Chama-se She Raps e é uma incubadora para a profissionalização de mulheres rappers que pretende ajudar a formar artistas femininas neste campo. Apoiada pelo programa Europa Criativa da União Europeia, chega este ano pela primeira vez a Portugal, onde encontrou como parceira a Skoola, academia de música urbana fundada há três anos em Lisboa.
A ideia passa por dar formação, prática e teórica, a 10 rappers portuguesas que foram selecionadas por um júri especializado após um período de candidaturas. Lady N, Lendária, Máry M, Maddie Five, Nitry, Sitah Fayah, Strada, T-Chikes, Tsuki e Vanessa Parish Crooks são as artistas que irão ter aulas neste mês de Julho e em Setembro para aperfeiçoarem a escrita, descobrirem técnicas para usar a voz, mergulharem no mundo da produção musical ou receberem ferramentas para muitas outras áreas, da comunicação à performance, passando pela contextualização social e histórica, a relação com editoras ou a formação de uma identidade artística.
Ao todo, a primeira edição da She Raps em Portugal recebeu quase 50 candidaturas de todo o país, assegura a fundadora da Skoola, Mariana Duarte Silva. O projeto teve início em França em 2021 e, após três edições com “algum sucesso”, foi alargado a nível europeu. Também a Croácia e a Bélgica estão a acolher agora edições inaugurais desta incubadora nos seus territórios.
“Sempre percebi que o que faltava eram mais oportunidades de formação para mulheres. E tenho vindo a constatá-lo desde que iniciámos este programa”, explica ao Observador Mariana Duarte Silva, que trabalha há vários anos no setor cultural e que tem vindo a promover o trabalho feito por mulheres nesta área. “Quando apelei às candidaturas, recebi muitas respostas e falei com muitas potenciais candidatas que não se candidataram porque simplesmente são mães solteiras, não têm onde deixar a criança, não podem dispensar o trabalho das 9 às 5 para fazerem a formação, ou não podem viajar… São constrangimentos que os homens facilmente ultrapassam, na maioria; mas muitas mulheres não conseguem ultrapassar estas barreiras. Por isso é que são necessários mais destes programas, para que mais pessoas em diferentes fases da vida se possam ir candidatando.”
Após o período de formação, serão escolhidas três finalistas nacionais para ingressar na etapa internacional do programa, em que as finalistas de cada país se juntam para gravar uma faixa em conjunto, durante o ano de 2025, e fazer uma digressão de quatro concertos pela Europa, o que inclui uma atuação no festival Les Ardentes, em Liège, na Bélgica.
Embora a She Raps em Portugal esteja apenas no início, Mariana Duarte Silva encara-o como um projeto a longo prazo, que nem tem de ficar apenas pelos limites da incubadora.
“Acho que não pode ser um programa pontual que começa agora, acaba no verão do próximo ano e depois não se ouve falar mais dele ou não se faz mais nada. Há muito trabalho a fazer, sejam próximas edições, seja acompanhar as finalistas que ficam, eventualmente acompanhar as que ficaram de fora dessa primeira seleção mas que querem e podem e têm todo o direito a querer fazer mais formação… Todas as pessoas que não forem selecionadas já começaram ou estão no início de uma carreira e é minha intenção não as deixar completamente de fora e abrir-lhes a porta. Há uma Skoola com workshops, com um estúdio, computadores, um palco, com turmas abertas… Estamos aqui para ajudar e perceber como as podemos acompanhar. Porque só com continuidade é que conseguimos ver impacto e há todo um trabalho à volta a ser feito. Contactar promotores, agentes e mostrar-lhes que há mais mulheres a fazer isto e que também precisam de mais palco. É preciso ir trabalhando a mudança das mentalidades.”
A propósito da primeira edição do She Raps, o Observador tentou traçar um retrato da experiência feminina no rap em Portugal, entrevistando protagonistas de diferentes gerações e contextos sobre os desafios e obstáculos que enfrentaram ao longo dos seus percursos e que, em muitos casos, continuam a enfrentar.
Uma cultura que também sempre foi feita por mulheres
É indiscutível que sempre houve mais homens no rap em Portugal — uma realidade que espelha o que acontece no país berço do hip hop, os Estados Unidos da América, e em muitos outros por onde esta cultura se disseminou ao longo das décadas. Mas sempre houve protagonistas mulheres, desde os primórdios do rap feito por cá. Nos convívios de rua do Miratejo, bairro da Margem Sul que ficou sempre marcado como um dos locais onde o hip hop começou a borbulhar em Portugal, uma das pessoas que rimavam nas rodas de improviso no início dos anos 90 era Tucha. Num dos primeiros coletivos do Grande Porto, os Reunião das Raças, que mais tarde dariam origem aos Matozoo, havia uma rapper que dava pelo nome de Fora de Horas.
As primeiras mulheres a gravar em disco terão sido as Divine, grupo inteiramente feminino formado por ZJ, Big Mama, Miss Slowly, Shorty, Sandra, Dana Dane, Breakdancer e Da Bomb. Oriundas da Margem Sul, levantavam bem alto a bandeira do rap feito por mulheres em faixas como Nigga Senta, que nunca ficaram registadas para a posteridade e só foram apresentadas ao vivo. Porém, algumas das MCs imortalizaram as suas rimas nos discos de Black Company, onde participaram como convidadas, e na mixtape Cosa Nostra, de DJ Cruzfader. Na mesma altura, Yen Sung, uma das primeiras DJs do hip hop em Portugal, integrava a formação dos Da Weasel.
Foi em meados da década de 90 que duas duplas de amigas da Grande Lisboa se conheceram. Jeremy e Jumping foram apresentadas por uma amiga a Sweetalk e X-Sista, à qual depois se juntaria um quinto elemento chamado Junior. Unidas, eram as Djamal, e iriam lançar no início de 1997 o primeiro álbum de rap feito por mulheres em Portugal, Abram Espaço.
“Bastou sabermos que havia outras raparigas a fazerem o mesmo que nós, que na altura era uma coisa rara, e só isso serviu para nos conhecermos. Foi o mote que deu origem à nossa ligação e começámos logo a andar juntas. Éramos adolescentes”, recorda Jeremy.
“Era uma novidade para todos. Mas havia uma discriminação positiva condescendente por sermos mulheres. Não éramos levadas a sério. Por isso, muitas vezes éramos aceites, mas de forma condescendente. ‘Está bem, estamos todos aqui, fazemos a mesma coisa, mas vocês não têm credibilidade, por mais que possam dizer coisas que são pertinentes e até com mais força do que nós, vamos censurar. Até porque nós, no fundo, não queremos que isso aconteça, porque se não vamos sentir-nos minimizados’. É algo que acontece inconscientemente porque vivemos numa sociedade machista. É intrínseco, as pessoas nem pensam sobre isso, simplesmente fazem-no, é mais forte do que eles. Até as pessoas saberem que o praticam, não sabem. Apercebemo-nos logo e, entre nós, gozávamos com os homens porque eles acabavam por ser ridículos e previsíveis.”
Por outro lado, quando assinaram um contrato com a multinacional BMG para gravarem e editarem o disco, tiveram de lidar com as condicionantes da indústria da música. As Djamal tinham trabalhado com produtores hip hop como D-Mars e Didi, mas a editora impôs que fizessem o álbum com o músico de jazz Cláudio Souto, teclista dos Bandemónio, banda que acompanhava Pedro Abrunhosa.
“E havia uma tentativa de explorar a nossa imagem e não tanto a música que fazíamos. Até porque havia sempre a tentativa de aproximar o rap do pop e retirar a parte mais interventiva, para que se tornasse algo mais soft e mainstream. ‘Estão aqui umas raparigas, são todas muito giras, vamos aproveitar isso e talvez consigamos criar um grupo que através da imagem, e pelo facto de serem mulheres, talvez consigamos lucrar aqui alguma coisa…’ Ao início, não sentimos muito isso porque fomos muito diretas em relação ao que estávamos dispostas ou não a fazer, e havia muito cuidado em manter as nossas condições. Mas sabemos que, a longo prazo, era esse o objetivo. ‘Vamos dar-lhes algum espaço, conquistá-las, fazê-las querer isto e a partir daí mudar-lhes um pouco a mentalidade’. Era isso que estava a acontecer.”
Cerca de um ano após o lançamento do disco, depois de vários concertos e de alguma atenção mediática, as Djamal separam-se em divergência com a editora. Ainda assim, deixaram uma semente importante. Na Linha de Sintra, uma jovem chamada Telma Tvon colava na parede do quarto um poster das Djamal. Influenciada pelo coletivo mas também por amigos locais, como o grupo feminino de soul e R&B Cross the Breeds, que também incluía uma rapper, começou a dar os primeiros passos na música. Uniu-se a LG e a Lady e formaram as Backwordz, às quais depois se juntaria Zau. Sem nunca gravarem qualquer tema, foi ao vivo que o seu percurso se materializou, encontrando diversos obstáculos pelo caminho.
“Quando estávamos na escola com os nossos amigos, não tínhamos noção do quão o meio hip hop era masculino. Tu só tinhas acesso aos amigos à tua volta que rimavam e com eles era sempre tudo na boa, éramos literalmente one of the guys. Mas a posteriori havia comentários, aquelas coisas que não são sobre ti mas são sobre outras mulheres”, recorda Telma Tvon.
“Só percebemos que não éramos bem-vindas quando começámos a dar concertos fora da Linha de Sintra. Começas a ouvir aquelas coisas, algumas das quais pretendem ser elogios, ‘vocês até são fixes’, ‘não estava à espera, pensei que isto ia ser muito mau’, ‘não têm aquelas vozes esganiçadas, até parecem homens a rimar’… Isto parece um elogio, mas não é. E depois ainda havia: ‘isto aqui não é para vocês, porque é que não cantam R&B? Isso seria mais a vossa praia’.”
Telma Tvon diz que esta mentalidade fez com que sentisse a necessidade de se adaptar ao meio. “Como sabíamos que, para que nos ouvissem e respeitassem, era necessária uma postura agressiva, além das letras… Por exemplo, não me atrevia a ir de saia para um concerto. Tinha que estar como eles. Era a ideia de ‘se eu for assim, ninguém se mete comigo’. Andávamos assim por proteção e também por identificação, porque se estávamos naquele meio identificávamo-nos com muita coisa da cultura, com aquelas roupas… Mas o engraçado é que depois também éramos criticadas por isso. ‘São muito masculinas, estão aqui no meio mas não precisam de ser iguais a nós’. Decidam-se! Se formos como nós somos, também não é suposto estarmos aqui no vosso meio, porque isto não é para pessoas frágeis… Ou eras muito soft ou muito hard, ou estavas a tentar de mais ou de menos. Por exemplo, muitas pessoas diziam que a Dama Bete tinha voz de menina. E muitas diziam que eu tinha voz de rapaz. Então nem uma coisa nem outra era boa… A mim diziam-me logo que era um homem ou lésbica. Se tivesses uma voz mais sensível, é porque não irias aguentar.”
Este ambiente acabou por afastar muitas mulheres da cultura hip hop, diz-nos. “Havia muitas miúdas que no início estavam muito interessadas em ir aos concertos. Mas mediante esse ambiente de tanta crítica à existência delas, aos poucos foram-se retirando. Não sabiam se era um sítio para elas, sentiam-se constantemente a ser avaliadas. Ou porque eram groupies, ou porque eram bitches, ou porque eram sapatonas… E se houve uma altura em que já estávamos um pouco mais confortáveis porque olhávamos para o público e víamos caras femininas, isso deixou de acontecer, porque elas deixaram de se sentir bem ali. E muitas depois não voltavam.”
As Backwordz terminaram quando cada uma teve de seguir o seu caminho. “Torna-se mais difícil para uma mulher à medida que vai sendo mãe, quando se junta com alguém, com o papel da mulher em casa… Isso aconteceu no meu grupo. A LG teve de emigrar quando foi mãe, porque ela aqui não se estava a conseguir sustentar e à família. E acabou por quebrar esse vínculo que tinha com a cultura hip hop, porque emigrou e foi trabalhar. Aliás, todas emigraram menos eu.”
Depois, Telma Tvon formou as Lweji com Geny, rapper e cantora de R&B e soul. Lançaram em 2004 o álbum Finalmente, no qual abordam questões relacionadas com a opressão contra as mulheres, nomeadamente a violência doméstica e o aborto. O nome da dupla carregava um significado importante. Lweji A’Nkonde é o nome de uma rainha do Império Lunda — que ocupou parte do território que hoje pertence a Angola —, que teve de lutar para se impor num mundo somente liderado por homens. A analogia com o movimento hip hop (e a sociedade portuguesa no geral) estava feita.
“Muitas pessoas diziam-me: ‘já que tens um grupo com a Geny, porque não aprendes a cantar com ela? Se calhar até se poderiam tornar num grupo de R&B’. Era mais interessante, para muita gente, que fôssemos um grupo de R&B e não um grupo de rap. Já que são mulheres, vamos suavizar ao máximo a vossa música. Mesmo na questão das temáticas, havia pessoas que diziam ‘ouvi a vossa música, nunca pensei que fossem tão duras, pensei que era uma coisa mais leve, a falar de amor’. Achavam que seria mais isso e menos músicas a falar sobre a prostituição, o aborto ou as questões que nos inquietavam, com uma postura bastante dura.”
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Pelo meio, Telma Tvon agiu enquanto curadora numa importante mixtape de DJ Cruzfader, RAParigas na Voz da Soul, lançada em 2001, e que incluía participações de inúmeras rappers da Grande Lisboa, de Shiva (dos Nexo) a Kaia (dos Atóxikus), passando por Kross, Angie ou Melanie. “Foi um projeto bonito e interessante. Muitas das mulheres que participaram, na altura falaram comigo e com o Cruz com vontade de continuar, só que depois realmente não aconteceu. Acho que a mixtape não teve grande saída, mas para nós foi muito importante e até me lembro de que muitas mulheres vieram perguntar-me se não iria haver uma segunda mixtape, porque também estavam interessadas em participar.”
O hip hop como um “boy’s club”
No Porto, no final dos anos 90, Capicua iniciava-se no graffiti e, depois, no rap. Começou com a companheira de armas M7, que depois se tornaria mais conhecida do público em geral enquanto Beatriz Gosta, mas não conhecia mais nenhuma mulher naquele mundo. “Íamos ao Comix, o bar com as primeiras festas de hip hop no Porto, e as mulheres eram uma ultra minoria. Dava para contar pelos dedos de uma mão. Se o hip hop era uma minoria enquanto tribo urbana, era uma coisa muito alternativa, uma mulher do hip hop então era mesmo raro”, conta a MC.
Por um lado, sentia-se confortável no seu núcleo próximo mais ligado ao graffiti, onde os rapazes a tratavam “de igual para igual”. “Fora dali, era muito habitual haver uma estranheza. Não tanto uma hostilidade ou um preconceito declarado em relação a haver miúdas que fizessem graffiti ou, depois, rap, mas uma estranheza porque o meio do hip hop sempre foi um boy’s club. A maior parte dos rapazes do hip hop que eu conhecia na altura — e hoje arrisco-me a dizer que não é muito diferente — não tinham amigas. Eles vivem entre rapazes. E era raro até levarem a namorada para as festas. Essa estranheza era tão óbvia que se tornava um incómodo. Porque não sabiam muito bem como é que nos haviam de encaixar, éramos um corpo estranho ali.”
O preconceito foi-se tornando óbvio com o tempo. Presumiam que era “a namorada do writer” e não a artista em si. “No rap, ou punham-te numa liga à parte ou achavam que estavas ali porque vinhas com o teu namorado; se não tinhas, era porque querias arranjar um namorado dentro do meio”, conta a rapper, licenciada em Sociologia.
“Esse tipo de preconceito era fruto de algum machismo e também desse estranhamento, de não saberem lidar connosco de igual para igual e terem essa necessidade ou de subalternizar ou de justificar a nossa presença por intermédio de outro interesse que não o puro interesse na cultura hip hop. Isso desacreditava muito a nossa possibilidade de progressão. No meu caso, foi essencial não estar sozinha, ter amigas que também passavam por isso; ter encontrado alguns companheiros de hip hop que eram a exceção à regra; e também tinha uma certa consciência feminista que vinha de trás, e que me fez entender que eu não poderia ceder a esse tipo de dinâmica. Porque aí, sim, iria estar a cair na desvantagem. Então sempre foi óbvio que teria de resistir. Valeu-me a sororidade. E depois havia alguns mecanismos de defesa.”
Capicua refere-se à forma, por exemplo, como abordavam os concertos quando começaram a atuar no início dos anos 2000. “Quando definíamos o alinhamento, escolhíamos sempre a música mais hardcore para começar. Com o rap mais agressivo, a batida mais hardcore, precisamente para meter logo os pontos nos i’s, para calar logo aquele pessoal que estava de braços cruzados com um olhar irónico a pensar ‘vamos lá ver estas miúdas a espalharem-se’ ou ‘vamos lá ver as gajas’. Porque as mulheres, quando eram convidadas para músicas de rap, geralmente era para cantarem um refrão nas canções de amor, não para entrar com 16 barras num tema de egotrip e punchlines. Então também tínhamos esse statement: não viemos aqui cantar um refrão açucarado a falar de amor, viemos fazer rap e não nos colocamos numa liga à parte. Não só sentíamos que tínhamos mais a provar, como também sentíamos que não contavam connosco para a contabilidade. Era muito mais raro termos convites para concertos ou participações. Mesmo aquela cena que havia muito, de irmandade, de suporte recíproco, de mandar aquele shout-out para o amigo… Era como se não existíssemos. Claro que, a certa altura, a nossa presença tornou-se óbvia demais para sermos ignoradas, e fomos quebrando essa desconfiança. Mas até hoje essa dinâmica mantém-se.”
Também no início dos anos 2000, na Linha de Cascais, Dama Bete iniciava-se no rap por influência do irmão, que assinava como Macaco Simão, mas também muito inspirada após ver um concerto das Backwordz na sua escola. “Era a primeira vez que via mulheres a atuar”, recorda ao Observador. “Disse-lhes que também fazia umas coisas, já escrevia de forma muito amadora. E a Telma disse-me: ‘Ok, se souber de alguma coisa convidamos-te’. Algum tempo mais tarde, convidaram-me para dar um concerto numa festa do IPJ com o meu grupo Blacksystem.”
Dama Bete tinha formado este coletivo com a irmã Ana M, a sobrinha Grace, a amiga Marlene e com Blaya, que na altura vivia no Alentejo mas que tinha conhecido através do mIRC. Por volta da mesma altura, Dama Bete funda o fórum digital Hip Hop Ladies. “Sabia que existiam outras rappers mas não as conhecia, na altura não era fácil comunicar. Por exemplo, lembro-me da Shaheen nas mixtapes do Bomberjack. E pensei em fazer este site para criar uma espécie de comunidade.” Do fórum passou para os palcos, quando resolveu criar eventos Hip Hop Ladies, dando destaque às mulheres da cultura.
A rapper negociou com uma discoteca em Lisboa para fazer a primeira edição. “Disse ao dono que queria organizar um evento só de mulheres, de hip hop feminino. Ele gostou muito da ideia, decidimos fazer o evento, eles fizeram os flyers e nós quando os vimos ficámos assustadas. Era aquele tipo de flyer com uma mulher quase despida… E nós: não, isto é horrível! A festa encheu de uma forma que ele ficou mesmo espantado. ‘Bem, isto correu mesmo bem, temos de fazer mais’. Mas as pessoas foram com aquela ideia de que iria haver mulheres bonitas e tal em cima do palco… Nós ficámos dececionadas. Não era aquilo que queríamos, não gostámos. O comportamento dos homens a assistir ao nosso concerto foi horrível. Para nós foi uma experiência horrível. Estávamos a dançar e estavam a tentar tocar-nos. No final pediam-nos o número…”
Acabaram por fazer outros eventos e foram convidadas para organizar atuações fora de Lisboa, funcionando como uma espécie de curadoria artística dentro de um cartaz com outros rappers. “Uma vez fomos a uma discoteca em Braga. No final, o sítio que nos davam para dormirmos era um apartamento que tínhamos de dividir todos, homens e mulheres. Não houve problema, respeitaram-nos, mas nos camarins não nos sentimos confortáveis. Porque os rappers que foram na altura tinham raparigas a irem para lá, os engates, as drogas… Enquanto mulheres, não nos sentíamos nada confortáveis ali.”
Eventualmente, o Hip Hop Ladies sofreu uma crise existencial. Aquando da estreia de 50 Cent em Portugal, no Super Bock Super Rock de 2006, um texto publicado online pelo rapper Valete questionava, segundo Dama Bete, “como é que as mulheres poderiam gostar de ir a um concerto dele, tendo em conta as suas letras”. “Isso gerou uma certa polémica, e depois começou a debater-se, já no fórum Hip Hop Ladies, o papel do site em si e do feminismo no hip hop. Surgiram algumas vozes a questionar a existência do site, diziam que estava a criar separações, quando o hip hop deveria ser unido. Muitas mulheres passaram a não querer estar associadas ao site, não queriam ser chamadas de feministas, e o site começou a ter menos gente, apareciam menos nos eventos…” Foi quando Dama Bete se começou a focar definitivamente na sua carreira a solo.
Já tinha gravado uma maquete e atuado no festival Musidanças, onde havia sido considerada pela revista Blitz como Artista Revelação. Aos poucos, foi despertando o interesse da Universal, editora com que assinou contrato para se tornar na primeira mulher em Portugal a lançar um disco a solo, De Igual para Igual, editado em 2007. As coisas não se tornaram mais fáceis para si a partir desse momento.
“Já tinha várias daquelas músicas, que tocava nos concertos, e quando lancei o álbum houve muitas críticas. De que me tinha vendido, de que aquilo não é hip hop, e as pessoas pensam que a Universal me moldou e que me disse que eu deveria ser assim, quando não é verdade. Fiz algumas daquelas músicas para o álbum, mas as que tiveram mais visibilidade eu até já as tinha. E as pessoas também falaram muito da imagem, que mudei, mas já era um tipo de imagem de que eu também gostava. Quando lancei, senti que as pessoas do hip hop na verdade não conheciam bem o meu trabalho e foi um bocado injusto dizerem que mudei. O meu aspeto físico também… Até hoje sou magra e isso mostra uma certa fragilidade. Também tenho a voz fina. Ter aquela música Definição de Amor como um dos singles demonstra uma fragilidade que, naquela época, no hip hop… Hoje já há muitos rappers, até homens, que quase só falam de amor. Mas naquela altura tinha que ser uma cena de egotrip, muito masculinizada. Os mais puristas não me aceitaram.”
Isso refletiu-se, de forma particularmente dura, em palco, como quando atuou num evento na Casa da Música, no Porto, no mesmo dia que os Dealema e Nigga Poison. “Quando olhei para o cartaz, vi logo que estava mal feito. As pessoas viam-me mais como R&B do que propriamente como rap, então aqueles fãs mais ferrenhos dos Dealema começaram a atirar-me isqueiros no início do concerto. Depois disse que não queria estar lá, que não precisava de estar lá, e lá fiz o meu freestyle para provar alguma coisa. Com o tempo, ganhei esse receio. Olhava para o cartaz e pensava se fazia sentido ir, se era boa ideia ou não. E sobretudo naquela época as festas de hip hop eram um pouco mais agressivas.”
Embora tenha tido projeção na altura do lançamento do disco, a longo prazo acabou por não se conseguir profissionalizar à séria nem construir uma carreira sustentável. “Naquela altura, o hip hop não era mainstream. Havia poucos eventos. E furar era difícil. Não tive muitos concertos, que são aquilo que acabam por dar dinheiro a um músico. Quando o álbum saiu, tinha acabado de sair da faculdade, ainda vivia com a minha mãe, claro que o pouco dinheiro que fazia nos concertos ainda me permitia viver… Mas passado alguns anos, quando o hype acabou, deixei de ter concertos e com o tempo tive de pensar: que vou fazer da vida? Vou ter de arranjar outra coisa.”
“Houve muitos assédios”
Ao contrário dos exemplos já mencionados, Denise, de Vila Nova de Gaia, era mesmo cantora. Fã de soul, iniciou-se no mundo do hip hop alguns anos depois através do amigo Virtus, que a incentivou a experimentar gravar refrões. Acabou por se estrear dessa forma no movimento, passando depois a atuar como back vocal de rappers, até se emancipar e lançar um percurso a solo, com discos e concertos próprios. Foi aprendendo nos bastidores, assistindo ao que nomes como Keso, Virtus ou Minus faziam. Mas, mesmo estando integrada no circuito, e não podendo ser mal-vista enquanto rapper já que era uma cantora que muitas vezes até era complementar às rimas dos MCs, sentia uma desvalorização das mulheres naquele universo.
“Nunca me senti desafiada, mas acredito que muitas mulheres rappers o sentiram, e eu ouvia porque muitas vezes os homens não tinham filtros e até se esqueciam de que estava no meio deles”, conta Denise. “Diziam: ‘vamos lá ver aquela, ver o que ela vale, coitada’. Começavam logo com esta perspetiva. E ninguém tem nada a provar, cada um faz a sua cena. Muitas vezes ficavam a olhar para mim porque eu me sentia na obrigação de defender as minhas pares. Obviamente, nessa altura falava-se muito da Capicua e da M7. Diziam coisas como ‘ela escreve muito bem, mas como rapper não sei quê’, aquelas opiniões de pessoas que hoje em dia se calhar já nem têm qualquer tipo de presença. Nunca senti muito uma reprovação do meu canto porque eles também não tinham muito conhecimento sobre aquilo. Sabiam dizer se estava afinada ou não, mas não metiam o bedelho, porque não era algo que dominavam.”
Lançou a sua mixtape SoulNoise em 2012, que teve seguimento com Todavia e Episódios à Parte. Mas o seu primeiro EP, Angorá (2015), que lhe deu mais visibilidade, foi construído após um processo atribulado com um produtor.
“Gravei no estúdio de um produtor conhecido e o meu trabalho foi boicotado porque desisti de continuar a trabalhar com essa pessoa. Dizia que queria assim, e ele achava que deveria ser assado. Eu já tinha gravado umas quatro ou cinco músicas, ele tinha-me prometido um beat para o qual eu tinha escrito… Ele depois tirou-me o beat, eu disse-lhe que não iria continuar a gravar ali porque ele não estava a respeitar o que eu estava a dizer e a estética que queria para o meu trabalho, e ele era muito depreciativo nos comentários. Foi a única pessoa com quem me dei menos bem e que não respeitou o meu trabalho. Por ter o nome que tinha, achava que a opinião dele tinha de prevalecer sobre a minha. Mas a artista era eu, não ele, e eu estava a pagar para estar ali a fazer as minhas coisas. Depois, quando ele me enviou as pistas de voz e dos instrumentais, não me enviou tudo. Afirmou que enviou tudo, mas sabia perfeitamente que ele não tinha enviado tudo. Portanto, boicotou-me o trabalho e obrigou-me a regravar tudo noutro lugar. Isso nunca mais esqueço. Até desenvolvi um bocado uma relação de amor-ódio com esse EP, sinto que não ficou aquilo que poderia ter sido, por causa de toda essa história que mexeu com aquele trabalho.”
Denise passou por experiências ainda piores, numa altura em que, por “amor à camisola”, aceitava regularmente gravar refrões para músicas de rappers. “Ia para Braga ou para Fafe gravar um refrão com um rapaz que não conhecia de lado nenhum. E por vezes meti-me por caminhos estreitos, porque não conhecia a pessoa, ia para casa dela, depois não me estava a sentir confortável, e nós mulheres sofremos quando as pessoas confundem a simpatia com a entrega. Muitas vezes vi-me apertada nesse sentido, mas consegui sempre sair a bem com as pessoas e das situações menos confortáveis. Acredito que isto possa não acontecer com todas, acredito que já aconteceu com muitas no passado e agora se calhar a coisa já não acontece tanto, mas aconteceu comigo. Não foi ao ponto de me ver aflita e ter que fugir, mas as pessoas às vezes confundem a disponibilidade com acharem que eu queria mais qualquer coisa… Tive de manter sempre uma linha.”
Não é, naturalmente, história única. “Houve muitos assédios”, afirma Telma Tvon. “Muitas mulheres sentiram que poderiam ser usadas de uma forma que não lhes interessava de todo, por exemplo, por produtores. Elas estavam ali para fazer música, não para dormir com ninguém. Têm de ser as pessoas a contar as suas histórias, mas sei de algumas que mais tarde vieram ter comigo e disseram-me: ‘naquele ano desisti porque já não estava a aguentar mais, nunca mais gravava nada e tinha sempre de ir ao estúdio. Era só: ‘queres beber um copo? Porque é que não te sentas aqui?’ e não se materializava nada em termos de música’. Houve pessoas que desabafaram sobre isso comigo. Há pouco tempo estava a ler as notícias sobre o que se descobriu sobre o Puff Daddy e os abusos de mulheres… E disse às minhas amigas: se o pessoal fizesse um diagnóstico do movimento em Portugal acho que também iriam descobrir muita gente.”
Capicua comenta no mesmo sentido. “Conheço histórias de produtores que se ofereciam para gravar as miúdas só para darem em cima delas, isso também é um clássico que afastou muitas miúdas do rap. Hoje em dia espero que haja muito mais consciência de que não se pode fazer, porque é assédio, mas acontecia imenso.”
Tal como Telma Tvon e Dama Bete, Chong Kwong é uma das juradas do She Raps em Portugal. A rapper teve duas fases muito distintas de carreira: quando começou o seu percurso em La Dupla, grupo que formava com Guti o Espanhol, em 2003; e, mais de 15 anos depois, quando regressou ao ativo em nome próprio, num momento muito diferente do panorama do rap nacional.
“Claro que hoje em dia há muito mais rappers mulheres e ser rapper é cool. Na altura, se eras mulher, eras back vocal ou cantavas o refrão. Essa discriminação esteve sempre presente, eu sabia que tinha de me provar o dobro. Sabia que, à partida, se dissesse que era rapper, as pessoas iriam ficar surpreendidas… Quando relancei a minha carreira, tinha perfeita noção de que isso iria acontecer, mas já estava preparada. E há coisas que não mudaram. Continua a haver uma grande sexualização da mulher na indústria, principalmente da mulher negra. Mas o rap acaba por ser um reflexo do que se passa na sociedade”, descreve Chong Kwong ao Observador.
“O rap é um estilo muito masculino e é um bocado um balneário onde a menina não entra. Os padrões não são os mesmos. A necessidade que existe em dizermos ‘rapper feminina’… Logo aí denota que existe uma diferença. A própria atitude que está associada ao rap, o ego, a misoginia… Há uma série de coisas que dificultam para que uma mulher consiga ter, à partida, igualdade. Acho que não deves ser aclamada só porque és mulher, é pela tua qualidade, pelo que trazes para cima da mesa. Mas fica sempre aquele sabor meio amargo, tipo futebol feminino, como se te pusessem numa liga à parte. É uma camada invisível.”
Além disso, diz que é muito mais difícil para uma mulher ser artista e lidar com as condicionantes da indústria da música. “Quando és mulher, toda a gente tem algo a dizer sobre aquilo que fazes, sempre. As pessoas sentem-se na liberdade de opinar sobre se deves ir para a esquerda, para a direita, se os teus calções deveriam ser mais curtos, se deverias pôr uma peruca cor-de-rosa, se deverias cantar sobre isto ou aquilo… Tens que ter casca grossa e uma resiliência que não é falada na indústria. Porque há muitas coisas que se passam atrás de portas que não são agradáveis. Enquanto artista, tens que estabelecer o teu limite.”
A importância de haver referências
Enquanto as primeiras mulheres a lançarem um disco de rap em Portugal, as Djamal tornaram-se uma referência para muitas das artistas que se seguiram. “Para iniciarmos um percurso, precisamos sempre de nos identificar com algo. E se calhar havia muitas raparigas que estavam nessa fase, à espera de se identificarem, à espera de uma validação externa. Como viram que havia ali uma porta, talvez isso tenha dado um impulso para que elas também iniciassem o seu trajeto”, admite Jeremy.
Num mundo pré-Internet, o acesso à informação era muito mais difícil e Capicua cresceu sem qualquer referência feminina a nível nacional. Tinha como influências os Mind da Gap e os Dealema, os grandes grupos portuenses; ou, lá fora, nomes como Lauryn Hill e Erykah Badu.
“Não tinha a consciência do que a falta de referência me fez”, explica Capicua. “Quando em 2014 fui pela primeira vez ao Brasil, houve um concerto em que a host do festival era a Nega Gizza. É uma rapper brasileira old-school que já não está no ativo, e quando a apanhei no camarim, eu e a Eva Rapdiva começámos a fazer imensas perguntas. Passados 40 minutos de a estarmos a bombardear sobre a vida dela, ter filhos, fazer tours, e porque é que tinha deixado o rap… Foi aí que pensei: é a primeira vez que estou a falar com uma rapper mulher mais velha do que eu. Só em 2014 é que me apercebi disso. Nunca tinha conhecido nenhuma. Já tinha falado sobre rap com o Mundo, o Sam, o Xeg, o Valete, o Boss AC, o Chullage, os rappers portugueses mais velhos do que eu… Mas nunca tinha conhecido uma mulher rapper mais velha do que eu. Foi uma epifania. Percebi que estava mesmo a precisar daquela conversa, da oportunidade de perguntar como é que ela inventou isso de ser mãe e rapper e andar na estrada e porque é que ela desistiu e como é que ela tinha sentido o amadurecimento sendo mulher no rap e como é que tinha gerido esses confrontos… Porque o que observei sempre no hip hop tuga é que às vezes havia mulheres que começavam e até vinham com power e talento, mas depois iam desistindo. Essa coisa de ter uma carreira longa era algo que eu não sabia que era possível. Se fosse possível, eu teria de o inventar. Até hoje, não sei qual é o teto. As pessoas valorizam muito o pioneirismo, mas é mesmo solitário.”
Mesmo sem ter a plena noção do seu pioneirismo, enquanto a rapper portuguesa que foi mais longe no mundo da música, profissionalizando-se sobretudo a partir do álbum Sereia Louca (2014), Capicua foi sempre estendendo a mão às suas pares. Foi frequente vê-la a convidar outras rappers para partilharem consigo o palco, como quando no Super Bock Super Rock de 2016 levou uma brigada composta por M7, Telma Tvon, Blaya, Blink e W-Magic; ou quando levou M7, Eva Rapdiva e Tamin ao evento História do Hip Hop Tuga, na MEO Arena, que por coincidência calhou logo no Dia Internacional da Mulher, 8 de março, com Capicua a ser o único nome feminino do cartaz. E a história é feita de muitos outros nomes, das Red Chikas a Juana na Rap, de G Fema às A.M.O.R., de Muleca XIII a Russa, de Mynda Guevara a Tixa, passando por Cookie Jane, Amaura ou Caia Rose.
Há cerca de sete anos, apelou nas redes sociais a que jovens artistas a contactassem para combinarem encontros em Lisboa e no Porto. “Foi algo a que chamei o Conselho da Tribo, em que íamos tomar uns cafés. Elas faziam-me perguntas, tiravam dúvidas — desde direitos de autor a coisas sobre a vida e a experiência do rap — mas o meu objetivo não era estar lá como mentora de ninguém. Queria era que elas se conhecessem e isso foi fixe, porque se criou um grupo do WhatsApp, depois muitas ficaram amigas e começaram a ir a concertos juntas, pessoas que se conheceram nesse contexto e que depois colaboraram… Foi muito fixe e sinto que só consegui fazer este percurso mais longo porque tinha a M7 e a Eva e com quem partilhar, desabafar e com quem regar a planta da motivação. Nós já somos poucas, isso já é bastante solitário, e num contexto em que muitas das vezes não nos vemos representadas e que nos é hostil, se estivermos sozinhas é impossível. Essas redes são mesmo muito importantes, foi mais isso que quis estimular ali.”
Também Denise criou um projeto nesse sentido, para formar uma comunidade em torno das mulheres do rap em Portugal. O coletivo Hellas foi lançado em 2016. “Porque não convidar várias mulheres para fazerem parte de um coletivo onde pudéssemos criar um projeto musical coeso e abrangente, com várias estéticas musicais ligadas ao rap? Comecei por convidar várias mulheres, só nove ou dez é que aceitaram ao início e lançámos uma mixtape. Entretanto criou-se uma camaradagem, em parte passámos de colegas para amigas, e decidimos não deitar a toalha ao chão. Porque não fazermos de novo uma edição? Até porque entretanto tinham surgido outras artistas, o panorama tinha mudado um bocado, tínhamos mais conhecimento, se calhar tornava-se mais fácil. E lançámos uma compilação em 2022. A nossa missão sempre foi agregar, elevar-nos a todas, mostrar aquilo que fazemos e que temos um lugar aqui. E que somos tão capazes quanto o mundo masculino do rap. O caminho nem sempre é fácil, mas, se nós conseguimos, qualquer outra mulher também consegue. E era isso que queríamos fazer, ser um exemplo, mostrar que conseguimos fazer as coisas bem feitas e incentivar as nossas pares.”
Denise defende que a necessidade de um coletivo como este vê-se, por exemplo, quando se olha para os cartazes dos eventos ligados a esta área. “Onde estão as mulheres? Onde se valoriza o rap feito por mulheres? Muitas vezes não existe ou vê-se representado numa ou duas artistas. Queríamos mostrar que, mesmo que sejamos underground, também temos espaço, tocamos ao vivo, editamos as nossas edições físicas e temos as nossas músicas no digital. Porque, muitas vezes, as pessoas imaginam que isso é um monstro de sete cabeças. E no Hellas, nós as que estamos há mais tempo tentamos mostrar às que chegaram depois que tudo isto é possível fazer. Consegues pôr as tuas músicas no streaming, consegues criar a tua network, consegues enviar um email para um espaço e sugerires-te enquanto artista. Por mais que não te procurem, fazes tu esse caminho, porque é preciso começar por algum lado.”
Um panorama mais diverso e aberto tem contribuído para o progresso?
O percurso de Azia é singular. Antes de se iniciar no rap, caminho que resultaria na edição do seu álbum Causa Torpe (2022), a artista portuense tocou bateria em bandas muito diferentes, desde o rock ao jazz. E alerta que esta não é uma realidade circunscrita ao hip hop.
“Sempre tive a perceção de que a música — ou, pelo menos, todas as áreas em que estive — é um mundo de homens”, conta. “Fui sempre uma mulher sozinha em grupos de homens. Todas as bandas onde toquei era eu e não sei quantos homens. Sempre sofri bastante por ser mulher. Não em todas as situações, obviamente, mas já senti bastante esse peso. Sobretudo por sentir que me viam constantemente como uma mulher, no mau sentido. Não me viam de igual para igual, esperavam sempre que uma mulher tenha um tipo de personalidade onde eu não me enquadrava, se calhar ser mais afável ou ter um papel de mãezinha, de tentar minimizar as situações, de não criar conflitos… Sempre fui bastante frontal e a minha personalidade aliada ao facto de ser mulher sempre foi caso para algumas situações esquisitas. Sempre me senti um bocado discriminada, por menosprezarem as minhas opiniões, ou por terem dificuldade em aceitar em discussões que eu poderia ter razão. Sentia que havia muita dificuldade, por parte de muitos homens, de darem o braço a torcer. Houve tentativas mais subtis para que me objetificasse para ajudar a banda a ser projetada… Passei por várias coisas.”
Depois de todas estas experiências, na verdade encontrou no rap uma espécie de oásis, já que construiu um projeto autosuficiente e independente, onde é dona de si própria. “Sou eu que faço a música e sou eu que chamo as pessoas para tocarem comigo, por isso as circunstâncias inverteram-se. Não sinto o que senti no meu passado musical. A única coisa que sinto é que, às vezes, o pessoal parte do princípio de que não devo ser eu a fazer tudo… As pessoas imaginam sempre que há um homem por trás, ou a fazer os beats. Mas também estou um bocadinho à margem, é um trabalho que faço sozinha e muitas vezes vou tocar sozinha. Também não existe muito espaço para passar por muitas experiências negativas.”
Azia também sente, apesar disso, alguma “discriminação positiva”. “Não gosto de o sentir. É a condescendência, o pensar em ‘vamos ajudar as mulheres e fazer coisas só para as mulheres’. Se me perguntassem que tipo de ajuda ou de empurrão é de que eu precisava era fazerem-me convites em que eu estivesse inserida num grupo de músicos que não podem ser só mulheres. Não gostaria de ser convidada para um festival em que há uma tarde em que só tocam mulheres. Isso causa-me desconforto. O que faz falta é tratar as pessoas de forma igual, e sou mais apologista de não existirem separatismos para tentar que haja uma melhoria.”
Outra rapper recente dá pelo nome artístico de Br!sa. Acaba de lançar o seu disco de estreia, É FDD., e prepara-se para tocar no NOS Alive. Conta que sempre quis lançar um disco e que agora se pretende profissionalizar, mas que não sentiu propriamente entraves ao começar a fazer rap sendo mulher, o que talvez possa significar alguns progressos. “Nunca foi uma questão, nunca senti uma desvantagem. Se quero fazer, vou fazer. Nunca duvidei por ser mulher. Acho que é importante haver todos os géneros a rimar.”
Apesar disso, admite existir uma “objetificação no mundo da música no que toca à mulher”. “Há sempre aquele sentido de posse. Até porque há muitos homens no ramo e é sempre diferente a maneira como te vão tratar. Mas isso acontece na vida em geral.”
Após as Djamal, Jumping e Jeremy seguiram um trilho à parte como dupla, formando as JJ. No início dos anos 2000, fizeram parte do super-coletivo Máfia Suliana e também da crew Resistência, mas só em 2022 lançaram um disco, Os Prédios São Jazigos, com o nome JJ. 2000 Fantasmas.
“O machismo continua a haver sempre, mas essa nunca foi a nossa batalha. Claro que está sempre agregado ao que fazemos, porque somos mulheres, mas nós nunca quisemos definir que essa era a nossa luta”, sublinha Jeremy. “Não quero ficar bloqueada por esse obstáculo. Eles acabam por nos aceitar, porque tem que ser, deixam-se levar e acabam por perceber que nós temos a mesma visão que eles em muitas coisas. Acabamos por conquistar esse espaço que talvez para um homem seja mais fácil. Se fosse um grupo de homens a cantar as nossas rimas, teria tido muito mais força. Provavelmente tinha rebentado. E houve sempre aquela tentativa de nos deixar um bocadinho no escuro. Mas acabámos por ser aceites por muitos.”
Dama Bete acrescenta que hoje, com o hip hop a ter um público muito mais diversificado e uma palete de estéticas sonoras muito mais alargada, apesar de tudo tornou-se mais fácil para as mulheres rappers — até porque já não dependem tanto de outrem, uma vez que ao longo dos anos houve uma democratização dos meios e é muito mais fácil ter autonomia para gravar ou ter acesso a instrumentais. “O próprio hip hop está muito mais diverso. A Silly tem uma cena mais jazzy, a Nenny e a Cíntia têm nuances afro… Há uns anos, quem fazia isso já não era hip hop e apontava-se o dedo. As pessoas estão mais abertas e o meio está mais diverso.”
As muitas camadas entre uma mulher e a profissionalização no rap
Para Capicua, a sua profissionalização e trajetória de sucesso não mostra necessariamente que todas as rappers tenham as condições para seguirem esse caminho. “Por um lado, consegui provar que é possível. Mas provei-o nas minhas circunstâncias, e as pessoas às vezes têm vidas muito mais duras e difíceis. Não posso partir do meu caso particular de privilégio e de sorte para achar que as outras pessoas possam fazer igual. Aquilo de gostava é que não só continuassem a aparecer miúdas no rap, mas que elas se mantivessem, que sempre foi o mais difícil no rap tuga. É elas conseguirem construir uma carreira. Às vezes aparecem miúdas muito talentosas, lançam uma música, por vezes até um EP ou um disco, e depois não continuam, não se conseguem profissionalizar. Não conseguem manter o investimento numa coisa em que só gastam dinheiro e onde não têm nenhum reconhecimento nem retorno. E têm que trabalhar, depois muitas vezes entram em relações em que os companheiros dificultam imenso a sua dedicação à música, depois acabam por ter filhos e perdem a disponibilidade… Há muitas histórias de desistência em que não é por culpa das pessoas. Simplesmente há uma complexidade de fatores que é preciso para perseverar que de facto se torna muito difícil.”
Mesmo conseguindo viver da sua música, Capicua explica que se mantém uma certa hostilidade no cerne do movimento. “Quando saltei para um público mais abrangente, voltei a ser ignorada. Como tenho um público muito diverso e não é só o típico do hip hop, às vezes as pessoas já não contam comigo para a contabilidade da tribo. É quase como se me tivessem enviado uma carta de rescisão e eu não a tivesse aberto, porque é unilateral. E também tem muito a ver com eu não cumprir com o arquétipo daquilo que é um rapper. Poderia ser mulher e tentar cumprir com o estereótipo na mesma. Masculinizar-me, cumprir com uma certa estética, a forma de vestir e de falar, ou mesmo na minha própria música ou na iconografia associada, e não o faço, também sou um bocado alternativa… Mas há imensos rappers que também não o fazem e nunca foram postos em causa.”
Para Capicua, uma mulher conseguir conquistar hoje a generalidade do público do rap — muito masculino e juvenil — é um desafio hercúleo que envolve uma série de fatores. “O público da cultura hip hop e os próprios rappers vivem muito esse sentido de identificação. É óbvio que não se identificam comigo como se identificam com a maioria dos rappers da minha geração, porque sou mulher. É o que acontece. E também há a questão geracional. Nas mulheres é sempre muito mais desvantajoso… No sentido em que tens até rappers mais velhos do que eu que, de certa forma, mantêm o mesmo estilo de vida, por vezes até os mesmos temas. Parece que a idade não aconteceu. E nas mulheres é muito mais difícil performar um Peter Pan até aos 40, fazendo rap como se a idade não tivesse passado por nós. Porque obviamente que o público vai olhar para nós e dizer: quem é esta mulher com o dobro da minha idade a falar sobre…? Há um desfasamento e isso é mais óbvio quando olhamos para a forma como o tempo vai impactando umas carreiras e outras”, explica.
“O que faz crescer os rappers, até se tornarem mainstream, é um público muito masculino e juvenil. É o grande público do hip hop tuga. E acho que dificilmente esse público tem interesse em ouvir rap feito por mulheres, porque não se identifica. Mesmo que se identifique esteticamente, não se identifica com a persona da artista. Porque eles gostam de se rever nos rappers que admiram, na forma como atuam, uma espécie de masculinidade competitiva, viril, um bocado blasé, meio misteriosa, consoante as nuances que o arquétipo oferece. E uma mulher parece que não entra aí. Ou é alguém que consegue fazer um crossover para a música mais pop, e consegue um público abrangente que tem muito mais miúdas… Se for rap puro e duro é mais difícil, a não ser que seja uma miúda que consiga performar dentro do arquétipo. Cumprir com esse arquétipo masculino, viril, competitivo, com um rap de punchline ou mais materialista… Ou ela se aproxima do arquétipo ou vai dar erro.”
A maternidade, diz, é outro dos grandes desafios que entra aqui em jogo. “Do futebol às artes plásticas, do cinema à música, quantos homens que a gente admira e que são dignos de prestígio e de idolatria criam os seus filhos? Quase nenhum, é muito raro. A desvantagem é total. Como o rap é uma cultura muito juvenil que está muito associada a um estilo de vida, isso ainda é mais notório do que noutros géneros de música. Porque não dá para brincares ao Peter Pan quando és uma mãe com responsabilidades. O lifestyle de estar com os manos, fumar erva até às quatro da manhã no estúdio a ouvir beats, estar em tour, aquela cena eternamente juvenil… É um estilo de vida que é quase um cliché que está no fundo da maior parte dos temas, dos vídeos, mesmo dos materiais de promoção das redes sociais, dos rappers, em Portugal e não só, que é completamente incompatível com o estilo de vida de uma pessoa que tem filhos. Se falarmos de fado, eles não vendem o seu lifestyle. Então no rap isso é mais gritante. Porque, se mostrares os bastidores da vida real, os putos que ouvem rap não querem saber. Eles querem é manter aquela iconografia intacta.”
Além disso, aponta a “Maria Capaz”, as características que geralmente são valorizadas num rapper não se coadunam com a educação e socialização da maior parte das mulheres. “O espírito de liderança, ser competitivo, desbocado, afirmativo, ter a aura do ‘estou-me a cagar’… São tudo características altamente desaconselhadas na educação das mulheres. Não somos criadas para liderar nada, para sermos competitivas a não ser pela atenção masculina, não somos criadas para darmos a nossa opinião, muito menos para investir nos nossos talentos, para ter uma atitude de ‘I don’t give a fuck’… Estamos sempre a pedir desculpa, a tentar agradar, porque temos aquele condicionamento que nos foi imposto que temos quase de pedir licença para existir. E isso é tudo incompatível com aquilo que se valoriza num rapper ou que o público gosta na atitude de um rapper. Aliás, os rappers não mostram vulnerabilidade, é raríssimo. É algo que está muito próximo de um arquétipo de masculinidade que, roçando o tóxico ou sendo-o muitas vezes, é totalmente oposto daquilo que é a educação das mulheres. Portanto, não é só uma desvantagem em termos de construção de auto-estima, de disponibilidade para investirmos no nosso talento… Há muito mais para contrariar. Claro que, depois, quando chega a vida adulta, o fosso ainda fica mais evidente, porque tendo responsabilidades familiares nem sequer temos capacidade de competir com o tempo e dedicação que eles têm e com o estilo de vida que é a base de todo o imaginário da cultura hip hop. Sendo mulher, numa cultura que é hiper cruel para a auto-estima, porque temos que provar três vezes mais a nossa validade e temos que calar o síndrome de impostor que nos foi alimentado desde sempre, impõem-nos que temos de ser decorativas e toda uma lista de fatores para justificar a nossa presença no espaço público… Se conseguirmos calar todos esses diabinhos que nos atormentam para chegar ao ponto de mostrar o nosso trabalho, para termos essa confiança e arranjar forma de ter um beat, de gravar e de divulgar, e se depois as pessoas não valorizam ou até ridicularizam, é praticamente impossível teres auto-confiança suficiente para continuar. Essa é a história de décadas de hip hop tuga.”