1 Há 90 anos, em 1929, o famoso economista John Maynard Keynes fez uma curiosa conferência para os seus estudantes de Cambridge. Chamava-se As Possibilidades Económicas dos Nossos Netos e previa que, com uma valorização modesta do capital (dois por cento ao ano), em 100 anos o “problema económico” da Humanidade estaria resolvido pois a riqueza ter-se-ia multiplicado sete vezes e meia. Na verdade ainda não passaram 100 anos e a riqueza já se multiplicou por mais de 40 mas ainda não chegámos àquele momento em que, “pela primeira vez desde a sua criação, o Homem enfrentará o seu problema real e permanente: como usar a sua liberdade das preocupações económicas, como ocupar o lazer (…), para viver bem, com sabedoria e de forma agradável”.
Keynes enganou-se, já que acreditava que, obtido um certo grau de conforto económico, ou um determinado conjunto de bens materiais, o Homem se daria por satisfeito. Nessa época dourada seria, naturalmente, possível diminuir muito os ritmos e horários de trabalho e desfrutar dos momentos de lazer. Como sabemos isso não aconteceu – nem há sinais de que venha a acontecer.
O economista cometeu provavelmente o erro daqueles que já viviam desafogadamente – mesmo muito desafogadamente, pois fizera muito dinheiro na Bolsa de Londres. Não sei até que ponto o erro de Greta Thunberg não é parecido, já também ela cresceu num país rico e numa família para quem, digamos assim, o “problema económico” não se colocava.
Pondo o problema de outra maneira: quem já tem suficiente, ou mesmo mais do suficiente, tem muita dificuldade em avaliar o que os demais sonham, lutam, trabalham por alcançar. E o problema é que nenhum de nós sabe dizer quanto suficiente é suficiente. De resto, esta questão foi mesmo objecto de debate no livro How Much is Enough? The Love of Money, and the Case for the Good Life, onde o biógrafo de Keynes, Robert Skidelsky, e o seu filho, o filósofo Edward Skidelsky, tentaram propor um modo de vida com menos crescimento, mais tempos livres e mais igualdade. Sem grande sucesso.
2 É por isso que penso que há uma grande distância entre o que se proclama nas manifestações sobre a “emergência climática” e aquilo que realmente se está disponível para fazer. Quantos daqueles adolescentes, por exemplo, abdicariam do sonho de viajar até aos confins do mundo, naturalmente de avião, algo impensável na minha geração mas comum na geração deles? Quantos saberão que quando eu entrei na Universidade uma simples máquina de calcular que fazia as operações mais básicas custava vários meses de ordenado e que eles hoje têm no bolso telemóveis com mais poderes de computação do que as naves que levaram o homem à Lua? Quantos abdicarão do sofisticado calçado desportivo, fabricado nalgum país asiático, trocando-o por botas com solas de pneu reciclado?
Coloco estas questões porque o passar dos anos obrigam-me a olhar com algum cepticismo para as proclamações grandiloquentes que ouvimos por estes dias em que tantos líderes mundiais desfilam pela Conferência do Clima em Madrid. Pior: em que tantos deles procuram a redenção juntando-se a Greta Thunberg, de repente transformada numa espécie de sacerdotisa máxima de um culto inquestionável.
Uma coisa é o que se diz, outra o que se faz, outra ainda o que se pode realmente fazer.
3 Rebobinando, releio o que escrevi no Expresso a 16 de Maio de 1981 (sim, não estou enganado na data, foi mesmo há quase 40), num artigo intitulado “Secas e inundações, frio e calor: quem tem mão no tempo?” A minha conclusão de então era que “se o homem continuar a influir no clima, até a Europa se pode transformar num quase deserto e Lisboa numa nova Veneza, com a “baixa” inundada pelo oceano”.
Contudo, ao entrar nos detalhes, reparo que então os cientistas previam que a concentração de CO2 na atmosfera aumentasse 25% até ao final do século. Estamos em 2020 e ainda “só” aumentou 20%. É um detalhe, em 1981 a ciência climática dava os primeiros passos, nem sequer havia consenso sobre se haveria um aquecimento global ou um arrefecimento global. Mas um detalhe que, junto com muitos outros detalhes, me fez sempre seguir com cuidado os sucessivos relatórios. Há poucos dias, por exemplo, fui reler o primeiro relatório do IPPC, o painel de cientistas das Nações Unidas para as alterações climáticas, e verifiquei que felizmente nalgumas previsões eles enganaram-se. A temperatura não subiu tanto como tinham previsto. Mas atenção: isso aconteceu porque a subida da temperatura começou devagar, nos últimos anos acelerou muito.
Tantos anos – décadas – a seguir esta actualidade permitiram-me perceber três coisas. A primeira é que, apesar de alguns escândalos (como o “climategate”), a ciência climática é sólida e as alterações climáticas a que estamos a assistir são sobretudo derivadas da acção humana, e não de flutuações naturais do clima, que sempre as houve; a segunda, que a comunidade científica tende a destacar os cenários mais pessimistas, porventura porque sente a obrigação de advertir os decisores políticos para o pior que pode acontecer; a terceira, que onde os relatórios oficiais e científicos colocam um “pode acontecer”, a generalidade dos jornalistas traduz por “vai acontecer”. Ou seja, o que é hipotético transforma-se numa fatalidade. E o que é fatalidade passa então a servir para tudo – até já aconteceu justificarem-se terramotos com as alterações climáticas, mas adiante.
Mas atenção: a falibilidade dos modelos científicos pode funcionar para os dois lados. Há fenómenos graduais que têm consequências incrementais – mais 0,1 graus de temperatura fazem recuar os glaciares, há mais secas nalgumas regiões, mais chuvas noutras – mas podem ocorrer fenómenos disruptivos absolutamente imprevisíveis. Os cientistas começaram a falar mais deles recentemente, quando referiram os “tipping points”, eventos que podem desencadear alterações globais do clima em cascada. O mais assustador desses eventos, julgo eu, é uma súbita alteração das correntes marinhas, pois são elas as grandes estabilizadoras do clima à escala planetária. Pode isso acontecer? Está à beira de acontecer? Ou é só alarmismo? Não sei responder.
4 Vivemos, pois, tempos estranhos. Por um lado, tudo parece contribuir para que façamos como os londrinos durante o Blitz: os alarmes já dispararam, as sirenes estão todas a soar, temos de correr para os abrigos, com os adolescentes à frente. Basta pensar na sucessão de notícias que parecem disputar o título mais alarmista. Basta recordar os mais recentes artigos científicos, ou abaixo-assinados de cientistas, ou relatórios oficiais. Basta vermos como Greta Thunberg não sai das notícias, nem as “greves climáticas” das agendas. Basta notar como tantos políticos gostariam de também poder ir molhar as calças a uma ilha do Pacífico, como António Guterres, para mostrarem como estão comprometidos com a causa da “emergência climática”.
Contudo…
Contudo sabemos que mesmo na Europa que jura, rejura e trejura por esta causa as metas da descarbonização não estão a ser cumpridas. Tal como sabemos que mesmo nos países ricos e fartos não se pensa ter chegado ao “suficiente”. Tal como não ignoramos que uma coisa é os políticos de hoje falarem em “emissões zero” em 2050 e outra coisa bem diferente é isso estar perto de acontecer, até porque os políticos de hoje não estarão cá em 2050 (pelo menos os políticos que contam).
E é neste ponto que chegamos à verdade que ninguém quer assumir: neste momento não sabemos como contrariar as alterações climáticas e não sabemos se estamos a tempo de o descobrir. Poucos, ou nenhuns, falam com esta franqueza. Ou seja, poucos ou nenhuns falam toda a verdade.
5 O mundo em que vivemos é fruto da Revolução Industrial – a Revolução Industrial que liberta o CO2 que agora tanto nos preocupa. Mas ninguém imagina que possamos regressar ao mundo como ele era antes, um mundo onde a esmagadora maioria da população vivia toda a vida na extrema pobreza, morria literalmente de fome e a esperança de vida era inferior a 40 anos.
O milagre da Revolução Industrial foi a descoberta de formas de produção de energia baratas que permitiram ultrapassar as limitações da força humana e da tracção animal. O rápido desenvolvimento económico dependeu do baixo custo dessas formas de energia – primeiro o carvão, depois o petróleo. Mesmo sem desenvolvimento económico ainda dependemos delas: de acordo com os últimos dados disponíveis, 32% da energia que utilizamos no mundo vem do petróleo, 27% do carvão e 22% do gás. O que significa que mais de 80% vem de combustíveis fósseis. Do resto, quase metade também resulta da queima de outros combustíveis, 5% é energia nuclear e a fatia das renováveis é mínima: 2,5% para a energia hidroelétrica e 1,8% para as energias eólica e solar.
Portanto, quando falamos de “descarbonização” falamos de um problema que representa 90% do actual consumo de energia, 95% se não quisermos colocar na equação a energia nuclear. Mais: o mundo não parou, todos os anos o consumo de energia continua a aumentar. No ano passado não aumentou na Europa – mas aumentou no resto do mundo, porque o resto do mundo é muito menos desenvolvido.
Mas há mais problemas.
Quem assistiu à epopeia de Greta Thunberg tomou por certo conhecimento do drama da sua viagem para Madrid: se tomasse o comboio, o transporte “mais ecológico”, porque eléctrico, haveria um troço em que a locomotiva teria de ser substituída por uma – horror dos horrores – a diesel. Quem leu o que se escreveu por certo pensou que a electricidade é a “energia limpa”, mas se o pensa engana-se: em Portugal, que é um dos países que mais longe já foi na incorporação de energias renováveis, só pouco mais de metade da electricidade que produzimos é renovável, o resto ainda continua a ser produzido queimando combustíveis fósseis.
É possível acabar com esta dependência na electricidade? Teoricamente é, ou os planos do Governo dizem que é, mas para isso vamos ter de construir mais barragens, aceitar ainda mais ventoinhas a poluir nos nossos montes e acreditar que as centrais solares vão ser o sucesso que dizem que vão ser.
Mas agora reparem: Portugal, o tal país exemplar, devia estar a consumir cada vez mais electricidade e a depender cada vez menos das outras fontes de energia, mas não é isso que está a suceder. No ano passado, o peso da eletricidade no consumo de energia foi o mais baixo dos últimos cinco anos, apenas 26,2%.
6 Espera lá: mas falamos tanto de renováveis e elas só valem metade de 26,2% das nossas necessidades de energia? O nosso Governo está tão contente e, afinal, ainda temos tanto caminho para percorrer?
É isso mesmo. Falamos muito de electricidade, mas tendemos a esquecer tudo o resto. Em algumas áreas, como os transportes, a mobilidade elétrica pode ir, gradualmente, ganhando terreno aos combustíveis fósseis, mas será que algum dia isso acontecerá na indústria pesada?
Tomemos uma simples ventoinha, uma daquelas que vemos nas nossas cumeadas. Para a instalar é necessário construir pesadas sapatas de cimento. Algum dia, nas próximas décadas, se fabricará cimento, ou algum sucedâneo do cimento, sem queimar petróleo, gás ou carvão? E como se fabricará o aço necessário às torres dessas ventoinhas? Como se aquecerão os altos fornos das siderurgias?
Num artigo recente, a The Economist reconhecia que as centrais elétricas eram responsáveis por apenas 40% das emissões industriais de gases com efeito de estufa, e que lidar com elas era a parte mais fácil do problema. Mais fácil mas mesmo assim muito difícil de concretizar sem um milagre, já que no ano passado o consumo de electricidade à escala global aumentou 3,7%, o equivalente a metade de toda a capacidade de produção renovável instalada. A revista considerava muito difícil conseguir atingir os objectivos estabelecidos para 2030 sem recorrer à energia nuclear. De novo.
7 Nuclear outra vez? Desde Chernobyl que construir novas centrais é tema tabu. As dificuldades da Alemanha em cumprir as suas metas têm muito a ver com a decisão de fechar o seu parque de centrais nucleares. E com a excepção de alguns países (com destaque para a França e a China) a aposta nesta fonte de energia não é central na equação, pelo menos enquanto não se encontrar uma solução para o problema dos resíduos.
A não ser que…
A não ser que surjam novas tecnologias, como algumas que já estão a ser desenvolvidas, e que passam por centrais mais pequenas. Ou então que se consiga, por fim, dominar a tecnologia da fusão nuclear. Não falta quem esteja a trabalhar nela, e ela talvez fosse a “bala de prata” que tornaria tudo muito mais fácil. Só que acreditar em inovações que ainda não aconteceram não é a melhor das políticas.
Quer isto dizer que nos resta esperar? Não. Apesar de tudo há muita gente a trabalhar para conseguir resolver o problema do excesso de CO2, não apenas pelo lado da redução das emissões, mas pela captura do próprio CO2. Não é ficção científica. Desde fábricas que capturam esse gás e que já estão em testes na Suíça a bactérias que se alimentam de CO2 e que foram desenvolvidas por cientistas israelitas, há um caminho a ser percorrido.
Noutras áreas, como a emissão do ainda mais perigoso metano pelos ruminantes (ou seja, pelos bovinos cuja carne e leite tanto apreciamos), a simples adição de uma alga à sua dieta pode resolver o problema.
Mas este é o meu lado mais optimista, aquele que acredita que muita gente a pensar, a investigar e a inovar em todos os cantos deste planeta pode acabar por ser mais eficaz a produzir soluções do que protestos pedindo o impossível – isto é, pedindo mudanças que nem os próprios estariam preparados para aceitar, pois nem todos têm veleiros à disposição para cruzar o Atlântico, como Greta Thunberg, nem vivem num dos países mais ricos do mundo.
8 Eppur si muove! E no entanto ele move-se, terá desabafado Galileu depois do seu processo. E move-se mesmo. O mundo muda e por vezes muito mais depressa do que imaginamos.
Quem porventura já viu a terceira temporada da série The Crown terá bem presente dois episódios que têm por centro a indústria britânica do carvão – Aberfan, que retrata um terrível desastre numa mina em 1966, e Imbroglio, que tem como pano de fundo um a greve dos mineiros que colocou o Reino Unidos às escuras em 1973-74. E fica com a clara noção de que o país aí representado já não existe, nem a forma como ele usava a energia e o seu carvão – o mesmo carvão que lhe permitira liderar a Revolução Industrial dois séculos antes.
Recordo-me que nessa altura se previa a morte de todas as florestas europeias por causa das chuvas ácidas, um problema que desapareceu de um continente onde há hoje mais florestas e até mais vida selvagem. Tal como desapareceu o famoso “fog” de Londres, também magistralmente retratado num anterior episódio de The Crown, ainda com Churchill como primeiro-ministro.
O mundo nem sempre evolui para pior, para o apocalipse. Na verdade, quando ele fica realmente pior é quando os “cavaleiros do Apocalipse” tomam conta dele.
Ora, Greta Thunberg está a transformar-se numa nova encarnação desses messias salvadores que, no fim do dia, destroem tudo. A adolescente que antes só falava de clima e ambiente tem-se tornado mais agressiva e, no passado dia 29 de Novembro, publicou no Project Syndicate um artigo, com outras activistas, onde anunciavam um programa muito mais vasto: “A crise climática não é só sobre ambiente. É uma crise de direitos humanos, de justiça e de vontade política. Foi criada e alimentada pelos sistemas coloniais, racistas e patriarcais. Temos de os desmantelar a todos. Os nossos líderes políticos não estão mais à altura das suas responsabilidades”.
Isto não é um programa de uma adolescente ingénua e bem intencionada – é uma agenda revolucionária que nada tem de ambientalista e muito menos de humanista. Será que quem a vai escutar em Madrid tem coragem para lhe dizer isso mesmo?