausto Bordalo Dias, aos 75 anos]
Nos tempos em que, para quem queria acompanhar as novidades musicais, pouco mais havia que o (então jornal, agora revista) Blitz, era comum que nos balanços de final de ano surgissem duas listas: a dos discos do ano e a dos discos do ano portugueses. Anos mais tarde, quando todos os jornais já tinham suplementos culturais e os levavam a sério (mesmo sendo sempre a secção com menos orçamento), esse tipo de discussão ainda existia – e a razão era que a maior parte das pessoas que votavam nas listas não apreciavam assim tanto como diziam os discos portugueses.
Em parte isso devia-se a que uma boa parte da produção portuguesa era uma espécie de imitação do que quer que estivesse na moda lá fora – na era do grunge tínhamos bandas a rodar o manípulo da distorção e a cantar num inglês mal amanhado uma angústia existencial que haviam tomado de empréstimo para combinar com as calças rasgadas; o nosso hip-hop, por melhor que fosse, não tinha o glamour e a capacidade de criar figuras míticas que o hip-hop americano tinha.
Estas são as dores naturais de crescimento de um país que esteve demasiados anos fechado ao exterior, subjugado a uma ditadura – e as ditaduras têm como primeiro condão suprimir a imaginação, obrigar-nos a agir apenas de acordo com regras pré-determinadas. Não havíamos tido acesso à revolução do rock, as modas pop estrangeiras passaram ao lado da população – estávamos a aprender a falar a linguagem musical universal, fosse qual o fosse o dialeto da moda.
Lembro-me de um ano em que, no jornal em que trabalhava, se decidiu que haver duas listas era ser condescendente para os músicos portugueses: se estes queriam crescer, tinham de ser comparados com a produção musical estrangeira.
Fausto Bordalo Dias nunca teve este problema: seja qual for o disco que Fausto edite, é quase certo que acaba nas listas de final de ano, portuguesas, ibéricas, europeias, com influência árabe – Fausto é tão bom quanto isso, Fausto é tão bom que quase podemos arriscar que, tirando Zeca, nunca ninguém fez tanto pela música portuguesa, recuperou géneros nacionais (modinhas, corridinhos, todas as estirpes do nosso folclore), combinou com ritmos africanos e, pelo meio, ainda foi inspirar-se no norte de África e na Índia.
É esta a consequência de termos sido um império: espalhámos sangue, mas as fontes culturais a que podemos ir beber tornaram-se imensas. E ninguém pensou tanto sobre o que é isso de ser um império, a tragédia de quem ia naquelas barcos a mando do Rei, de quem é apenas um corpo com uma função a cumprir, de quem morre de gangrena ou mata para não morrer, ninguém foi capaz de fazer uma Odisseia em música como a que Fausto criou em Por Este Rio Acima que, muito francamente e sem um pingo de nacionalismo, é dos melhores discos do século XX em qualquer parte do mundo.
O que torna os concertos que celebram este álbum (sábado e domingo, 19 e 20 de novembro, na Aula Magna, em Lisboa) ocasiões muito mais do que especiais, muito mais que simples celebrações dos 40 anos de Por Este Rio Acima, muito mais do que nostalgia: ouvimos Por Este Rio Acima hoje e é quase chocante o quão atual é, lírica e musicalmente – sim, os géneros que servem de base à genial caldeirada ali cozida são antigos, mas o uso que se lhe dá, o constante enxerto de materiais incompatíveis até que alquimicamente surja uma substância nova, isso é de uma contemporaneidade absoluta.
Mas não é só isso: ouvimos Por Este Rio Acima e notamos a influência que o disco exerce sobre as gerações subsequentes: não haveria Diabo na Cruz ou B Fachada ou Luís Severo sem que estes tivessem submergido nas águas fundas, de correntes complexas, que Fausto desenhou na pauta. É, simplesmente, um disco de imaginação prodigiosa, implacável para com a nossa História, que não procura glorificar a nação mesmo que narre o que foi supostamente o maior feito desta, e nunca cessa de surpreender nas soluções musicais que encontra, sem um momento que não seja brilhante e com aquela voz redonda, roliça, de veludo, que os genes ofereceram a Fausto Bordalo Dias.
Peguem num bloco de notas, escolham uma canção ao calhas e vão apontando tudo o que está a acontecer – e no fim, pasmem: o que quer que tenha acontecido ali é produto de um génio. Exemplificamos com “Como um Sonho Acordado”, uma das eternas favoritas do público: começa com uma simples melodia secundada por cordas cinemáticas que insinuam tensão, entra a voz de Fausto, coros, e note-se bem o que se canta:
“O medo ronda-me os sentidos
Por abaixo da minha pele
(…)
Ele penetra-me nos ossos
Ao derramar-se sedento
Nas entranhas sinuosas
Entre as vísceras mordendo
Salta e espalha-se no ar
Vai e volta
Delirante
Tão delirante”
Há sopros a cirandar, cordas, um sintetizador com melodia africana, o tom alteia-se, os coros entram, Fausto canta cada vez mais sílabas por compasso e de repente a pele arrepia, mas Fausto, sábio, por enquanto opta por trazer de novo ao chão; a canção como que recomeça e chegamos de novo às ondas de muitos metros, tudo a subir, o sangue a ferver rapidíssimo pelas veias fora, agora há sopros, as percussões são punidas com violência, isto agora vai subir, está a subir:
“Tens medo dos vivos
E dos mortos decepados
Pelos pés e pelas mãos
E p’lo pescoço e pelos peitos
Até ao fio do lombo
Como te tremem as carnes
Fernão Mendes”
E só queremos que não acabe nunca.
Este é um extraordinário exemplo do talento de Fausto: narra os Descobrimentos (ou Achamento, como agora alguns propõem), mas opta por observá-lo do ponto de vista da mais primária emoção humana: o medo e toda a subsequente parafernália de projeção infernal com que o cérebro possuído pelo medo se artilha. E fá-lo controlando o ritmo, aumentando-o nos momentos certos (e consequentemente cada verso torna-se maior que o anterior), e arranjando cada momento de modo a criar um maremoto ou voltar a acalmar, num sem acabar de soluções admiráveis.
Em “A Voar Por Cima das Águas” estamos de regresso ao folclore tradicional português, com ferrinhos, cavaquinho, reco-reco – só a lista de instrumentos usados em Por Este Rio Acima é uma epopeia: há guitarra portuguesa em “Olha o Fado”, adufes e flautas em “Por Este Rio Acima” (a canção), viola braguesa, pianos, cordas, sopros, metais, e percussões de antanho (os bombos de Lavacolhos, paus do minho).
Maior do que essa lista só as letras – o que me recorda de uma história que um dos músicos que participou nas gravações do disco e subsequentes concertos ao vivo me contou: que nos ensaios, Fausto se enganava constantemente nas letras e não percebia porquê, já que as havia escrito e decorado e ensaiado. Até que alguém lhe fez uma pergunta retórica: “Já reparaste no tamanho das tuas letras?”
É difícil narrar uma epopeia marítima de todos os pontos de vista imaginários sem acabar a escrever muito – mas o que é interessante é que Fausto optou por fazê-lo em 1982, quando a música portuguesa se afastava do tradicional português e da canção de protesto. O próprio Fausto vinha a afastar-se da canção de protesto explícita e marcadamente 70s, pese embora possamos considerar que Por Este Rio Acima está tão pejado de questionamento da humanidade que poderia ser considerado canção de protesto (embora, a meu ver, isso seja errado porque isto já é outra coisa).
[ouça “Por Este Rio Acima” na íntegra através do Spotify:]
Por esses dias ainda não existiam os Pop Dell’Arte, mas já havia os Xutos, os Heróis do Mar, Variações, os Salada de Frutas, tudo gente que, mantendo alguma portugalidade, usava sobretudo géneros musicais estrangeiros. Ainda assim, Por Este Rio Acima foi um êxito de crítica e de vendas, pese embora tenha sido mal recebido pela juventude portuguesa que estava sedenta de estrangeiro. Essa juventude olhava para Por Este Rio Acima e só ouvia ali rancho e o rancho era coisa brega, do passado, da ditadura – para essa malta, tudo o que soasse português era pouco sofisticado, reacionário até.
Não podiam estar mais errados – reacionário é rejeitarmos o que somos, é tornarmo-nos uma imitação de feira do que outros produzem (e produzem melhor). Se Fausto tivesse hoje 30 anos, estaria provavelmente a usar samples de adufes e de ranchos e a misturar com tudo o que lhe desse na cabeça e a rappar por cima. Por Este Rio Acima não é reacionário, nem lírica nem musicalmente: é uma obra de imaginação gigante, um daqueles casos raros em que a megalomania do autor foi levada a bom porto, com cada melodia, cada arranjo, cada ritmo, cada instrumento escolhidos a dedo e aplicados da forma exata no momento certo, uma aventura musical que permanece sem igual.
Podemos ir aos concertos só para ver Fausto mais uma vez (talvez pela última vez), podemos ir por nostalgia ou para vivermos o que na época não pudemos viver (assistir a um concerto dedicado sobretudo a estas canções). Mas o que ali irá ser tocado continua a ser de hoje, continua a ser um farol da contemporaneidade.
Os génios até podem morrer, mas as suas obras continuam a brilhar como estrelinhas no céu. Por Este Rio Acima é uma constelação inteira.