À segunda série portuguesa na Netflix, depois de “Glória”, a “fasquia está elevada”. É esse o sentimento comum aos atores, produtores e autores de “Rabo de Peixe”, produzida pela Ukbar Filmes, escrita e criada por Augusto Fraga e realizada por Patrícia Sequeira, que se estreia no próximo dia 26 de maio, e que adapta livremente o caricato episódio que decorreu em 2001, quando cerca de 400 quilos de cocaína deram à costa na região norte da Ilha de São Miguel. O Observador falou com vários elementos da série para perceber que peso extra (ou vantagem) existe por este ser o segundo projeto a surgir totalmente em português na Netflix.
[o trailer de “Rabo de Peixe”:]
Se em “Glória” seguimos um thriller em plena guerra fria, em “Rabo de Peixe” acompanhamos um grupo de amigos tornado família que vê a vida virada do avesso depois de um pequena embarcação italiana dar à costa, carregada de cocaína. As diferenças são óbvias: mais ritmo, mais cor, mais ação. E mais humor. Esse está presente, do ambiente à banda sonora, no elenco (Salvador Martinha, por exemplo) ou nos diálogos: “Eu sou famoso aqui, não posso ser preso”. O criador — ou showrunner — Augusto Fraga, açoriano de Vila Franca, tentou a sorte no concurso de argumento da Netflix e acabou por ser um dos vencedores. Assim que soube da notícia, virou-se para os patrões da gigante norte-americana e disse: sim, sim, obrigado, mas eu não sou guionista. Nome com currículo na publicidade portuguesa, foi buscar, através de casting, outros nomes maiores, mas da escrita, entre os quais, João Tordo, que já deu um pé em séries como “Até Que A Vida Nos Separe”. A tal fasquia, que se queria elevada, ainda exigiu outro nome para a fotografia: André Szankowski. À partida, o selo de qualidade estava lá. Falta perceber mais à frente. Noutras conversas, Augusto Fraga tinha garantido que Portugal “nunca tinha visto uma série assim”. E o que é isso, afinal? “Não sei se disse bem isso, mas depois de conseguirmos ter uma writer’s room, o que queríamos era escrever algo que gostássemos de ver. Que nos divertisse. Escrever para o espectador e não como manifesto artístico pessoal. Estávamos preocupados em manter-nos ligados à série”, conta.
Essa ligação, porém, partia de um evento real. São muitos os que se lembram das notícias sobre aquele caricato evento — mas também fatídico, por ter resultado em mortes e intoxicações — em que grandes doses de droga foram parar a Rabo de Peixe. Augusto Fraga e a sua equipa estiveram durante oito meses a preparar os guiões. Resgataram o famoso rapper Sandro G como conselheiro, puxaram elementos açorianos das ilhas para a rodagem e pediram ao Tribunal de Ponta Delgada para consultar os processos desse evento polémico mas também traumático. Mal saíram as notícias sobre a nova série, começou a gerar-se um certo buzz crítico nas redes sociais de como a Netflix poderia estar a propagar o estigma de uma comunidade que sempre foi estigmatizada mediaticamente. Não só mas também por causa deste episódio. Contudo, José Condessa (Eduardo), o protagonista que quer levar o pai parcialmente cego para os Estados Unidos da América e fugir da vida sem futuro da ilha, tem outra perspetiva. “Vim de lá ontem. Têm orgulho em dizer que a série é Rabo de Peixe. Houve gente a abrir-nos a porta, a pôr-nos comida na mesa. Outros, de sorriso estampado, a comentar que as cenas de pesca tinham sido ensinadas por eles. Acho que estamos a contribuir para uma mudança de paradigma”, comenta ao Observador.
O ator que também estará em Cannes para participar na estreia da nova curta-metragem de Pedro Almodóvar na próxima semana, onde entra como versão jovem da personagem de Pedro Pascal, nunca tinha estado nos Açores. Nem em viagem nem em trabalhos. Nem sequer uma memória de infância. Mal soube que iria participar na série, decidiu fazer as malas e rumar para as ilhas. Jogou à bola na rua, foi à pesca. Sentiu o frio e o sal na pele. Por muitos processos em tribunais e notícias, era assim que iria encontrar o seu Eduardo. “Há uma ideia pré-concebida de que a população de Rabo de Peixe é triste e distante. Não. São gente com sonhos, com generosidade e com amor. De uma grande simplicidade e bem receber.”
Em relação ao preconceito ou às críticas, Augusto Fraga confessa-se surpreendido. A sua realidade foi, na infância, muito do que está espelhada na série. “Nunca imaginei que fosse esta a visão que as pessoas tinham de Rabo de Peixe, não era essa a minha experiência. A população de Rabo de Peixe abriu-nos as portas de casa. Essa realidade das redes sociais nada tinha a ver com o que estávamos a viver. As dúvidas, depois, acabaram por se diluir quando as pessoas perceberam a diferença entre documentário e ficção. E isto é ficção”, diz.
Essa realidade paralela em que a equipa viveu explica-se de forma simples: em Portugal, os atores e técnicos juntam-se num dia de rodagem e a seguir vão para casa. Em “Rabo de Peixe”, não. De dia ou de noite, estavam juntos. Kelly Baiiley, André Leitão, Rodrigo Tomás e Helena Caldeira tiveram muitas cenas juntos. A par de José Condessa, é neles a quem nos agarramos maior parte do tempo. Ora a tratar das doses de cocaína, ora nas noites loucas na ilha, fugas à polícia ou em momentos mais dramáticos com a família. Ou com padres e pianos que acabam a cometer pecados mortais (e mais não dizemos). Os quatro entram agora na rota e no mercado da ficção internacional, sem medos. O risco é inerente, mas a sua exigência para o que colocam no plateau também. E a de um público que não fala só em português também. Mas, provavelmente, se esse espírito de comunidade restrito não tivesse sido criado, o seu trabalho poderia ter contado uma série diferente. E poderia não ter passado a ideia de ter sido tão natural, segundo os próprios. Para isso, teve de haver espaço para dentro e fora do trabalho, se partilharem de frustrações, beber-se cervejas ao final do dia, ou promover galhofa nas rodagens. “Foi essencial para termos este link entre todos. Saíamos do trabalho e ninguém ia para casa. Foi um êxtase prolongado.”
Esse êxtase, quase até a um nível exagerado (se é propositado ou não teremos de perguntar aos autores numa outra conversa), é visível em toda a estrutura de cada episódio. Como se sabe, o êxtase, quer sob o efeito de psicotrópicos ou em estado normal, pode levar a quedas para o abismo. Os quatro actores, garantem, não se deixaram levar por essa hipótese. “Não houve deslumbramento. Acho que, se me colocar de fora, dá para ter orgulho no projecto. Há mais gente que vai poder ver o que somos capazes de fazer. Quando vi o ‘Glória’ pensei no mesmo”, diz Kelly Bailey. Helena Caldeira concorda e acrescenta que “a qualidade dos produtos audiovisuais portugueses não estão desligados do que se faz lá fora”. O que falta? O mesmo de sempre: mais dinheiro.
Não será o ponto mais relevante mas acaba por ser. O dinheiro. Pêpê Rapazote, um tio misterioso à americana que vem ajudar Eduardo a não ser cilindrado por italianos, tem sido um dos atores com mais mercado lá fora (“Narcos”, “Rainha do Sul” ou “Shameless”) e sabe muito bem o que isso significa. “Quando os produtores me perguntam: o que é que é fazer uma série com 100 milhões de euros? Eu respondo: é ter 100 milhões de euros. Aqui houve mais ovos para fazer omeletes. Nós, em Portugal, temos uma pequenez muito grande nesse sentido. Logo no guião, os autores estão habituados a cortar texto. Por isso é que fazemos coisas simples e simplórias porque não há dinheiro para mais.” O truque, conta o ator, será praticar a nobre arte do fingimento. Parecer que se tem mais orçamento. “É preciso ter a mente aberta sem preconceitos. Pegar um orçamento por episódio de 650 mil euros para que tenha um look de 1,5 milhões de euros. E aí não nos estamos a diminuir. É isso que temos aqui. É escrever para mais dinheiro do que o orçamento permite”, conta.
E a escrita em “Rabo de Peixe” é totalmente diferente do que em “Glória”. Aliás, logo nos primeiros comunicados de imprensa se sentiu uma aposta pouco comum em voos mais altos à portuguesa: o da comédia. Não será por acaso que Salvador Martinha, o primeiro humorista português a ter o seu espectáculo disponível na Netflix, seja chamado para este ato final da conversa. Faz dupla de polícias com Maria João Bastos — a personagem “antítese” que vem resfriar o êxtase que se vive em Rabo de Peixe — naquela que é a sua primeira experiência como ator a sério. “Soube muito bem não estar sempre a fazer humor. No meu podcast ‘Ar Livre´já experimento não fazer rir de 12 em 12 segundos. É violento. Aqui foi tentar ser mais natural. Tirar o Salvador do Salvador, como me ensinou a Patrícia Sequeira. Stand-up é especializar-me em mim mesmo, mas aqui não deixo de ser eu. É o corpo e a cara só tinha de tirar os truques. Era limpar a musiquinha. Vamos ver”, conta.
Esse humor situacional que está latente em grande parte das personagens resulta de uma intenção dos autores em explorar o bizarro que é uma pequena ilha ser presentada com grandes doses de cocaína. E mesmo com polícia, com máfia, com um execrável chefe-traficante interpretado por Albano Jerónimo, sangue, suor e mortes, há espaço para rir. Não é que as personagens sejam cómicas. São as situações. Ver uma cozinheira a panar um peixe com cocaína como se fosse farinha é melhor do que a personagem mandar a cozinheira ir panar um peixe com cocaína. Estaremos então a criar um género mainstream português de comédia? Não se sabe. Ninguém sabe. Nem nunca se soube. “Esta é uma história de suplantação. História louca de quatro miúdos que tentam safar-se da pobreza nos Açores. O futuro é zero, o pai é cego, estão na faina, não apanham peixe. Tem graça. Podia ser contada em qualquer lado”, diz Pêpê Rapazote, ditando que este género insólito e inusitado poderá ser um caminho, a beliscar um qualquer Tarantino. Demasiado cedo? Mais vale sonhar alto.
Maria João Bastos, a par de concordar que o talento e as equipas técnicas portugueses em nada ficam atrás das internacionais, também considera que há um ritmo diferente em “Rabo de Peixe”. Um que rasga com o que se tem feito na ficção portuguesa. E que bate com o género cinematográfico, mais lento, mais pausado, com mais diálogos. “Mais triste”, como diz Salvador Martinha. Mesmo que só agora, dentro do universo de séries, o país se esteja a aventurar, há esperança, afinal, de que seja possível manter esta fasquia com um produto nacional à Netflix. “Todas as pessoas vão identificar este tema mesmo não conhecendo bem a história. Essa curiosidade vai ser boa. Houve mais dinheiro e isso significa tempo. Os técnicos e autores portugueses não ficam atrás do que se faz lá fora. A prova está aqui”, finaliza.