“Tenho muito jeito para perder coisas. Tenho sete pares de óculos em cada divisão.”
A frase foi atirada por Regina Frank de dentro de um armário, para onde correu aos saltinhos à procura de uma bateria para a câmara de filmar. De volta à mesa redonda, ao fundo da Galeria Perve, de mãos cruzadas, explicou que não precisa de óculos para ver ao longe, só ao perto. É por isso que está constantemente a olhar por cima deles enquanto fala sem filtros sobre os dez anos passados em Nova Iorque, o problema com a artista Marina Abramovic, que lhe ficou com o título do trabalho de uma vida chamado The Artist is Present, e dos momentos mais negros de todos que acabaram por lhe ensinar uma lição.
“É da idade… O problema apareceu quando fiz 45 anos e desde então vejo cada vez pior.” Para pintar, a artista alemã, sediada em Portugal desde 2007, não precisa dos pequenos óculos pretos que lá acabou por comprar por insistência do seu oculista, um amigo dos tempos de escola. É que todos os que tem espalhados pela casa são baratos, daqueles que se vendem nas lojas chinesas. “São os meus primeiros óculos caros”, admitiu, e foram tão caros que o oculista acabou por fazer uma troca com ela — dois desenhos seus por um par de óculos.
Parece inacreditável, mas as trocas são uma coisa comum na vida de Regina Frank. “Faço isso muitas vezes. O meu sapateiro também acha que eu devo ter os melhores sapatos possíveis. Ele adora o meu trabalho, então fazemos uma troca. Se um sapateiro gostar mesmo daquilo que faz, não faz sapatos para vender — faz sapatos porque acha que as pessoas podiam andar melhor. Ele é apaixonado pelos sapatos que faz, eu sou apaixonada pelo meu trabalho.”
“É uma boa maneira de viver”, mas uma maneira “muito old school“. Mas tem tudo a ver com a forma como Regina Frank encara a própria vida — ser artista significa não ter muito dinheiro, mas significa ser mais livre. E isso é tudo o que importa.
Esta exposição, The Art ist Present [“A Arte está Presente”], reúne muitos dos seus trabalhos inéditos. Porque é que decidiu ir buscá-los ao baú e expô-los agora?
O Carlos [Cabral Nunes] não é um curador normal. Esta é a primeira vez que trabalho com um curador (trabalhei maioritariamente com curadoras) e ele tem uma visão completamente diferente. Queria expor os trabalhos que produzi em silêncio, aqui e ali, e que nunca quis vender porque seria como vender o meu diário. Como têm mais de 20 anos, agora tenho o distanciamento suficiente para me conseguir desfazer deles. Mas nunca pensei vender muitas das peças que aqui estão porque tenho uma ligação muito grande com elas. Sempre que precisava de dinheiro, telefonava a um colecionador. Escondia tudo o que queria guardar para mim e deixava à mostra apenas aquilo de que ele poderia gostar e que me daria exatamente a quantidade de dinheiro de que precisava para sobreviver. Mas, muitas vezes, tentava fazer uma troca por qualquer coisa, como um computador. Compravam um computador e eu dava qualquer coisa em troca.
Como fez com os seus óculos e com os seus sapatos. Quer dizer que faz isso desde sempre.
Sim, exato. E muitas vezes tentava fazer um acordo sem dinheiro porque também não me sentia bem com isso. O meu pai costumava dizer que o dinheiro é um bom servo, mas um mestre muito difícil. Ele era banqueiro, mas um daqueles banqueiros muito honestos que hoje em dia são difíceis de encontrar. Ensinou-me o que era a honestidade, e nunca me esqueci disso até hoje. Dizia-me sempre que, se mentisse, corria o risco de as pessoas gostarem de mim por algo que eu não era, por isso o melhor era ser honesta. Isso ajudou-me a atravessar diferentes fases da minha vida. Às vezes, é melhor ser-se um bocadinho mais diplomática, mas ser honesta ajudou-me sempre a perdoar-me a mim própria quando fazia coisas de que depois me arrependia. Sempre me mantive fiel a isso. Na Alemanha, tive de lidar com muito chauvinismo masculino. As pessoas nem sempre levam a beleza a sério, pensam que se uma mulher tiver uma certa aparência física, não é inteligente. Esta geração não é assim, mas tenho 50 anos e a minha geração teve de lidar muito com isso. Com muitos preconceitos.
Foi algo que sentiu na pele?
Sim, muitas vezes.
Onde é que sentiu mais isso?
Na Europa, porque nos Estados Unidos não é politicamente correto. Agora que tenho 50 anos já não sinto isso. A geração de agora é mais livre. Aconteceram muita coisas desde então, há mais mulheres em cargos de topo.
Acha que as coisas melhoraram? Acha que, hoje em dia, as mulheres têm as mesmas possibilidades que os homens?
Ainda existe espaço para mais mudanças mas, sim, acho que as coisas estão melhores e que existem mais mulheres em lugares de topo, uma coisa com a qual nós nem sequer podíamos sonhar. Quando me tornei artista, tínhamos de estar nuas para entrar num museu. Literalmente. A maioria dos artistas de sucesso não eram mulheres, havia muito poucas e a maioria ou eram performers, e estavam nuas, ou eram as musas que estavam nos quadros — entravam nos museus como quadros, não como mulheres artistas. Era muito difícil para as mulheres serem reconhecidas.
Nunca lhe passou pela cabeça fazer uma performance nua?
Não, não é essa a minha linguagem. A minha linguagem é o corpo que cobrimos para sentirmos uma proteção — a proteção que está à nossa volta. Para mim, isso é o mais importante.
Numa das minhas peças, que nunca foi publicada, entrava em casas de banho masculinas e sempre que aparecia um homem dizia “there’s a man in every woman” [“existe um homem em cada mulher]” [risos]. Há tanto sobre o qual não pensamos… Quando chegam ao poder, as mulheres não podem perder as suas qualidades femininas. Somos poderosas porque somos mulher e temos o imenso poder de dar à luz. Isso é uma das grandes dádivas do universo e é algo que deve ser celebrado. “Dar à luz”, em português… A língua portuguesa é tão poética. É como o mar a falar com as pedras. Tem uma suavidade.
A Regina é artista profissional há mais de 30 anos, e esta exposição mostra a diversidade do trabalho que tem vindo a desenvolver — desenhos, pinturas, colagens e performances. Como é que tudo começou?
Ser artista profissional não permite ter um grande orçamento, mas permite ter um orçamento modesto. Sempre foi importante para mim ser livre para desenvolver ideias e aprofundar uma peça. Ter menos, mas viver mais. É o meu lema. Quando me tornei artista a tempo inteiro, sem ganhar dinheiro de nenhuma outra forma, decidi que queria viver mais e ter menos. E isso tem funcionado muito bem para mim. A beleza disto é também a independência que traz. Sinto que não tenho de fazer um monte de dinheiro porque tenho de sustentar um sistema. Não preciso de ter trabalhadores a tempo inteiro, mas quando preciso posso contratar alguém. Ao mesmo tempo, adoro fazer tudo sozinha — costuro, desenho, faço as coisas sozinha.
No primeiro ano da universidade, estudei Design de Figurinos, mas depois o meu professor expulsou-me.
Porquê?
Ele foi ao meu apartamento, que era muito pequeno. Era mais um quarto. Debaixo da cama havia uma pilha de pinturas, no frigorífico tinha vodka, película [cinematográfica] e barro. A casa de banho tinha sido transformada num quarto escuro para as minhas experiências fotográficas, no meu guarda-roupa havia amostras de tecido e havia tinta por todo o lado. Só tinha aquele espaço pequeno para mim e odiei que o meu professor lá fosse, mas ele queria ver tudo o que tinha feito. Olhou para tudo e disse-me: “Olha, tens de estudar Arte. Não vais conseguir sobreviver como figurinista, vais ter de trabalhar com um realizador, com atores. És demasiado sensível para isso. Tens de trabalhar por conta própria, pintar, fazer esculturas, desenhos, o que quiseres”. “Mas eu não quero porque quero sobreviver!”, e ele disse-me: “Tu vais sobreviver, tenho a certeza. Da forma como és dedicada, tenho a certeza. Mas vamos fazer um contrato: se daqui a um ano quiseres voltar ao curso de Design de Figurinos, eu aceito-te. Mas primeiro, vais estudar Arte durante um ano”. Ainda hoje lhe agradeço [risos]! Nunca mais voltei.
Comecei a explorar na Escola de Arte e era a pessoa mais feliz no planeta! O exame de entrada foi um pesadelo porque éramos 60 pessoas numa sala e tínhamos de desenhar uma coisa pouco inspiradora e fazer um exame oral perante a escola inteira (era de entrada livre, e qualquer pessoa podia assistir). Tínhamos de ficar ali, a morrer de nervosismo, enquanto olhavam para o nosso portfólio e um historiador de arte nos fazia perguntas. A mim perguntou-me: “Escreves muito sobre Joseph Beuys mas também escreves muito sobre Vermeer. Achas que vais fazer quadros como Vermeer ou performances como Joseph Beuys?”. Fiquei em silêncio. Depois olhei para ele e disse-lhe: “Não sei. Vou fazer coisas como a Regina Frank”. E toda a gente na sala perguntou “quem é a Regina Frank?” [risos]. Pensei que tinha chumbado e que não me iam aceitar na faculdade porque o acesso era difícil, havia quatro mil pessoas a candidatarem-se. Dessas 40 mil, foram escolhidas apenas 60. Mas consegui entrar e foi maravilhoso porque pude aprender a soldar, a esculpir, técnicas de pintura, e por aí em diante.
Sentiu que foi mesmo útil para si? Há quem acuse os cursos de Artes de não ensinarem nada de novo. Muitas vezes são até os próprios alunos a fazerem essa acusação.
Percebo o que quer dizer, mas adorava a Escola de Arte porque fui a todos os workshops.
Fez tudo o que havia para fazer?
Tudo! Soldagem, joalharia, trabalhos em madeira, construções em aço, fotografia, serigrafia, litografia. Tudo! E os mestres ficaram contentes por me ajudarem porque tinham muito pouco para fazer e eu era sempre simpática e estava sempre a tentar aprender para poder fazer as coisas sozinha. Sempre que alguém fazia alguma coisa à minha frente, tentava ver para depois poder tentar reproduzir. Aprendi muito, muito. Todas estas técnicas, estas técnicas artesanais, dão muito jeito. Saber fundir, bordar… Tudo! Foi maravilhoso, foi um tempo maravilhoso. E intenso. Um ano depois de ter entrado na faculdade, fui convidada para ser tutora de Reprografia e comecei a trabalhar quase imediatamente. Foi bom porque comecei a ganhar um pequeno salário.
Dois anos depois, comecei a dar aulas de Fotografia e Reprografia. Foi na altura em que houve a greve de estudantes e em que foi fundada uma organização chamada Interflux cujo objetivo era comprar equipamento para os estudantes que, na altura, era muito avançado e muito difícil de conseguir — projetores de vídeo, câmaras de filmar. Foi antes de toda a gente ter um telemóvel que faz vídeos quase perfeitos [risos]. Comecei a trabalhar para essa organização e foi através dela que conheci muitos artistas fantásticos e tive a oportunidade de ver como é que eles trabalhavam. O primeiro artista com quem trabalhei foi John Cage, que era o meu herói. A segunda foi Joan Jonas, que era uma realizadora e artista performativa maravilhosa. Falei-lhe de uma das minhas peças e ela foi muito generosa. Disse-me que devia falar com a curadora do New Museum of Contemporary Art, em Nova Iorque.
Foi no New Museum que apresentou a performance “L’Adieu – Pearls Before Gods”, em 1993. Passou 28 dias a coser pérolas numa das janelas do museu.
A viagem que fiz a seguir foi exatamente aí. Perguntei à curadora, que na altura estava a organizar uma exposição chamada Trade Routs [sobre os efeitos da globalização], se podia olhar para o meu trabalho anterior e também para uma peça para qual precisava de alguma ajuda. Só queria uma recomendação porque queria apresentá-la num centro comercial, mas ela perguntou-me se podia fazê-la na janela do museu. Não podia ter sido melhor. A janela do New Museum of Contemporary Art dava diretamente para a [rua] Bowery e para as lojas de costura onde trabalhadoras chinesas trabalhavam 15 horas por dia em troca de um salário muito baixo. Ganhavam cerca de um dólar por hora.
Muitas dessas pessoas, que nunca tinham visto um museu por dentro, vieram ver-me. Viram-me a costurar na janela durante 28 dias por 28 salários médios diferentes, de vários países. No início, fiz muito dinheiro mas, no final, estava a fazer apenas 20 cêntimos por hora. Para mostrar o poder de compra do meu salário, uma das coisas que fiz foi comprar pão e flores. Outra coisa foi que, todos os dias, trabalhava um bocadinho mais devagar até que, no final, cada ponto levava-me meia hora. E isto é muito importante para conseguir entender o meu conceito enquanto artista — o que aconteceu ali, naquela janela, tornou-se numa habilidade que ainda hoje uso. Em “iLAND”, faço um dos movimentos muito, muito devagar. Tão devagar que, na realidade, não é possível ver o movimento em si, mas em time-lapse é possível ver-me a acenar, a mandar um beijo.
Falou em “iLAND”, que é um dos seus projetos mais recentes (foi apresentado pela primeira vez em 2011), onde fala dos problemas ambientais. Porque é que também decidiu usar ai essa noção de time-lapse?
Em “iLAND”, expus todas as catástrofes e todos os problemas ambientais num vestido só que tem muita informação da NASA e de organizações governamentais que tiraram fotografias aéreas que mostram os efeitos do aquecimento global e as diferentes mudanças que estão a acontecer. Toda essa informação está num vestido. Estou sentada e mexo-me muito devagar, que é exatamente aquilo que acontece connosco — mexemo-nos, mexemo-nos, mexemo-nos e só quando andamos para a frente no tempo e olhamos para o futuro é que percebemos o que estamos a fazer e o efeito que o nosso movimento tem. É por isso que eu me mexo tão devagar, de modo a conseguir projetar o que acontece no futuro.
Existe outra peça em que estou a trabalhar neste momento, e que será publicada para o ano, e que também usa esta noção de slow motion. Mas não é de uma forma crítica — não me cabe a mim criticar, apenas me cabe a mim mostrar alguma coisa. Foi a mesma coisa quando trabalhei naquela janela durante 28 dias — apenas queria mostrar o que a informação pode fazer, o que a vida pode fazer.
Que consequências é que a performance do New Museum teve no seu trabalho?
Depois dessa performance ganhei muitos contactos porque muitas pessoas vieram ver-me a Nova Iorque. O meu conceito era The Artist is Present [“O Artista está Presente”] , que era originalmente uma ideia política. Começou por ser usado em demonstrações em lugares públicos, por um grupo de pessoas com fatos e máscaras. As pessoas achavam que éramos centenas de pessoas mas éramos só cinco [risos].
Porque é que lhe chamou The Artist is Present? O que é que isso significa para si?
Porque, para mim, o Artista é a entidade superior que servimos. Não tem nada a ver com a pessoa — para mim, a pessoa é uma ferramenta através da qual é possível alcançar alguma coisa. Quando o Artista está presente quer dizer que há um grande poder. Não se trata da pessoa que está ali sentada, mas sim da entidade que toma conta de nós quando fazemos arte, quando se é um artista e se é apaixonado por aquilo que se faz. Essa inspiração vem através dessa entidade, que é o Artista. Por isso, quando quis falar sobre esse poder, achei que “Artista” era a melhor palavra. Tinha uns cartões que dava quando alguém me pedia o meu contacto e que apenas diziam The Artist is Present e, às vezes, na parte de trás dizia “Regina Frank”. Às vezes também punha o meu número de telefone.
Só às vezes?
Sim, só às vezes porque achava que se as pessoas me deviam encontrar, elas iriam encontrar-me. As pessoas não olhavam para o cartão. No Japão, por exemplo, isso nunca teria funcionado porque as pessoas teriam reparado. Mas na Alemanha e na Europa resultou muito bem porque as pessoas metiam o cartão no bolso e só mais tarde, quando queriam realmente telefonar-me, é que viam que não havia lá nada. Mas também me trouxe desvantagens. Uma das pessoas que trabalhava para a [galeria] Gagosian [em Nova Iorque] tentou entrar em contacto comigo mas não conseguiu. Quando lhes telefonei um ano depois, disse-me: “Regina Frank? A Regina Frank de The Artist is Present?”. Disse-lhe que sim e ele disse-me que lhe tinha dado um cartão mas que não tinha o meu número [risos]! Mas, para mim, fazia parte do jogo.
Tenho outra peça (não quero falar sobre ela porque vai ser publicada para o ano a 17 de fevereiro de 2017) que provavelmente vai deixar as pessoas espantadas porque me conhecem deste contexto. Trata-se de brincar um bocadinho com o conceito de artista. Mas, desde que a Marina Abramovic adaptou o título, The Artist is Present está mais ligado ao trabalho dela, que também mudou mais na minha direção. A Marina costumava focar-se mais no sofrimento e numa forma de se elevar a ela própria. Ultimamente, aproximou-se mais das pessoas. Tornou-se muito mais acessível nesse sentido. É um trabalho poderoso, sim, mas não me queria aproximar muito disso.
Como é que a conheceu?
Organizei um workshop para ela. Foi um dos primeiros trabalhos dela na Alemanha. Também lhe organizei uma exposição onde participaram jovens artistas, incluindo eu própria. Com o John Cage já tinha sentido que a performance podia ser algo importante para mim mas, quando conheci a Mariana, foi obrigada a fazer algumas das performances. Não comemos durante sete dias — apenas bebemos água — e depois tínhamos de fazer uma performance. Também não podíamos ler nenhum jornal. Era uma pessoa muito política, era algo muito forte em mim, e foi muito difícil para mim estar assim desligada do mundo. Quando liguei o rádio pela primeira vez depois daqueles sete dias, às 12h00, para ouvir as notícias, tinha começado a Guerra do Golfo [a 2 de agosto de 1990]. Naquele momento decidi que ia fazer um trabalho sobre isso. Ela gostou muito.
Depois aconteceu a performance do Museum of Contemporary Art. Ela não sabia que eu ia fazer esse trabalho mas, quando ouviu falar sobre isso, escreveu-me uma carta a dar-me os parabéns: “Falaram-me muito de ti sem saberem que te conheço. Queria dar-te os parabéns.” Passei da pintura para a performance de forma muito orgânica. Mas não necessariamente porque gostava, era extremamente tímida.
Foi difícil no início?
Sim, totalmente. Como era tão tímida, a única coisa que conseguia fazer à frente dos outros era fazer uma performance porque não tinha de falar sobre o meu trabalho. Podia ficar ali quieta. Tinha cinco anos quando me deram um lápis pela primeira vez. Não parei de desenhar desde então. Foi isso que me salvou da loucura. Quando comecei a pintar, já era um bocadinho mais extrovertida, mas só conseguia abrir a boca para falar dos outros, para apontar uma injustiça. Custava-me, mas aí falava.
Se foi assim tão difícil, porque decidiu que tinha de o fazer? A decisão contrária teria sido mais fácil.
As pessoas estavam sempre a dizer-me “tens de dizer isto!”. Tinha conversas em privado e depois diziam-me “podes vir dar uma palestra?”. Na América, é muito comum os artistas darem palestras e isso também fez com que tivesse de puxar mais por mim porque queria fazer qualquer coisa pelos alunos.
Depois da performance do New Museum, apresentou uma peça chamada “Hermes’ Mistress”, que a fez viajar pelo mundo inteiro. Nesse trabalho, a Regina voltou a sentar-se em silêncio enquanto cosia contas num vestido vermelho.
Para mim, costurar significa ligar pessoas. Tem a ver com o fio que atravessa a nossa vida. “Hermes’ Mistress” era sobre colecionar informação da Internet, muito devagar. Informação que nos toca. E eu faço-a tocar-me — literalmente — ao bordá-la no vestido. Fiz um vestido maravilhoso com o que sei, começando do lado de fora para o lado de dentro, contrariamente ao crescimento de uma árvore. Uma árvore cresce de dentro para fora e torna-se maior. É uma meditação pública — trata-se de saber o que fazer com toda esta informação. O título tem a ver com Hermes, o mensageiro dos deuses. E mistress [“amante”] tem dois sentidos: por um lado o mestre e o servo, por outro o amante. Portanto, o que é somos?
E depois há este vestido gigante. Porquê usar uma tela quadrada? Muitos pintores usam telas a vida toda, eu tenho usado vestidos a vida toda. São como uma tela para mim, porque um tema também pode ser bordado. É sobre o tecido, o conteúdo, a informação de que quero falar, que quero aproximar da vossa pele. Os vestidos são veículos de comunicação — devem tocar-nos, assim como os problemas que quero transmitir. E são uma imagem com a qual as pessoas se podem relacionar. Um vestido gigante é a ideia de que muitas pessoas podem habitá-lo — é uma ilha, e é também a imagem que [Samuel] Beckett criou [na peça] Dias Felizes — a personagem está presa num monte como eu estou nos meus vestidos.
Temos aqui fotografias de outra performance que, na verdade, é muito política. Chama-se “Between Lines”, e começou a ser feita a 1 de setembro de 2001. Estava a colecionar manchetes de 70 jornais diferentes — manchetes normais, de verão — quando de repente aconteceu o 11 de Setembro.
Primeira a Guerra do Golfo, depois o 11 de Setembro. A Regina tem pontaria com as datas.
Sim, é porque confio em datas simétricas. A minha performance era para acontecer a 9 de novembro de 2001, que é a data mais importante da história da Alemanha. Porquê? Porque foi nessa data que começou a primeira república, em 1919. Depois, Hitler orquestrou a Kristallnacht [“Noite de Cristal”] na noite de 9 de novembro de 1938 e o Muro de Berlim começou a ser demolido exatamente nessa data — a 9 de novembro. Em 2001, 11 anos depois, queria assinalar essas três datas e, de repente, aconteceu o 11 de Setembro. É o que acontece quando o Artista está presente. É uma responsabilidade política.
Acha que a arte deve ter sempre uma faceta política?
Não necessariamente. Acho que Rembrandt fez quadros que, de um certo ponto de vista, também eram políticos. Acho que Leonardo Da Vinci também pôs muita política nas suas pinturas. Acho que os bons artistas processam o tempo em que vivem de uma forma inteligente que nos é mostrada anos depois, mas não é preciso saber todas as histórias para se perceber o trabalho. Acho que, primeiro que tudo, a peça deve trabalhar a um nível estético — deve convidar-nos a pensar sobre algo. Deve ser bonita, deve surpreender-nos e depois… Ah! Quando olhamos com mais atenção, descobrimos outra informação. É um incentivo para nos fazer perceber outras coisas sobre as quais não pensaríamos.
Não, não penso que a arte tem de ser política, mas acho que ser artista é ter um lado político. É uma afirmação política porque não fazemos trabalhos para o mercado. Se o trabalho vende, ótimo. Se não… Esta exposição pôde acontecer porque guardei muitas coisas para mim. Nunca trabalhei com uma galeria, nunca quis trabalhar com uma galeria a tempo inteiro. Tinha medo da influência que poderia ter sobre o meu trabalho, por isso sempre evitei isso. Uma vez tive uma conversa maravilhosa como o [galerista] Leo Castelli. Ele foi ver a peça do New Museum e tivemos uma longa conversa, ele deu-me um cartão e perguntou-me se queria passar pela galeria. Não consegui porque gostei tanto daquela conversa com aquele velhote que não quis levá-la para outro nível, o nível do negócio.
Prefere não olhar para a sua arte como um negócio, mesmo que isso signifique perder oportunidades como essa?
Não.
Mas alguns artistas preferem fazer o contrário.
Não acho que seja necessariamente mau. O que é triste é depois terem de começar a produzir para a galeria. Existe uma artista portuguesa maravilhosa, Joana Vasconcelos. Uma das suas peças mais fortes, e que não vendeu muito bem, foi “A Noiva”, feita de tampões. Tem um significado tão profundo, é uma peça tão inteligente. Parece um candelabro mas, à medida que caminhamos em direção a ela, vemo-la brilhar e descobrimos os tampões… Podemos falar sobre ela durante uma hora sem nos aborrecermos. Só que, quando começamos a produzir para o mercado, é muito, muito difícil manter a qualidade e este tipo de profundidade. Ela fez umas quantas peças mesmo maravilhosas, mas essas peças precisam de tempo.
De um modo geral, preciso de um ano para um peça e de outros sete para a apresentar. A performance também cresce com o tempo. É como uma pintura — um pintor não faz um quadro numa hora e mete-o na galeria. Não, trabalha um ano ou mais numa peça e só depois é que a mostra. E quando vamos à galeria, conseguimos realmente ver essa profundidade. Às vezes trabalho um, três anos, antes sequer pensar em falar com a pessoa certa, com o lugar certo para apresentar uma peça. É tudo uma questão de tempo. É interessante porque, quando a Marina usou o título The Artist is Present na sua grande retrospetiva [no Museum of Modern Art, mais conhecido pela sigla MoMA], fui forçada a repensar tudo e a ir mais fundo. Não ia processá-la. Eu não processo ninguém [risos].
Mas podia tê-lo feito. Era legítimo.
Podia, mas se o MoMA usou esse título foi porque o confirmaram uma e outra vez e pensaram que preferiam pagar-me muito dinheiro e ficar com o título porque era bom ou assim. Se calhar não pensaram assim, mas tenho a certeza de que o MoMA tem bons advogados e a Marina também. Existia o problema do poder financeiro e a história tende a ficar do lado dos vencedores. Teria de ceder muita da minha paz de espírito, por isso, qual era a solução? Agradecer ao ladrão, encarar a situação como um exercício zen. Ir mais fundo, olhar para o presente. O que é que significa The Artist is Present, agora? É sobre o aqui, sobre estar presente, sobre ser essa presença. Depois percebi que tinha sido uma dádiva, que o que ela me tinha dado tinha sido uma verdadeira dádiva. Ela que fique com o título, segui em frente.
Chegou a falar com ela sobre isso?
Não, não falei. Nunca falámos sobre isso mas sentámo-nos em silêncio durante uma hora no MoMA. Não a queria confrontar, queria ficar em paz com ela. Por isso fui lá, meti-me na fila. Sabia o que ela estava a usar — um vestido vermelho como o que eu costumava usar em “Hermes’ Mistress” — e por isso fui de verde, a simbolizar esperança. A Marina a simbolizar sangue. Sentei-me em frente dela e pensei: “logo se vê o que vem a seguir”.
Quando estava a dar aulas em Chicago e mencionei o assunto numa feira, houve um colecionador que me disse: “A culpa é tua porque nos abandonaste durante dez anos. Desapareceste da cena, desapareceste de Nova Iorque”. Pensei que ele tinha razão. Tinha-me mudado para Portugal, o bonito Portugal.
Então a culpa é nossa.
Não [risos]! Adoro Portugal, adoro este país! É o melhor país de todos e foi a melhor coisa que me podia ter acontecido.
Porque é que veio viver para Portugal?
Fui para a Índia passar algum tempo com um professor espiritual que foi presidente do Banco da Índia. No último dia que passei lá, conheci o meu marido que tens uns olhos azuis lindíssimos. Estava a falar com ele e ele disse-me que era de Portugal. Portugal [com sotaque português]. E pensei: “Portugal, Portugal… Onde é que isso fica?”. E ele pensou: “Oh, mais uma daquelas americanas estúpidas que não sabe onde Portugal é”, e explicou-me que era “aquele país pequeno, no canto da Europa, a seguir à Espanha” [risos]. “Ah, Portugal [com sotaque americano]! A terra do Fernando Pessoa!.” Andei com ele [Fernando Pessoa] no bolso, na minha mesa de cabeceira, durante dez anos. Li Fernando Pessoa em alemão, depois perdi a minha cópia alemã em Paris e comprei uma francesa. Comecei a lê-lo em francês, mas depois perdi a minha cópia francesa nos Estados Unidos e comprei uma cópia em inglês.
Porque a Regina está constantemente a perder coisas.
Exato! É por isso que hoje adoro a Internet. Podemos googlar cada livro, cada citação que nos vem à cabeça. Passava horas à procura das citações nos livros e por isso é que era uma catástrofe cada vez que os perdia porque tinha de escrever as notas outra vez e colar os post-its. Era uma grande fã de Pessoa mas não falava português quando vim para cá. Pensava que ia ser fácil para mim porque tinha vingado em Nova Iorque, New York, New York. Quem consegue vingar lá, consegue vingar em qualquer lado! Oh… meu… Deus… Não fazia ideia daquilo em que me estava a meter [risos]! Agora acho que quem consegue vingar em Portugal, consegue vingar em qualquer lado [risos]! Mas aprendi a amar este país e a sua gente por uma coisa que considero ser um tesouro — é uma cultura muito sábia porque nos dão muita privacidade, muito espaço, e são maravilhosos com as crianças. Toda a gente, até as pessoas que não têm crianças. A minha obra-prima, que é a minha filha Sofia, nasceu aqui e este é o lugar perfeito para ela. E para mim também. Além disso, a fama é boa, Nova Iorque deu-me muito, mas não é um bom lugar para se viver.
Quantos anos passou em Nova Iorque?
Sete anos. Estava a ensinar na escola do Museum of Fine Arts [em Boston, Massachusetts] quando me candidatei a um lugar de professor no MIT [Massachusetts Institute of Tecnhology]. Fui escolhida, só que as duas instituições não falaram entre si. O Museum of Fine Arts achou que eu devia ficar com a posição no MIT e o MIT decidiu que eu devia ficar no Museum of Fine Arts porque tinha feito uma longa performance lá e era mesmo uma escola de arte. E, de repente, fiquei sem trabalho. Fiquei devastada e sem saber como e que o destino funcionava. Fiquei tão chateada que saí dos Estados Unidos da América. Foi alguns meses antes do 11 de Setembro, e nunca mais voltei. Nunca mais quis voltar.
Senti também que todas aquelas pessoas que conseguem os seus cinco minutos de fama não têm nada a que se agarrar. É uma cidade muito dura, temos de estar sempre a produzir. É tudo muito caro, são precisos quatro mil dólares por mês para se conseguir pelo menos sobreviver. É de doidos! Aqui tenho o luxo de conseguir sustentar-me por períodos muito longos de tempo com um orçamento baixo. Se quiser ir à Alemanha, um voo custa-me 20 euros se o marcar com antecedência. Sinto-me uma sortuda porque, quando a minha mãe ficou doente, pude ficar com ela enquanto vivia em Portugal. Quando a minha melhor amiga portuguesa, que conseguia falar alemão muito bem, morreu de cancro pude cuidar dela. Não tomei conta dela como tomei da minha mãe, mas fiz parte de um sistema de apoio que é ótimo aqui. Podemos adoecer e as pessoas continuam a importar-se. E isso é bonito. As pessoas ajudam-nos, e não só os nossos familiares. Existe uma rede de amigos que nos ajuda a ultrapassar as coisas. Há um grande calor neste país.