A distância que vai de Tóquio a Mem Martins é mais estreita do que parece à primeira vista. Ainda mais se os olhos forem os de Ricardo Adolfo, que em 2012, vindo de Amesterdão, chegou à capital japonesa para trabalhar em publicidade. E lá ficou até hoje, deixando que o escritor e o publicitário se influenciem amigavelmente.
Estreou-se com um livro de contos em 2003. De lá para cá escreveu quatro romances, livros infantis, guiões para cinema e televisão (a longa-metragem “São Jorge”, de 2016, e a série “Sara”, de 2018, ambos realizados pelo amigo Marco Martins).
Mizé — Antes Galdéria do que Normal e Remediada, o seu primeiro romance (2006), acaba de regressar às livrarias com reedição da Companhia das Letras. A trama centra-se na vida de Mizé, uma cabeleireira dos subúrbios que sonha com uma carreira internacional de estrela porno, e Palha, o marido “normal e remediado” que mal enxerga uma vida para lá do bairro social. Eis o laboratório de Adolfo: um mundo de indivíduos sem história a desenrascar a vidinha, gente trabalhadora e remediada que alimenta como pode a sua coleção privada de ambições pífias. O fascínio pelo banal vem de longe e tem que se lhe diga: Ricardo Adolfo estagiou intensamente nas ruas e nos cafés da Linha de Sintra; anos de ócio auditivo que lhe forneceram, sem querer, a matéria-prima com que o escritor haveria de alimentar a sua ficção.
O calão das ruas é a língua franca da Mizé, romance onde a grafia a toda a hora faz troça dos corretores automáticos mais puritanos — neste livro come-se “muita bem”, anda-se “práqui”, convida-se a que se “teja à vontade”, diz-se que “pere aí”, intimida-se com um ríspido “tás ta fazer de esquisito?”.
Mais de duas décadas de emigração deixaram intacto o encanto pelas particularidades do subúrbio onde cresceu. Ao Observador, Ricardo Adolfo lembrou a saudosa Mizé — glória literária do tempo da VHS e memória de um mundo em que fazia sentido entrar no centro de cópias para articular a frase “eu queria ir à internet”.
Quinze anos depois, como envelheceu a Mizé?
Dá-me a sensação de que a Mizé continua bem e galdéria. Foi um livro muito inocente e instintivo (o primeiro romance é sempre muito instintivo). Apesar de na altura já ter publicado os contos [Os Chouriços São Todos Para Assar, 2003], foi difícil, demorado, complexo. E, quando saiu, não houve nenhuma cobertura crítica, as vendas também devem ter sido horríveis… Foi uma experiência um bocadinho amarga, se calhar por causa da expetativa que tinha. Anos mais tarde [em 2010], o livro reaparece na Alfaguara, e aí tem uma receção totalmente diferente. Foi sempre um livro difícil, talvez porque a personagem também não é muito fácil.
E quem será a Mizé quinze anos depois de a deixar sozinha, posta fora de casa pelo marido despeitado, à beira de se tornar dona de um salão de cabeleireiro unissexo?
Acho que a Mizé estaria agora com cinquenta e tal anos, mantendo o amor que tinha por ela própria. Sempre achei que aquilo era uma história de amor: a história de amor do Palha pela Mizé e da Mizé pela Mizé. Toda a gente gostava da Mizé, principalmente a Mizé. Deve ter arranjado outro tipo de sonhos, deve continuar no seu negócio. Duvido que fosse moça para se deixar empregar por conta de outrem.
Lembra-se de como chegou à personagem?
A personagem é inspirada em várias pessoas que fui conhecendo e numa pesquisa que demorei muitos anos a fazer. Aqueles anos em que estamos a acabar o liceu, vamos para a faculdade e andamos ali numa inércia, não sabemos bem porque estamos a gastar tempo em vão… Mais tarde percebi que esses foram anos de pesquisa, ou anos de preguiça que se tornaram em pesquisa. A Mizé está muito ligada ao cliché do emigrante que sente falta da terra de onde veio. De forma inconsciente, quis puxar essa realidade que já não tinha: os subúrbios onde cresci, as pessoas com que passava muito tempo, os meus amigos…
Outros aspetos envelheceram com velocidade inesperada: a instituição do videoclube, que tem grande importância no romance, tornou-se um artefacto histórico. Uma pessoa de vinte anos que leia o livro pode bem nunca ter contactado com a existência de videoclubes… Há ali uma arqueologia da forma como consumíamos filmes na altura, e que fica como marca dessa era. A VHS foi símbolo de muita coisa.
“Antes galdéria do que normal e remediada” é o programa de vida da Mizé, mas é o oposto do programa de vida do Palha. Tentou que esse choque fosse mais trágico ou mais divertido?
É capaz de ter saído mais divertido, mas a forma como eu o via era mais trágica. Tenho uma abordagem trágica que acaba por sair humorística, mas fazer humor para mim é um mistério. Se me sentar para tentar escrever algo que seja divertido vou falhar redondamente, já tentei e arrependi-me.
“Mizé”, para mim, sempre foi também a mistura de Maria e José, dois nomes muito bíblicos e que fazem muito parte da nossa cultura. Essa combinação, muito portuguesa e muito suburbana, tem uma grafia muito bonita. “Mizé” como forma gráfica foi algo que me atraiu de imediato. Mas eu via imensa coisa naquela palavra que mais ninguém via, daí a necessidade do subtítulo. Ficou quase como um slogan, uma fuga publicitária que define a personagem e a sua forma de estar, que tem algo de trágico e de fascinante ao mesmo tempo.
O romance é uma dança à volta de segredos, de informações que são conhecidas de uns e desconhecidas de outros. Planeou muito a arquitetura dessas revelações?
A minha intenção foi fazer um jogo de espelhos entre verdade e mentira, em que as coisas não eram bem uma nem outra, dependia do ângulo de que eram vistas. Há muita coscuvilhice à mistura, essa sempre foi uma das coisas que mais me fascinou no ambiente em que andava. Não eram nunca grandes segredos, eram sempre coisas banais, mas o facto de serem segredos dava-lhes muito drama. Tentei passar essa forma de comunicar, que é interessante e dramática não por causa do conteúdo mas das danças à volta dele. O exercício é: temos uma série de personagens que não têm vidas muito interessantes. Como é que eles fazem as vidas deles mais interessantes? Era a experiência que estava a tentar transpor para o papel. Sempre me atraiu isso na escrita, conseguir transformar o vulgar em extraordinário. É muito difícil conseguir expressar a beleza do insignificante.
Os diálogos da Mizé pressupõem muito treino de ouvido — são a linguagem que ouvimos na rua, no bairro, nos cafés, nos transportes públicos. Há vinte anos fora de Portugal, as suas reservas de português oral ainda estão atestadas?
Talvez haja coisas mais recentes de que não me apercebo, mas acho que o calão da Mizé não é muito datado. Isso vem de um prazer muito grande em ouvir. O exercício de estar num espaço público só a absorver é fascinante. Há também um prazer grande no exercício de grafar esses diálogos. A forma como fazemos a transposição do oral para o escrito é um exercício muito abstrato, muito forçado, quase contranatura. Gosto muito disso. Espero que, no próximo, os diálogos continuem a ser viscerais.
Como está a sua relação com o japonês?
Horrível. A minha relação com as línguas é sempre muito má… Já cá estou há 10 anos e é um japonês de sobrevivência. Estive dez anos em Amesterdão e o meu holandês era horrível, trabalho há vinte anos em inglês e o meu inglês também não é nada de especial. Não sei se é incapacidade intelectual ou preguiça.
Imagino que a vida de publicitário em Tóquio já esteja muito distante do universo das personagens da Mizé. A ficção e a vida ainda são coisas relacionadas?
Há sempre uma relação. Continuo a achar que a minha vida é mediana… Obviamente, os espaços e as pessoas com quem convivo agora são diferentes, mas continuo a ter amigos de há vinte e cinco anos, exatamente as mesmas pessoas com quem passava noites e dias em Mem Martins. Continuo a forçar na escrita essa realidade que me marcou quando estava a crescer. Não acho que fosse muito interessante escrever sobre o meu dia a dia de trabalho em publicidade.
Quando lhe pediram para escrever sobre a sua vida em Tóquio [convite da revista Sábado, que resultou no livro Tóquio Vive Longe da Terra] inventou uma personagem para fazer isso por si…
Sim, esse foi um pedido que me causou muitas dificuldades. Rapidamente percebi que escrever sobre os meus dias em Tóquio não ia dar em nada, iam ser as crónicas mais aborrecidas do mundo.
Em que é que Tóquio e Mem Martins não são assim tão diferentes?
Há uma coisa em Tóquio que são os bares do tagarelar. As pessoas, sempre as mesmas, vão lá ao fim do dia. Os bares são minúsculos, às vezes têm quatro ou seis cadeiras, são mesmo só para aquelas quatro ou seis pessoas mais o dono do bar. Há quase ali uma religião, em que toda a gente vai todos os dias ao mesmo sítio, há muita coscuvilhice, muitos segredinhos, muito diz-que-disse… Essa parte não muda, também encontrei isso em Amesterdão. Somos todos muito parecidos. A necessidade de pertencer, de que as pessoas gostem de nós e de gostarmos dos outros, é totalmente universal.
Houve planos para adaptar a Mizé ao cinema. Em que ficaram?
Em nada. Ainda trabalhei nisso muito tempo… Em 2007/2008 estive em Londres a trabalhar com uma realizadora e uma produtora, o projeto esteve muito avançado, o guião estava quase pronto, estavam a fazer pré-produção, casting… Depois veio a grande crise do crédito, que rapidamente passou para Londres. De um dia para o outro parou tudo, não havia dinheiro para nada, as pessoas começaram a ser despedidas… E depois, nada.
Que atriz é que imagina no papel da Mizé?
Na altura, uma atriz da série “Life on Mars [Liz White] estava a fazer casting para ser a Mizé. Quando penso na Mizé, imagino alguém de estatura média alta, um louro platinado, formas mais ou menos acentuadas… Havia uma série de clichés. Mas a forma como a realizadora estava a tentar vê-la tinha algo de muito inocente, e acho que a Mizé também tinha isso. Era alguém que, à partida, parecia muito experiente, mas havia ali uma inocência: “como é que podes achar que, tentando ser uma estrela porno, alguma vez vais ser famosa, ou rica, ou feliz?” É uma cantiga que não lembra a ninguém.
Os seus últimos projetos escritos foram para cinema e televisão: o filme “São Jorge” e a série “Sara”, ambos com o Marco Martins. A escrita para cinema e televisão está no mesmo campeonato dos romances?
São muito diferentes. Acho que agora me distraí um bocado com o cinema e a televisão, nos últimos anos tem sido só isso. Eu e o Marco somos amigos há muito tempo, temos ideias muito parecidas em relação ao que queremos e que achamos interessante. Se fosse com outra pessoa, não sei se teria tanta disponibilidade. Escrever para cinema e televisão demora muitos anos, requer uma disponibilidade e um foco muito específico, é preciso estar sempre a trabalhar naquilo. Quando escrevo um romance, estou mesmo a escrever a história. Quando escrevo para cinema, estou a ajudar alguém a contar a história, a escrita é só um ponto de partida para alguém pegar naquilo e fazer mil vezes melhor.
Quando diz que o cinema e a televisão o têm distraído, quer dizer que a sua intenção é voltar aos romances?
Se puder continuar a trabalhar com o Marco nestes projetos, ótimo. Mas a minha intenção é conseguir dar mais tempo aos romances e aos contos. Há coisas que quero escrever que tem de ser em romance.
Tem histórias dentro de si?
Sim, tenho sempre histórias. Durante muitos anos fiz o exercício de não as escrever para ver se me esquecia delas. Há sempre um exercício de resistir à escrita.
Em que sentido, resistir?
Resistir ao impulso da novidade. O culto e a obsessão do novo mentem-nos muito. Sento-me um dia, escrevo quinhentas palavras, penso “sou o melhor escritor do mundo”. No dia a seguir volto lá: “ó meu deus, isto é uma tragédia”. O tempo é fascinante, faz-nos questionar: “queres mesmo fazer essa história? Essa personagem vale mesmo a pena, ou vai ser mais uma história mediana?”. Uma personagem de um filme falava em “histórias que te deixam dormir à noite”. Se são histórias que nos deixam dormir à noite, qual é o ponto? Queremos mesmo é escrever histórias que não nos deixam dormir à noite.
Em que fase de escrita está neste momento?
Estou numa fase de pesquisa. É uma das fases de que mais gosto, arranjar milhares de desculpas para não escrever, fazer tudo à volta da escrita, conhecer personagens que de outra forma não teria desculpa para conhecer… A pesquisa dá-me licença para isso tudo. Há dias acabei num livro que era a história de um criminoso que virou dono de casa. Era um livro de manga, formato que raramente leio. Distraio-me e vou parar a sítios interessantes.
Mantém alguma disciplina de escrita?
Quando estou a escrever sou muito guarda noturno e mulher-a-dias: durante o dia ando a fazer a lida da casa, a trabalhar seja no que for, chega a noite e sou guarda noturno. Escrevo duas ou três horas, enquanto tenho energia, e faço isso durante uns meses. Depois páro, deixo o texto na página, volto uns meses depois, até estar minimamente decente e partilhável.
A sua vida de emigrante tem sido intensa (Macau, Amesterdão, Londres, Tóquio). Não se cansa de começar do zero?
Canso. Começar do zero é muito difícil, especialmente numa mudança da Europa para a Ásia, onde a cultura e os fusos horários são muito distintos. Quando se é emigrante deixamos para trás uma forma de viver e de ser, os amigos, a família… Começar isso tudo outra vez é muito desgastante. É mais cansativo ser emigrante do que não ser. O mundo à nossa volta é sempre estranho, estamos sempre a tentar pertencer e nunca pertencemos.
É possível deixar para trás quem somos e começar verdadeiramente do nada?
É capaz de ser. No meu caso, venho sempre com muita bagagem atrás. Vou sempre ser muito parecido em todos os sítios onde passo. Há uns tempos deixei de viajar só por viajar e comecei a viajar só por comida. Decidi que só ia a sítios onde se pudesse comer bem (uma das razões por que vivo em Tóquio está ligada à forma como se pode comer aqui). Estas minhas obsessões duram há décadas.
O que é que o pode fazer voltar a Portugal?
A minha família e os meus amigos fazem-me sempre voltar a Portugal. A minha maior fonte de inspiração são sempre idas a Portugal. Portugal tem uma riqueza dramática fascinante.