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Recordar a infância é um exercício que nos traz à memória os finais de tarde de brincadeira com os amigos à porta de casa, no recreio da escola ou na quinta dos avós. A rua é sinónimo de liberdade, aventura e felicidade, mas as crianças têm vindo a ser cada vez mais afastadas deste meio que só lhes faz bem.
As vantagens de passar tempo ao ar livre refletem-se a todos os níveis do desenvolvimento, não só físico mas também cognitivo e emocional. A lidar de perto com crianças há mais de 20 anos, a psicomotricista Tatiana Perrone Dolores acentua estas mais-valias: “Com a brincadeira ao ar livre há uma estimulação sensorial direta, pois a criança está em contacto com a relva, com as pedrinhas do chão ou a areia da praia, integrando essa experiência através da pele. É importante crescer com a oportunidade de subir árvores e cair, rebolar no chão e lutar na brincadeira.”
Mas as oportunidades para que este contacto se dê são cada vez menores. As razões conhecem-se e passam pela insegurança das ruas ou inexistência de locais apropriados perto de casa.
Tatiana Perrone Dolores conhece de cor estes fatores, mas também observa “um aumento da cultura do não e do medo, que está a ser instalada na nossa sociedade. As crianças são impedidas de brincar por causa do receio que caiam e isso não é bom”.
Como consequência, constata que os mais novos estão a desaprender de brincar: “Já não sabem jogar em equipa. Percebo isso nas minhas aulas de dança criativa quando, no início, os convido a brincar livremente. Noto que não sabem brincar, porque não têm essa experiência. Os intervalos da escola são muito curtos e nem todos os pais estimulam as brincadeiras com os filhos ao ar livre nos fins de semana, por exemplo.”
Brincar ao faz-de-conta
Para a também professora do ensino básico, “as brincadeiras livres são fundamentais, pois é quando as crianças podem exercitar o faz-de-conta e a troca de papéis que aprendem a colocar-se no lugar do outro. “É nesses momentos que põem cá para fora as suas emoções e conflitos, aprendendo a gerir eles próprios as situações. Mas como estão a deixar de brincar, começam a reprimir essas emoções que nem sabem que estão lá dentro”, adverte.
Além de conterem emoções, reprimem também o movimento, com todas as consequências que isso acarreta. Tatiana Perrone Dolores explica que “todas as crianças, principalmente as mais pequenas, apresentam um pico de energia próprio do crescimento e têm de o libertar”. Ou seja, “têm uma hiperatividade que nem sempre é doença, na maioria dos casos é perfeitamente normal, aliás, todas as crianças são hiperativas por natureza e é ótimo que sejam.” E brincar ao ar livre ajuda na libertação dessa energia extra que concentram nestas idades.
Combater a rigidez imposta pelos tempos que vivemos é outra das vantagens que a professora encontra na brincadeira. Por essa razão, nas suas aulas de desenvolvimento infantil e juvenil usa técnicas como o teatro da espontaneidade, por exemplo. O objetivo, diz, “é estimular a criatividade livre da criança, porque hoje é tudo muito rígido. Mesmo quando são jogos ao ar livre, normalmente são jogos com estruturas muito marcadas e regras bem definidas, isto é, a criança não consegue estipular as suas próprias regras e é maravilhoso quando isso acontece”, reflete.
Ainda assim, reconhece os benefícios das regras. “Têm de existir para que haja ordem e para que a criança saiba até onde pode ir, reconhecendo os perigos”, afirma, lamentando o outro lado da moeda a que também se assiste atualmente, isto é, “crianças educadas sem qualquer regra ou limite”.
Falta de tempo
Um outro aspeto crucial que determina a redução das brincadeiras é a falta de tempo dos mais novos. Vários especialistas dedicados ao acompanhamento da infância têm vindo a alertar para o elevado número de horas que os mais novos passam na escola e nas diversas atividades extracurriculares sem que lhes sobre tempo para brincar ou estar com os amigos. Para Tatiana Perrone Dolores, esta situação que se vive “é um absurdo, uma verdadeira loucura, as pessoas não têm noção do que isso pode causar na sociedade futura.”
Da forma como a escola e as atividades das crianças estão organizadas, os mais pequenos acabam por estar muito centrados, sobretudo, em desenvolver aptidões de raciocínio e de competição, deixando de lado a parte emocional. “Se a pessoa não conseguir identificar as suas próprias emoções, não vai conseguir identificar a emoção do outro e isso pode dar origem a psicopatologias graves. Claro que uma situação familiar regular vai ajudar a que as crianças exteriorizem essas emoções, mas quando não têm isso em casa nem na escola e já apresentam uma predisposição, a situação pode complicar-se”, avisa.
Receita para crianças felizes
Para que as crianças cresçam felizes, Tatiana Perrone Dolores não tem dúvidas que parte importante da receita passa mesmo pela brincadeira. Se não puder ser ao ar livre, então que seja em casa, mas onde o faz-de-conta possa entrar.
A psicomotricista recomenda também o envolvimento dos pais nas diversões e de outras crianças: “Se não houver irmãos, convidem outros amigos lá para casa. O importante é que brinquem com pares.”
Na sua perspetiva, “as crianças um pouco mais reprimidas podem vir a ser deprimidas. E nós vemos isso por nós mesmos, quando começamos a reprimir as emoções”. Por isso, o ideal é mesmo que brinquemos a vida toda ou, pelo menos, no tempo em que é suposto fazê-lo: na infância.
10 razões para brincar na rua com os seus filhos
Sistema imunitário mais forte
Os imunoalergologistas acreditam que o grande aumento das doenças alérgicas entre os mais novos deve-se, entre outros fatores, às poucas atividades que praticam ao ar livre. Estima-se que passem cerca de 90% do seu tempo em ambientes fechados, em casa ou na escola.
Melhoria do humor
Numa pesquisa levada a cabo na Universidade de Bristol, Reino Unido, concluiu-se que as bactérias presentes na lama ajudam a ativar a serotonina, um neurotransmissor responsável pela regulação do humor, sono e apetite.
Crescimento saudável
Além dos anticorpos que são produzidos em maior quantidade quando há um contacto direto com a natureza, daí resultando uma maior resistência a algumas doenças, também a luz solar é necessária para o crescimento saudável, contribuindo para a produção de vitamina D.
Boas memórias
Partindo das recordações que 150 jovens adultos tinham das suas brincadeiras do tempo de criança, uma investigação da Universidade Ocidental de Washington, EUA, permitiu concluiu que mais de 75% recordavam sobretudo as atividades ao ar livre.
Maior concentração
Crianças e jovens que mantêm maior contacto com a natureza tendem a apresentar um melhor funcionamento cerebral e menos sintomas de hiperatividade e défice de atenção. Sabe-se também que quanto mais a criança se move nos primeiros anos de vida, maior é o estímulo cerebral. O processo ocorre sobretudo no cerebelo, região responsável pela organização espacial e equilíbrio. O desempenho na escola também melhora, havendo uma relação positiva entre o exercício físico e as brincadeiras coletivas com o rendimento escolar.
Visão melhorada
Se as crianças brincarem, pelo menos, 40 minutos por dia ao ar livre, estão a contribuir para conter a miopia. A pesquisa foi desenvolvida em 12 escolas chinesas e desenvolvida ao longo de três anos. As conclusões sugerem a necessidade de as crianças equilibrarem o tempo que dedicam a atividades realizadas mais de perto, em lugares fechados, nomeadamente em jogos no telemóvel, com atividades que usam a visão à distância.
Mais dinamismo
Proporcionar espaços abertos para que as crianças possam correr livremente torna-as mais ativas e com reservas de energia para realizar qualquer tarefa.
Criatividade estimulada
Encaminhar as crianças para o exterior sem brinquedos permite-lhes inventar as suas próprias brincadeiras, estimulando a imaginação. Quando estão num ambiente em que nem tudo é controlado, acabam por aprender a lidar com imprevistos e a ter de encontrar soluções.
Promoção da autonomia
Crianças que brincam ao ar livre com maior frequência têm tendência para ser mais independentes. Para que isso aconteça verdadeiramente é importante que os adultos se reservem ao papel de observadores e permitam que elas próprias resolvam as questões que forem surgindo.
Integração social
Brincar ao ar livre estimula a integração social mas é necessário que as crianças interajam realmente umas com as outras e desenvolvam atividades coletivas. Para tal, não devem levar os seus jogos eletrónicos quando vão brincar para a rua.
Este artigo foi desenvolvido ao abrigo da parceria entre o Observador e a SKIP.