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Ricardo Araújo Pereira tem 1,93m, mas tem azar com a altura porque diz que é tímido. Aceita os pedidos de selfies na rua, dá autógrafos e ouve as piadas de quem se acha tão engraçado como o “tipo que era dos Gato Fedorento mas que agora fala sobre política”. Mas, insiste, é tímido. Melhor: é reservado. Não gosta de fazer alarido. Veste sempre fato preto porque isso torna tudo mais fácil. Não tem contas nas redes sociais porque isso torna tudo mais complicado. E em princípio trata toda a gente por você porque isso torna tudo mais educado.
Para os textos que escreve, leva mais ou menos a mesma filosofia. Aborda temas que, à primeira vista, podem não ter importância nenhuma, mas dá-lhes a volta até encontrar um mínimo de existencialismo (mesmo que seja um mínimo bem pequeno). Quase nunca faz referências à vida pessoal porque, simplesmente, isso não é “boa ideia”, mas deixa umas quantas pistas no meio dos parágrafos. E leva muito a sério um trabalho que outros, diz o próprio, afirmam “não ser sério”.
No último ano e meio tem escrito crónicas para o jornal brasileiro “Folha de São Paulo”. E Estar Vivo Aleija reúne alguns desses textos, sobre pessoas no geral, o autor em particular, respetivos tiques, manias, histórias e teimosias. Mas também sobre objetos de pouca filosofia, o pão, o jogo Candy Crush, o “chulé” e a estranha razão de tal palavra não ter tradução noutra língua, o que fazemos na casa de banho e outras maravilhas da “pessoa humana” — expressão que também merece umas linhas.
Com o tal 1,93m, Ricardo Araújo Pereira entra nos escritórios da editora Tinta da China, em Lisboa, para uma entrevista que antecipa a publicação deste livro, marcada para 28 de setembro. Uma conversa que começa no Brasil, passa por medos e angústias, mas sem ser demasiado emocional, recorda tempos de escola, livros, manias e obsessões e pisca o olho ao Benfica.
Ricardo cumprimenta toda a gente e toda gente espera um sorriso ou uma piada. É o que é, foi a fama que o homem construiu e é ele o primeiro a admitir que é assim que as coisas funcionam. Diz “olá, bom dia, como estão?”, tira o casaco, arregaça as mangas da camisa, pede desculpa pelo atraso que se resume a um par de minutos, senta-se e diz “ainda bem que vai gravar isto com dois gravadores, já me aconteceu perder tudo. Vamos a isto?”. Vamos.
Podemos começar pela parte mais fácil?
Certo.
Como é que o Ricardo começou a escrever na “Folha de São Paulo”?
É uma boa pergunta.
Não é nada…
O que aconteceu foi: a Bárbara Bulhosa, editora da Tinta da China, é aquilo a que se chama em linguagem técnica uma fuçona. E, não sei como, arranjou maneira de eu ir à FLIP, a feira literária em Paraty. Mas estive lá numa mesa, foi engraçado, correu bem. Aquilo é entre o Rio e São Paulo, um sítio lindo, aliás… Fui a uma livraria no Rio e não só os empregados como alguns frequentadores diziam “eu vi a sua mesa em Paraty”, porque aquilo dava para seguir através da Internet. E depois chegou o convite da “Folha”. E eu disse “sim senhor”.
Logo na primeira crónica do livro escreve que não tem nada para dizer ao público brasileiro. É um público muito diferente?
Bom, eu depois faço a ressalva, até para o público brasileiro não se sentir especial, que não tenho nada para dizer a público nenhum. O problema é que a dificuldade é acrescida por várias razões. Primeiro porque estou a escrever num jornal brasileiro e não domino, nem desejo dominar, a atualidade brasileira. Portanto, isso veda-me uma área sobre a qual não vou escrever. As minhas referências também não são as do Brasil. Não faz ideia das pesquisas absurdas que tenho feito no Google quando estou a escrever. Coisas do género “deixa-me confirmar que eles dizem ‘alguidar'”. Se fosse um livro, não me preocupava muito, mas o tempo de leitura de um jornal é diferente, as pessoas em princípio não leem o jornal com um dicionário ao lado. Por isso, se eles dizem “onibus”, eu não vou dizer “autocarro”.
E eles do lado de lá, ajudam nessa tarefa?
Às vezes enviam um mail a dizer “olha, nesta expressão dizemos não sei quê”. E eu agradeço. E às vezes é uma questão de referências. Sei que se escrever um texto em Portugal e usar a expressão “verão azul” toda a gente, até uma determinada idade, sabe que estou a falar daquela série infanto-juvenil. No Brasil não faço ideia se o “Verão Azul” deu lá, se deu poderá ter outro título. Se falar na “Música no Coração”, lá chama-se “A Noviça Rebelde”. A minha dificuldade aqui era como escrever para um público com o qual não tenho nada em comum, às vezes nem sequer a língua.
Nem isso?
Pode ser enganador, porque se chama português na mesma, mas muitas vezes não é a mesma coisa. O que optei por fazer foi escrever sobre coisas que qualquer ser humano, independentemente da nacionalidade, entendesse, sobre a experiência de estar vivo.
Isso também fez com que fosse mais… “filosófico” se calhar é exagero…
No meu caso talvez. Mas percebo onde quer chegar. E isso leva-me a outra dificuldade ainda. É mais fácil escrever sobre uma coisa específica, escrever sobre…
…matéria fecal, por exemplo, como faz a dada altura.
Exato. Sem dúvida. Ou, por exemplo, escrever um texto humorístico sobre angústia. O âmbito é muito alargado. Convém apontar a mira para um sítio mais específico.
É preciso personalizar essa angústia de alguma maneira.
Sim, arranjar um emblema, um símbolo. Claro que só de vez em quando é que há alterações na língua, mas que às vezes podem ser grandes. O acordo ortográfico procura unificar a ortografia também no sentido de nos aproximar dos brasileiros quando às vezes o problema da aproximação não tem nada a ver com a ortografia. Quando os brasileiros dizem:
“Eu estou parado no acostamento porque a minha perua não tem estepe.”
A gente não percebe uma palavra. O que eles estão dizer é “eu estou parado na berma porque a minha carrinha não tem pneu sobresselente”. É isso.
Como a tradução que faz da canção do Michel Teló:
“Sábado, no divertimento em estabelecimentos próprios, que se prolonga pela noite dentro, geralmente com consumo de bebidas
O conjunto de pessoas que mantêm uma convivência próxima, seja por laços de amizade, familiares ou profissionais, começou a dançar
Ai Jesus, ai Jesus,
assim tu matas‑me
Ai, se eu te apanho
Ai, ai, se eu te apanho.”
É isso. Daí que haja esse contacto com a língua portuguesa, mas de resto não há muita coisa.
Mas é mais fácil hoje saber muito sobre o Michel Temer, por exemplo, sem ter que estar no Brasil.
Às vezes ponho-me a pensar sobre o que faço cá e um cronista português que escreve cá pode estar a falar sobre o António Costa e fazer uma referência ao Sócrates e outra ao Cavaco. Lá não tenho o conhecimento profundo a esse nível. Sei lá quem eram os ministros do Collor? Não faço a mínima ideia.
O Ricardo conheceu o Brasil provavelmente primeiro com as novelas e as canções.
Exato. E também por causa da família, tenho muitos familiares que ainda hoje vivem no Brasil.
Já visitou o país muitas vezes?
Imensas. Vou desde pequeno porque os meus primos vivem lá.
Que zona conhece melhor?
Eles vivem em São Paulo. Mas tive uma tia que vivia no Rio de Janeiro. Gosto muito.
Ainda sobre os avisos que deixou aos leitores brasileiros. Logo ao início, escreveu: “Saber quase nada sobre quase tudo nunca impediu ninguém de escrever nos jornais”. Com isto quer dizer que há muita gente que o faz e não devia?
Não, nada disso. Estou a falar de mim. Quem sou eu para dizer que certas pessoas não deviam escrever nos jornais. não tenho nada contra ignorantes a escrever nos jornais, até porque, muito provavelmente, se se legislasse nesse sentido eu perderia o emprego. E isto dá-me jeito. Uma das grandes vantagens de ter idiotas a falar é a gente poder fazer pouco deles. Dá matéria e é o meu trabalho. No outro dia estavam a dizer “então mas agora admitia-se que uma pessoa viesse defender em público o regresso da escravatura?”. Eh pá, eu adorava. Tinha várias crónicas para escrever.
Há muitas notas e apontamentos pessoais nestas crónicas. É tudo verdadeiro? Dá-me ideia que sim, ou então engana muito bem.
É possível que sejam verdadeiras e é possível que eu esteja mais à vontade porque ninguém me conhece no Brasil. Porque fazer uma revelação pessoal cá tem um peso que no Brasil não tem. Uma vez que agora o livro vai sair cá, está tudo estragado. Mas acho que não faço revelações especialmente problemáticas. Mas dê-me um exemplo.
“O meu pecado favorito é a luxúria, mas sou muito preguiçoso”
Às tantas diz que os seus pecados favoritos são a luxúria e a preguiça.
Sim, sim, isso é verdade. Confirma-se. E no livro explico porque é que escrevi isso. A coisa mais irritante naqueles inquéritos de verão são as pessoas a quem perguntam “um defeito?”. O defeito é sempre “a teimosia”, que é aquele defeito que na verdade é apenas uma idiossincrasia. Ou então respondem “confiar de mais nas pessoas”, que na verdade não é um defeito nosso, é um defeito dos outros. Eu gosto muito de avançar com defeitos verdadeiros.
A preguiça não faz muito mal, mas admitir a luxúria…
Mas acaba por ficar anulada por causa da preguiça, porque evita. O meu pecado favorito é a luxúria, mas sou muito preguiçoso, é mais ou menos isso. Eu penso “e se agora fosse… nah, deixa-me estar sossegado”. A preguiça tempera muito os outros pecados porque impede que o pecador avance. Mas tenho rancor.
É rancoroso?
Sou. Sou rancoroso e tenho boa memória.
Ninguém gosta de assumir que é rancoroso.
Mas ninguém gosta de assumir defeitos nenhuns.
Quando guarda rancor de alguém, o que é que faz?
Nada. Porque o que é que posso fazer? Mandar-lhes uma inspeção de impostos a casa?
Mas esse é um rancor diplomático.
Não é nada. Há ranger de dentes.
Ninguém o vê assim.
Porque é uma coisa caseira.
Tem alguma noção da imagem que as pessoas têm de si? Escreve que não tem muitos amigos. Acho que a maior parte das pessoas quando ler estas coisas vai acreditar.
Não faço ideia que imagem têm e não me posso preocupar com isso porque é o tipo de coisa que não posso controlar. Uma vez estava na Feira do Livro a dar autógrafos e há uma senhora que faz questão de vir ter comigo para me dizer:
“Gosto muito, muito inteligente, muito engraçado, sim senhor, só é pena ser tão convencido.”
Dei uma gargalhada… Quando a senhora se estava a ir embora ainda arrisquei um tímido “o meu analista não concorda muito consigo”. Mas não vale a pena, na verdade.
Mas não acha que tem legitimidade para ser um tipo convencido?
Acha que sim?
Bom… é alto, há muitos homens e mulheres que o admiram a vários níveis, faz o que gosta e parece-me que é bem remunerado por isso.
Percebo isso. Mas a verdade é que a minha autoestima não é especialmente elevada.
E fala disso nestas crónicas.
Cristiano Ronaldo tem licença para dizer “eu sou o Cristiano Ronaldo, nasci num buraco na Madeira e à custa só do meu próprio esforço sou isto? Sou o maior”. De Cristiano Ronaldo para cima, isso é permitido.
Mas o Ricardo, à custa do seu trabalho, também se fez um homem. Falando a sério: as pessoas querem lê-lo, querem ouvi-lo, querem entrevistá-lo.
Agradeço. Mas todos os dias estou em casa a pensar “até quando é que isto vai durar”. Quando é que o mundo vai perceber que isto é tudo uma trapaça? Houve um tempo em que isso não me inquietava. Era só divertido. Hoje inquieta-me um pouco, porque há crianças que dependem de mim… imagine que amanhã as pessoas, um pouco por todo o Portugal, encontram-se no café e dizem “aquele gajo, pá… tu tens comprado a Visão? Porque é que há aquela última página? Aquilo não faz muito sentido, pois não?”. E de repente gera-se uma unanimidade em torno do facto da minha existência ser um pouco descartável. Por isso é que vou poupando. Para essa eventualidade e para a hipótese de o Ricardo Salgado querer atacar-me novamente.
Pode tornar-se empresário.
Não tenho jeito.
Mas vai alargando a sua área de trabalho, comentário político…
Não é bem. Uma vez incluíram-me num questionário a comentadores políticos e eu disse que não sou comentador político, faço comentário humorístico. Comentário político faz o Daniel Oliveira, tem claramente uma intenção política quando está a escrever. No meu caso, a intenção é fazer rir as pessoas. Isso costuma ser olhado, digamos, de cima. “Para que é que isto serve?” Acho engraçado essa ideia do “para que é que serve fazer rir”. É como aquele certo tipo de construtor civil, não são todos, que de repente reúne uma fortuna e compra um quadro. Mas a contragosto. E olha para aquilo e diz “mas para que é que isto serve?”. Essa perspetiva de todas as coisas terem de ter um função como uma esfregona tem… Parece-me uma perspetiva bastante rústica. Tenho apreço pela ideia de fazer rir as pessoas e pelas pessoas que tentam. Contar uma piada, tentar fazer alguém rir, é um gesto de… se calhar amor é uma palavra demasiado forte. É um gesto de preocupação. “Eu vou-te fazer sentir bem, pá.” Em que outro tipo de atividade é que a gente consegue provocar na outra pessoa uma sensação agradável como é a do riso… tirando uma ou duas… mas não há muitas mais. É como chegar ao pé de alguém e dizer “deixa-me dar-te uma massagem nos pés”. É uma coisa altruísta.
“Adoro espancar objetos inanimados”
Para escrever uma crónica precisa de quanto tempo?
Quando me sento para escrever normalmente leva duas horas. Antes disso, em princípio já estive a pensar no assunto. Estive a remoer, a pensar nos temas. E ninguém leva a mal se a crónica não tiver um tema, se tiver mais a ver com o caminho que se foi fazendo.
Ainda dizem que isto não é sério…
A comédia tem má reputação, mas também podemos dizer que tem boa reputação. Eu só vivo disto e não vivo mal. Não me seria possível se a comédia só tivesse má reputação. Isto não seria suficiente para alimentar duas crianças. Mas também me parece inquestionável que tem má reputação. Há várias marcas disso. “O senhor não é sério.” A palavra “sério” tem vários significados. Um deles é “honesto”, o outro é “a pessoa que não se está a rir”. “Oh palhaço” é um insulto. Ninguém diz “oh circunspecto”. Isso não ofende.
E já sentiu que as pessoas não o têm como pessoa séria? O Ricardo coordena uma coleção literária e não o vemos a indignar-se por aí.
Isso da indignação consome muito tempo. E não tenho grandeza moral suficiente para isso. A minha impressão é que as pessoas que estão nas redes sociais têm como subtexto o “eu nunca”. “Eu? Nunca na vida.” Eu não sou capaz. Eu já fiz tudo o que os meus semelhantes fizeram de mais reles. E só não fiz mais porque não tenho tempo ou porque sou preguiçoso. Percebo as piores inclinações das pessoas porque as tenho todas. Era preciso ter uma lata enorme para ir paras as redes sociais dizer isso. Mas há um apelo muito grande em dizer “isso é racista” ou “isso é sexismo”. Mas percebo essa necessidade porque dentro de mim tenho todas essas inclinações.
Não faz uso das redes sociais, mas sabe que os textos que publica são partilhados, coisas que já fez na televisão são partilhadas. E isso ajuda-o a manter a profissão que tem e a alimentar as suas filhas.
Verdade. E a pergunta é: até quando é que o mundo vai aguentar esta farsa? E este tipo, vai parar de estar em casa a coçar-se, a escrever umas crónicas e a fazer um programa, enquanto nós temos empregos sérios e temos de entrar às nove da manhã e aturar chefes chatos?
Mas isso tem um nome.
É sorte.
Sim. Mas do outro lado pode ser inveja. Quem é que não queria fazer isso?
Pois, e é isso que me aflige. Como é que é possível ter esta sorte que eu tenho? Sabe o “Truman Show”? Às vezes ponho-me a espreitar por trás do espelho a ver se está lá alguma câmara. É aquilo que diz o Salinger, sou um paranoico ao contrário, tenho a sensação que as pessoas conspiram para me fazer feliz. E a sensação que dá é que é impossível ter esta sorte. “Então o que é que fizeste hoje?” “Levantei-me, fui ao treino de kickboxing, depois fui dar uma entrevista para o Observador. Em princípio a seguir vou almoçar e depois vou ler.”
Treina kickboxing?
Sim. Gosto muito, é muito giro. Adoro espancar objetos inanimados. Sabe o que são os plastrons?
Não faço ideia.
O treinador põe um painel de esponja nas mãos, são quase umas paredes, e diz-nos que tipo de combinação a gente tem de fazer. E aquilo faz um som que é de facto interessante.
Assim continua a tramar a sua própria imagem…
Pois, porque tenho tempo, não é? Mas atenção: a principal vantagem de ter uma vida como a que eu tenho é o tempo. Não é o que posso comprar, isso não é muito interessante. A principal vantagem é o tempo. No seu caso: hoje tem de passar uma manhã a aturar um gajo. Podia estar sossegado.
Vai ser muito pior transcrever toda esta conversa.
Não precisa de me dizer isso porque já tive de, como se diz na gíria, “desgravar entrevistas”, e é realmente uma chatice.
“Tenho pânico de morrer, pois com certeza”
Nestas crónicas percebe-se que escreveu para um público que não o ia encontrar na rua. Mas não foi muito longe nessa espécie de exercício psicológico. Por exemplo, nas duas ou três vezes que fala da sua família é para dizer mal de si próprio. Tem medo que revelar mais se vire contra si?
Acho má ideia, sim. Escolho não o fazer. E esse é outro dos problemas das redes sociais. A maneira como algumas pessoas entendem a privacidade, que é um entendimento muito diferente do meu. Aquela hipótese de a gente abrir a página de Facebook de um amigo nosso e ver, só com um post, que o Carlos está no restaurante X às 14h30 no Marquês de Pombal com o Vítor, o Miguel e o Filipe, já beberam todos sete canecas de cerveja e ele está a sentir-se eufórico. É de mais. E pode ter implicações várias.
As suas filhas sabem o que faz?
Sim, sabem, mas vagamente. Porque, como calcula, não é fácil explicar.
O que é que elas dizem na escola?
No outro dia o professor perguntou isso à turma, toda a gente foi respondendo. Ela disse “comediante”, e o professor perguntou “a sério?”. Não sei se era um “que sorte a dele” ou um “chamas a isso profissão?”. Mas enfim, têm consciência do que se trata, porque a gente anda na rua. Por exemplo, fui três vezes à Comic Con, o que significa meter três vezes a cabeça na boca do leão. Escolhi horários um pouco menos movimentados, mas ainda assim… espero que elas no futuro valorizem o facto de eu ter ido três dias seguidos à Comic Con. Estou por aí em várias selfies, com a Wonder Woman, o Deadpool…
Neste lado mais pessoal, aborda muitas vezes o facto de já ter mais de 40 anos e o detalhe de que é um ser que um dia vai morrer. Isto aborrece-o de tal maneira que aproveitou estas crónicas para desabafar? Ou é um daqueles corajosos que só tem medo da morte dos outros?
Tenho pânico de morrer, pois com certeza. Há mortes que me afligem mais do que a minha. Por exemplo, a sua morte não me aflige tanto como a minha. A das minhas filhas aflige-me mais do que a minha.
É uma coisa recente?
Não sei se se vai insinuando. Às vezes as pessoas dizem, sobre humoristas, qualquer coisa como “não se consegue falar a sério contigo, desliga o botão um bocadinho”. Essa história, isso a que se chama o botão ligado, é uma maneira de entender as coisas, de olhar para as coisas, que talvez tenha qualquer coisa de anestesia, de fuga. Olhar para as coisas dessa outra maneira alivia um bocadinho. Ainda ontem estive a jantar com um amigo que é médico oncologista…
Um jantar que pode ser complicado…
Não porque o jantar era para falar sobre o Benfica. E uma das coisas que ele estava a dizer é que em 2013 — e não sei se sabe disso, mas é história de Portugal, se não sabe devia ir estudar — o Benfica, ali no espaço de 15 dias, perdeu o campeonato no estádio do Porto. Depois perdeu com o Chelsea em Amesterdão e com o Guimarães para a Taça. E ele diz que a mulher dele, que não é benfiquista, não fez comentários jocosos porque ficou sinceramente convencida de que ele ia morrer. Porque ele começou a perder peso, não falava… o momento em que ele pensou que se calhar tinha de voltar à vida foi quando entrou num sítio onde estavam dois doentes a fazer quimioterapia, doentes bastante frágeis, que olharam um para o outro e comentaram “o doutor Manel está todo fodido”. Dois desgraçados que estão ali com verdadeiros problemas e aquela comiseração: “Coitado deste homem, então não é que em duas semanas perdeu três troféus…” Diz que ali não pôde rir-se, mas que se fechou no gabinete e deu uma boa gargalhada. Mas mais que isso, e esta também é a minha experiência: há basicamente um tipo de pessoas que me aborda de uma de duas maneiras, ou são do Benfica e dizem “então pá, o nosso Benfica?”, ou são de outros clubes e dizem “você só tem um defeito” e eu já sei do que estão a falar. E isto é uma questão de aproximação. A comédia pode ser uma estratégia não só de aproximação, mas de superação, porque pode ser menos difícil lidar com determinadas situações. Esse meu amigo diz que muitas vezes está lá com os seus doentes e os que são do Sporting dizem “oh doutor, você está a esforçar-se tanto na minha na cura como na desse paciente que é do Benfica?”, e ele: “Como é óbvio, não!”. Essa brincadeira é uma maneira de se pensar menos naquilo. As pessoas podem dizer “mas isso não é muito, há pessoas que vão morrer na mesma”. Pois há, mas eu nunca disse que isto era salvador, só disse que isto faz qualquer coisa. Mas por pequena que seja já me parece extraordinária. Não tenho poder para fazer quase nada.
Portanto, o Ricardo até tem emoções, ainda que numa das crónicas deste livro escreva que não tem.
Eu gostei muito dessa sua frase, como quem diz “você quase parece uma pessoa”…
Bom, mas é verdade, escreveu isso. Curiosamente, na mesma crónica em que admite que a sua avó é a pessoa mais importante na sua vida. É preciso ter aqui alguma emoção para escrever isto…
Não sei. Porque é a vida. Os meus pais tinham um emprego que fazia com que… olhe, no outro dia, precisamente na Comic Con, encontrei um tipo que me veio dizer “eu também sou filho de tripulantes da TAP e também fiquei em casa da minha avó, e sempre que falas da tua avó eu sei do que estás a falar”. E arrepiou-se enquanto falava disso. Enfim, são circunstâncias da vida.
“É possível estabelecer vários paralelos entre a poesia e a comédia”
Para si deve dar muito jeito que nos preocupemos com coisas que não têm interesse nem importância nenhuma, não? Sobre pão, sobre a tal matéria fecal…
A palavra “chulé”.
Chulé, sim. Mas se assim não fosse tinha a vida complicada, não era?
Era. Por isso, quando me ocorrem coisas tomo notas. Sabe, é possível estabelecer vários paralelos entre a poesia e a comédia. Uma certa reflexão sobre o próprio discurso, uma certa operação de retirar peso às coisas, uma obsessão com essa ideia de leveza… mas também a atenção, de um certo ponto de vista desproporcionada, àquilo que é infinitamente pequeno. A poesia faz isso muitas vezes, quando fala sobre uma pétala, por exemplo. E a comédia também faz isso, como por exemplo quando aborda o facto de a palavra “chulé” não ter tradução noutras línguas.
Usa muitas referências literárias em tudo o que escreve. Já leu tudo a que faz referência ou tem uma lista de citações chave para determinados momentos?
Se essa lista existisse… Tenho boa memória e consigo lembrar-me de várias coisas, mas o sistema que uso é o seguinte: estou a ler uma coisa qualquer e há uma frase que me chama atenção e faz-me pensar “isto qualquer dia pode ser a primeira pedra em cima da qual vou construir uma crónica”, e então tomo nota. Por isso às vezes são coisas tão obscuras, uma nota de rodapé num livro do Camilo…
Quando diz que tem boa memória, é para isto especificamente ou para tudo em geral?
Para tudo em geral.
Por exemplo?
Dê-me só um minuto.
[Ricardo levanta-se, sai da sala onde a entrevista está a acontecer, para regressar pouco depois com uma caneta e uma folha de papel em branco. Começa a escrever letras soltas, até que se percebe a forma de um teclado QWERTY, com as letras nos sítios certos]
Isso é um teclado?
Sim. Acho que é assim. Eu gosto disto, destas coisas. Gosto de máquinas de escrever, por exemplo.
Então ainda bem que tem tanto tempo, porque pode ler.
E posso aplicá-lo a fazer este tipo de coisas.
E tem mesmo uma biblioteca, como diz numa das crónicas, na mesma em que confessa que a sua mulher trata mal os seus livros.
Eh pá, dá cabo de tudo, pá. Uma selvagem. Está a ler um livro e depois há isto, este objeto, chama-se marcador. O que é que ela faz? Deita fora e usa a badana. Fica tudo dobrado, tudo desbeiçado. Mas sim, tenho uma pequena biblioteca.
Dessa biblioteca, qual a percentagem de livros que já leu?
Não sei… aliás, quando o carpinteiro vai lá acrescentar mais prateleiras, uma das perguntas clássicas é “eh pá, oiça lá, você já leu isto tudo?”. Não só não li como não vou ler. É óbvio que nunca vou ler os livros todos que ali tenho. Mas várias vezes os livros não são para ler, são para consultar, primeira coisa. Outras vezes, sei logo no ato de o comprar que é provável que nunca vá ler aquele livro. Mas tranquiliza-me ter ali o livro. Se for preciso, ele está lá. Tenho muitos livros no iPad porque dá jeito, vamos de avião e tenho ali 200 livros… é a tal coisa, tenho ali à disposição. E se o avião cair numa montanha e ficarmos lá dois meses até que alguém nos venha buscar…
Tem noção que mais uma vez vai parecer um rapaz da esquerda caviar, porque o carpinteiro vai a sua casa acrescentar prateleiras na biblioteca.
Eu não tenho nenhum problema com a esquerda caviar. Na primeira edição do Governo Sombra, apresentei-me como fazendo parte da esquerda caviar provocatoriamente porque… eu gosto da esquerda. Não sou grande fã de caviar, mas aprecio, e achava boa ideia que toda a gente pudesse ter acesso a caviar. Não vejo que haja contradição entre ser de esquerda e ter dinheiro ou gostar de coisas boas. Talvez haja uma contradição entre ser franciscano e isso. E há muita gente que confunde ser de esquerda com ser franciscano. E bom, ser de esquerda não é a mesma coisa que ser franciscano. Já vejo contradição, por exemplo, no caso Robles, isso vejo, uma óbvia contradição. De resto, nada de contra.
“Tenho 1,93m, peso 90 quilos, mas muito facilmente peso 120”
Há uma crónica em que confessa que não fez muitas coisas que queria ter feito, não sabe bem se está arrependido… O que é que gostava de fazer? É porque ainda tem tempo…
Na verdade já não tenho assim tanto. Gostava de saber cantar, por exemplo. Já não vou a tempo.
Tem é a sorte de, se quiser formar uma banda, mesmo que não saiba cantar, qualquer pessoa vai querer ver e ouvir.
Ora aí está. Mas sabe, no outro dia estava a queixar-me ao meu treinador de kickboxing que a minha técnica vai melhorando, mas não é muito boa, devia ter começado mais cedo. Ele disse “eu também comecei tarde. Comecei com 15 anos”. Ora eu tenho 44…
Mas começou no kickboxing porquê, precisa de fazer exercício?
Preciso. Tenho 1,93m, peso 90 quilos, mas muito facilmente peso 120. Muito facilmente. Se estiver um ano sem fazer nada, a comer, a beber e a fumar o que me apetece, muito rapidamente fico com 120 quilos. E portanto, ou faço dieta e não faço exercício físico, ou como, bebo e fumo tudo o que me apetece e faço exercício físico. E portanto, optei por esta última. Estou na forma física invejável que podem constatar. Estou na melhor forma da minha vida, devo dizer. Aliás, fui jogar à bola com amigos meus do liceu, que na altura quando vinham contra mim, que pesava 65 kg, me atiravam ao chão, e agora são eles que caem. Achei aquilo extraordinário.
Joga bem?
Não.
Joga a que posição?
Onde for preciso.
Então de facto joga mal.
Eu disse. Quando jogava com estes meus amigos, do colégio São João de Brito, ali no Lumiar, no 10º, 11º e 12º ano, a gente tinha uma equipa, e basicamente jogávamos onde havia colégios jesuítas, e mesmo não jesuítas, jogávamos com o Valsassina, o Colégio Militar… Eu era o ponta-de-lança. E sabe quem era o número 10? O playmaker da nossa equipa?
Não…
Era Jorge Rosa, que hoje conhecerá pelo nome de Kapinha, com “K”. Que era dos D’Arrasar. E ainda há fotografias do plantel da equipa, e lá está o Jorginho.
Ainda bem que fala no colégio, o colégio católico onde estudou. Nas crónicas que estão neste livro faz algumas referências religiosas, ao catecismo da igreja católica. É porque faz as suas orações de vez em quando?
Não, não faço orações, sou ateu, mas Deus está muito presente para mim porque existe à minha volta, existiu durante a minha infância e juventude, nos colégios que frequentei. E há sempre uma tensão entre existir e não existir, no sentido em que nunca existiu para mim, intimamente, mas uma vez que existe para as pessoas que me rodeiam, também existe para mim. E uma vez que um dos livros essenciais da nossa civilização é a Bíblia, existe. Esse texto sobre a aula de Religião e Moral mostra exatamente o que se passou.
Pode recordar de que trata o texto?
Era o padre Manuel, de quem gostava muito — e nos colégios onde andei não havia disso que está a pensar, pelo menos isso nunca se me apresentou. Mas o padre Manuel estava a dar aulas de Religião e Moral a adolescentes, que começam a ter aquelas inquietações… o padre ficava até marotamente satisfeito de falar sobre sexo. Ele até dizia “se me virem na rua, se forem com alguns amigos, digam ‘aquele ali é meu professor’. Eles perguntam ‘professor de quê?’. Vocês respondam ‘professor de sexo’.” Bom, uma vez, o padre disse assim: “Ponham num papel duas inquietações que tenham. A gente põe num chapéu, baralha, depois eu tiro e vou lendo”. E assim foi e apareceram as coisas típicas da adolescência, como “o que é a masturbação?” — que acho que foi a Cristina que perguntou. Quando ele tirou o meu papel, a minha primeira pergunta era “o que é que estou aqui a fazer?”. A sala rebenta numa gargalhada, um estoiro, um trovão. Porque a pergunta era suficientemente ambígua para não se perceber se estava a falar no planeta ou na aula.
Como é que resolvia as suas inquietações?
A leitura sempre foi uma ajuda. Que hipótese é que sobra a quem não tem irmãos? No Externato da Luz as aulas eram das nove às cinco, provavelmente, ou das oito às quatro. Das quatro às seis, para os miúdos que não saíam logo, havia duas horas chamadas “estudo”. Eu fazia os trabalhos em cinco minutos, depois pegava no livro de português, que tinha vários textos, e começava a ler. E foi assim que fui conhecendo vários autores. Por exemplo, o José Gomes Ferreira eu conheci porque havia num desses livros um excerto do Gaveta de Nuvens, um texto muito engraçado sobre um bêbedo que anda na rua a abordar as pessoas e a dizer “não deixem morrer as palavras”. Antigamente havia palavras tão bonitas que agora já não se usam, como por exemplo “solerte”, “roaz”, “estólido”, que quer dizer “estúpido”. Achei graça àquilo e fui comprar livros do José Gomes Ferreira. E assim aconteceu com muitos outros.
“Era aquilo que uma criança ambicionava ser: incansável no meio campo do Benfica”
Curioso é notar que há pouco Benfica nestas crónicas.
Mas há algum.
Há Eusébio. E há Carlos Manuel. Sobre o Eusébio, que o Ricardo diz que é Deus… se o Cristiano Ronaldo jogasse no Benfica, era ele Deus, ou continuava tudo na mesma?
Isto não é uma brincadeira… É muito provável que, objetivamente, se formos olhar para números, que o Cristiano Ronaldo tenha pulverizado todos os recordes estabelecidos nesta modalidade pelos maiores de sempre. A frieza dos números pode dizer que se Cristiano Ronaldo não é o melhor jogador de sempre, é quase.
Mas esta sua religião não tem a ver com números.
Não, nada a ver. A verdade é que nunca vi o Eusébio jogar. Mas as imagens que vi… nunca vi ninguém fazer aquilo. Há poucos dias, num filme documental sobre o Eusébio, há umas imagens incríveis. É livre a favor do Benfica, descaído para a direita. Não faz mal, ele marca com o pé esquerdo. Como é óbvio, já vi jogadores que jogam com os dois pés com muita facilidade, mas a marcar bolas paradas? Não me lembro… Há um lance nesse filme, que é de um Benfica-Porto, em que o Eusébio marca um canto direto com o pé esquerdo. Nunca tinha visto uma coisa assim. Nunca tinha visto.
E porquê o Carlos Manuel?
Naquele tempo, o Benfica a que sou apresentado tem dez portugueses e o Filipovic, ou dez português e o César, que era brasileiro. E esse Benfica é extraordinário, com Bento, Pietra, Bastos Lopes, Veloso, Carlos Manuel, Diamantino, Chalana, Shéu, Alves, Nené… o Nené é um jogador extraordinário. O Pedro Ribeiro está a fazer um livro sobre o Benfica no primeiro ano do Eriksson, que é para ele o melhor Benfica que ele viu, e acho que ele está a ter dificuldade em falar com o Nené. Porque é uma pessoa muito reservada. E é uma pena. E foi a esse Benfica que eu fui apresentado. Lembro-me de ter revistas em casa e haver uma fotografia do Carlos Manuel… Porque os jogos não davam assim na televisão, era preciso ir ao estádio, ou então esperar pelo Domingo Desportivo, que tinha resumos mas alguns incompletos. Lembro-me de ouvir “infelizmente não temos imagens do segundo golo do Beira-Mar por razões técnicas a que somos alheios”… bom, e lembro-me dessa foto, que por baixo dizia “o incansável Carlos Manuel, a locomotiva do Barreiro”. E era aquilo que uma criança ambicionava ser. Ser incansável a jogar no meio campo do Benfica.
Mas prefere o que existe agora, os canais de desporto e os jogos na TV, certo?
Sim, claro. Mas já vi o Benfica jogar em São Petersburgo, com menos 20 graus, tinha todos os casacos que tenho em casa, mas dois degraus abaixo na bancada estavam russos em tronco nu.
A sua família é do Benfica?
É. Com as minhas filhas foi democrático. “Está aqui o cartão de sócio e a camisola, vocês escolhem o número que põem na camisola.” Democraticamente. Quando estão a ser sorteados os adversários da Liga dos Campeões, a minha mulher está a torcer pelas cidades mais giras para visitar e eu estou a torcer pelos clubes mais fáceis, o que é muito raro coincidir. Porque eu não quero ir a Madrid ou Barcelona ou Londres. Não quero. Quero ir a Pilsen, na República Checa.
As pessoas que comprarem este livro de crónicas diretamente à editora levam como extra um outro, mais pequeno, sobre futebol. Quer apresentar este segundo livro?
Esta é uma maningância interessante. Quem comprar este diretamente aqui à casa recebe este de brinde. Porque é que este é um brinde? Porque a “Folha de São Paulo” ia mandar cronistas para a Rússia, a propósito do Mundial. Disseram-me: “Queremos que escrevas uma crónica três vezes por semana enquanto o Mundial dura. E num período do Mundial vás para lá.” Estive na Rússia três dias, estive em Saransk seis dias e depois voltei para Moscovo mais três. Eh pá, Saransk… é uma coisa indescritível…
Como assim?
É péssimo. É feio, não tem nada. Mas bom, escrevi essas crónicas, não fazia muito sentido incluí-las neste livro, e portanto surgiu este à parte. E então começo crónicas dizendo: “O adepto de futebol sabe muito de geografia, mesmo quando não sabe que sabe. E é verdade. A gente sabe. E outras coisas. Como é que os romanos chamavam ao rio que banha Sevilha? Bétis. A gente sabe. Só em termos de rios, temos o Rio Ave, e por causa do futebol sabemos que passa em Vila do Conde. A gente sabe que o rio que banha Buenos Aires é o rio Prata, por causa do River Plate. Que em Krasnodar, na Rússia, passa um rio chamado Kuban. Só por causa da bola. Por isso incentivo todas as pessoas, crianças sobretudo, que têm tão fracos incentivos para ver futebol, dá tão poucas vezes na televisão…
E a si, o que é o futebol lhe deu que nada mais lhe podia ter dado.
Atenção, não me interprete mal, gosto de futebol, mas do que eu gosto é do Benfica.
Se tivesse que escolher: Portugal campeão do mundo ou…
Eh pá, não vale a pena. Que seja pelo Troféu Guadiana. Às vezes o Torneio do Guadiana condiciona toda a época. Sabia o que me ia perguntar. Fiquei mesmo contente quando ganhámos o Europeu. Fiquei até surpreendido com o meu contentamento. Achei aquilo realmente uma coisa bonita. Até da maneira como foi, arrancado a ferros, contra tudo e contra todos, o Cristiano Ronaldo lesionado, traças do tamanho de caniches, a chatear o rapaz… Depois a imagem do Renato Sanches, com 19 anos, cinco metros à frente do Presidente francês, com a taça na mão e a gritar “e esta merda é toda nossa, olé”. Mas sempre que me refiro a futebol estou a referir-me ao Benfica. Morava, até aos 24 anos, na Rua dos Soeiros. É uma que vem da Estrada da Luz, sobe e quem vai a pé, a certa altura, aparece-lhe o Estádio da Luz. Quando era pequeno, o meu primo António, ao domingo às 16h00, que era quando se jogava à bola — não havia cá estas mariquices de segunda à noite — ele tocava, eu descia e íamos os dois. Aquele percurso, com outras pessoas ali ao lado… às vezes vejo os peregrinos a caminho de Fátima e penso “já participei numa coisa destas”. A questão é a alegria. É uma alegria muito intensa.
Esta conversa também foi uma alegria. Foi, não foi?
Claro. Uma experiência inolvidável.