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"O princípio e o fim da vida são coisas que me dizem muito pouco, talvez porque perdi a minha mulher este ano, antes disso já tinha perdido a minha cunhada e a minha irmã. Em quatro anos morreram três das mulheres mais importantes da minha vida e talvez por isso passei a relativizar muito mais a questão do tempo"
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"O princípio e o fim da vida são coisas que me dizem muito pouco, talvez porque perdi a minha mulher este ano, antes disso já tinha perdido a minha cunhada e a minha irmã. Em quatro anos morreram três das mulheres mais importantes da minha vida e talvez por isso passei a relativizar muito mais a questão do tempo"

João Tuna

"O princípio e o fim da vida são coisas que me dizem muito pouco, talvez porque perdi a minha mulher este ano, antes disso já tinha perdido a minha cunhada e a minha irmã. Em quatro anos morreram três das mulheres mais importantes da minha vida e talvez por isso passei a relativizar muito mais a questão do tempo"

João Tuna

Ricardo Pais: "Francamente, não conheço muitas pessoas nobres no teatro português"

Prestes a regressar com uma criação própria ao Teatro Nacional S. João, a sua eterna casa, o encenador Ricardo Pais fala de vida e da morte, do legado que deixou e do tempo que aprendeu a relativizar.

É difícil, para não dizer impossível, falar de teatro em Portugal e não mencionar o nome de Ricardo Pais. Queria ser ator, mas na escola, em Londres, aconselharam-no a seguir encenação e, pelos vistos, não se enganaram. Dirigiu dois teatros nacionais, mas foi no Porto que mais revolucionou o panorama cultural. Durante 15 anos foi diretor artístico, cargo que acumulou com o de administrador, do Teatro Nacional São João, casa que continua a chamar sua. Ali desbravou caminho, criou públicos, formou atores e deixou uma marca indiscutível na cidade. Saiu cansado, nostálgico e com o sentimento de que ainda deixou coisas por fazer.

Ensinou cinema, encenou grandes clássicos da dramaturgia e raramente se arrependeu do que concretizou, tanto no palco como na vida. Célere na voz e no pensamento, Ricardo Pais tem 75 anos e a certeza de que tudo passou demasiado depressa. Rejeita olhar para o futuro ou para o passado, prefere permanecer “mais ou menos parado no tempo”, um tempo que aprendeu a relativizar graças à morte.

Assertivo, exigente e com um espírito crítico apurado, sentiu sempre o peso de uma responsabilidade, admite que já faz parte da prateleira dos mestres, mas pouco se importa com o que pensam dele. Não tem dúvidas de que a cultura na política é “um berloque como outro qualquer”, lamenta que Portugal tenha “uma crise de protagonistas” e garante que há gente a mais a fazer teatro.

Para o encenador, os processos aparentemente revolucionários nas artes cénicas só as fazem regredir, talvez por isso ocupe cada vez menos o lugar de espetador. “Não frequento muito o teatro, estou muito mais interessado sobre aquilo que é o meu trabalho e o trabalho de duas ou três pessoas, não saio muito daí.”

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A música, a par do teatro, é outra das suas grandes paixões e em “Talvez… Monsanto” junta as duas artes no mesmo palco. É com este espetáculo músico-cénico, resultado de vários encontros e reencontros felizes, que regressa ao Teatro Nacional São João, de 3 a 5 de dezembro, trazendo na bagagem textos da música tradicional, poemas de Ruy Belo, o grupo das Adufeiras de Monsanto e a interpretação de Luísa Cruz.

Ricardo Pais reencontrou-se com o grupo de folclore das Adufeiras de Monsanto para construir o seu último projeto

Fez 75 anos, lida bem com a idade? É preconceito ou de facto há uma idade em que se começa a pensar melhor em como fazer as coisas ou no que fazer?
Faço anos naquela data fatídica que é o 11 de setembro. Lido muito bem com o passar do tempo, mas não penso muito nisso. Posso dizer que com a idade verifico que me lembro de coisas a mais por ser já tão velho. Dou comigo, por vezes, a contar coisas a um elenco, em que a pessoa mais velha terá 40 ou 50 anos, e há detalhes que os deixam espantados pela sua antiguidade. Dizem que tenho uma memória excecional, não tenho bem a certeza disso.

Poucos continuam ativos num universo criativo com a sua idade. A idade pode dar mais poder ou legitimidade?
Não necessariamente. Nunca pensei nisso muito a sério, nunca relacionei a idade com a prática profissional ou o estatuto. Fui andando. Aos 50 achei que já tinha passado para uma idade muito adulta, hoje, em perspetiva, já passaram 25 anos, e é quase a mesma coisa. Sinto que passou tudo muito rápido. Estava mesmo agora a dar os parabéns a um amigo e estava a dizer-lhe que agora a vida se prolonga mais. No entanto, temos dois inconvenientes, temos muito mais tempo para a frente, mas se calhar muito pior tempo para a frente. O princípio e o fim da vida são coisas que me dizem muito pouco, talvez porque perdi a minha mulher este ano, antes disso já tinha perdido a minha cunhada e a minha irmã. Em quatro anos morreram três das mulheres mais importantes da minha vida e talvez por isso passei a relativizar muito mais a questão do tempo.

Gasta tempo a pensar no que fez? Olha muito para o passado ou olha mais para o futuro?
Não olho nem para o passado nem para o futuro, estou mais ou menos parado no tempo, a fazer aquilo que devo fazer e muito contente por ir fazendo. Não me preocupo muito com o que não fiz, fiz aquilo que me foi possível e fiz muita coisa que me deu muito prazer. Depois para a frente, venha o que vier. Francamente não estou muito preocupado, porque já acho que se não fizer nada, também seria uma pessoa muito feliz.

Tem saudades de ser diretor do Teatro Nacional São João, onde esteve durante 15 anos?
Não, nenhumas. Tenho nostalgia do que se fez e se conseguiu nesse tempo e do significado que isso adquiriu no Porto, mas também nacionalmente e internacionalmente. Percebo que o meu tempo foi um tempo de escola profundamente enraizado no essencial do teatro ou das artes cénicas e que esse tempo, em que nos reconhecíamos obrigatoriamente como aprendizes e educadores, não é do hoje.

Foi difícil desligar-se das funções que tinha? Foi o primeiro a acumular o cargo de diretor artístico com o de administrador.
Saí em plena crise e nessa altura imaginei o teatro de maneira completamente diferente, consegui vir para casa e imaginar isso. Estava ainda muito aberto às várias adversidades que foram surgindo ao longo dos tempos, porque isto começou numa época áurea da cultura portuguesa e não acabou exatamente assim. Foram diminuindo as boas condições, mas isso nunca foi para mim propriamente um problema.

Saiu com o sentimento de missão cumprida ou achava que ainda tinha muito por fazer?
Penso que ainda tinha a capacidade de regeneração daquilo que estava conquistado, eventualmente com outros meios e noutro contexto. Quando saí, estava decididíssimo a sair, aliás, fui instado por toda a gente, incluindo o então ministro, a não vir embora, mas achei que não devia, porque não tinha forças. Na altura estava muito exausto. Assumir as responsabilidades de administração e de direção artística é quase um suicídio e estava mesmo muito cansado quando me vim embora, por isso, não fiquei a pensar no que faria a seguir. Quando vim para casa, aí sim, comecei a imaginar vários cenários e fui explicando aos meus colegas e sucessores.

O cansaço foi mesmo a principal razão?
Sim, acho que sim. Tinha imposto para mim próprio não passar muito daquela idade, porque receava, e acho que é um receio legítimo, claudicar na minha omnisciência. Sempre trabalhei como se soubesse tudo, mesmo sabendo que não sabia, e acho que isso com o tempo se perde. Claramente uma pessoa vai-se cansando, vai tomando decisões menos ponderadas, mais precipitadas ou menos boas.

Arrepende-se de alguma coisa?
Não, nada.

"Se for perguntar a um diretor de um teatro nacional qual foi o legado da Amélia Rey Colaço, eu gostaria muito de ouvir a resposta."

Sabe o que é preciso para se ser um bom diretor de um teatro?
Não faço ideia, depende inteiramente dos protagonistas. Os diretores dos teatros ou das empresas públicas, que são tendencialmente quem avança para esses cargos ou para essas funções, sabem que têm uma responsabilidade muito grande. Acho que há uma crise de protagonistas muito grande, apesar de haver diretores de muito sucesso. Aquilo que vivi foi o desprendimento total do poder, ao mesmo tempo que um aproveitamento quase eufórico daquilo que tínhamos, porque o equipamento do São João era fantástico e as pessoas eram fantásticas. Sempre achei que eram responsabilidades realmente muito grandes e eram também preciosas armas de desenvolvimento teatral e cultural. Acredito que para se potenciar isso sem ter o próprio interesse, como artista ou homem do poder, é em si mesmo um exercício de nobreza e eu, francamente, não conheço muitas pessoas nobres no teatro português, devo dizer.

Porque considera existir em Portugal uma crise de protagonistas?
Não faço a mais pequena ideia. O país é completamente desmemoriado, se perguntar à maior parte das pessoas quem foi Amélia Rey Colaço as pessoas não sabem. Não é que tivessem idade para propriamente terem sabido, mas as pessoas não precisam de conhecê-la, precisam é de conhecer o legado que ela deixou. Se for perguntar a um diretor de um teatro nacional qual foi o legado da Amélia Rey Colaço, eu gostaria muito de ouvir a resposta.

Dirigir um teatro nacional exige uma pressão extra relativamente a um teatro municipal, por exemplo?
Como diria o Jacinto Lucas Pires: é tudo uma questão de escala. Do alto, os elefantes parecem formigas.

Antes do São João, dirigiu o D. Maria II durante um ano. Nesse sentido, quais as diferenças entre o Porto e Lisboa?
Há diferenças enormes. Nunca fiz muita questão de comparar o que aconteceu no Porto com Lisboa, o que fiz no Porto no meu tempo foi uma honra, ao termos criado um modelo de teatro nacional que finalmente funcionou no pós 25 abril. Há diferenças grandes entre as duas cidades, uma delas é que Lisboa está aparentemente mais perto do poder e, por outro lado, é sempre privilegiada relativamente ao resto do país, aliás, como são todas as capitais, é quase um síndrome. A verdade é que o prestígio que ganhámos no Porto com as pessoas que vinham ao domingo de comboio de propósito para ver espetáculos, a euforia que foram os primeiros anos do teatro e depois quando regressei em 2000, com a entrada para União dos Teatros da Europa e a continuidade de um trabalho de internacionalização, foi tudo muito bom. Foram coisas que acho que só poderiam ter acontecido no Porto. O Porto tem uma capacidade de acolhimento muito grande, no que toca ao público e às instituições. Claro que um teatro municipal no Porto ou em Lisboa podem ter muita importância, mas numa cidade mais pequena não têm uma importância por aí além. Pode ter uma importância grande, mas nunca é suficientemente marcante para criar um polo de atração absolutamente inescapável.

Defende que os diretores artísticos deveriam fazer parte dos conselhos de administração dos teatro?
Sim, é uma coisa que defendo acerrimamente. Por lei podem fazê-lo, mas não há um único que o queira fazer. Um teatro é o seu reportório, a sua prática cénica, o prestígio do seu trabalho artístico e tudo isso depende da administração, dos meios e da relação que se estabelece com as políticas culturais. Apesar de tudo, num teatro nacional não se pode dizer que o Tiago Rodrigues ou o Nuno Cardoso sejam artistas independentes, não são. São artistas que foram convidados pelo Estado a desempenhar funções e isso é uma inevitabilidade, portanto, deviam poder partilhar da carga que se tornou absurdamente burocrática da administração. Além disso, as grandes decisões de qualidade baseiam-se nos meios que os teatros dispõem e esses meios condicionam completamente a atividade artística. Não há razão nenhuma para um diretor artístico não fazer parte da administração.

Se o convidassem para ministro da Cultura, aceitaria?
Nunca o fariam e eu nunca aceitaria.

Porquê?
Não tenho qualquer capacidade. Toda a minha capacidade de gestor é a minha capacidade de encenador. Só fui um gestor porque fui um encenador, aliás, o primeiro ato de gestão é a encenação de um espetáculo no teatro. De resto, acho que os ministros da Cultura não interessam nada, desde Manuel Maria Carrilho não interessam nada. Há um ou outro gesto interessante, mas os ministros da Cultura não interessam porque a cultura nunca interessou à política. É um berloque como outro qualquer. Claro que há diferenças entre haver um secretário de Estado da Cultura e um ministro da Cultura, mas a diferença tem que ser expressiva. Não é porque se senta num conselho de ministros que um ministro tem poder, toda a gente sabe isso.

"O princípio e o fim da vida são coisas que me dizem muito pouco, talvez porque perdi a minha mulher este ano, antes disso, já tinha perdido a minha cunhada e a minha irmã. Em quatro anos morreram três das mulheres mais importantes da minha vida e talvez por isso passei a relativizar muito mais a questão do tempo."

Que relação acha que os portugueses têm com o teatro? É um espelho ou é uma consequência da relação do poder político com o teatro?
Sinceramente, nunca me debrucei sobre isso. Não frequento muito o teatro, estou muito mais interessado sobre aquilo que é o meu trabalho e o trabalho de duas ou três pessoas e não saio muito daí. Mesmo no estrangeiro, deixei de ver teatro com frequência. Só penso em mim e no meu trabalho, já vou muito pouco ver o trabalho de amigos e às vezes sou bastante injusto com isso.

Isso não pode ser encarado como um ato egoísta?
Não, seria egoísmo se fosse diretor de um teatro e não conhecesse o que se passa e não fosse ver com o carinho, o sentido crítico, o entusiasmo e solidariedade com que fui ver tudo aquilo convidei para vir, ajudei a co-produzir ou comprei internacionalmente.

Mas não lhe interessa a relação e a reação do público?
Uma coisa é gostarmos de ter público, e eu não me posso queixar, mas como artista, tenho sempre imensas dúvidas sobre o meu trabalho e só gosto dele até ao momento em que ele chega ao público. Assisto sempre ao “Turismo Infinito” há 13 anos com imensa comoção, mas preferia estar sozinho na sala. Isto não exclui, bem pelo contrário, o meu empenhamento e aquela que foi a minha luta por construir um público que cresceu exponencialmente a partir do São João, que continua a ser a casa onde me sinto melhor. O público do teatro aumentou de forma considerável, até agora com a redução da lotação das salas por causa da Covid-19, os números continuam a ser reconfortantes.

O Ricardo também foi professor, sente que é visto por muitos como um mestre, um exemplo, uma referência?
Ultimamente, tenho sentido mais. Presumo que quando as pessoas passam para uma espécie de prateleira começam rapidamente a ascender à categoria de mestre. A responsabilidade disso não sinto, agora que isso possa ser verdade, admito que sim. Tenho muita pena de não ensinar. Ensinei em cinema, nunca em teatro, a não ser em alguns seminários. Tenho principalmente muita pena de não ensinar encenação, estão sempre a convidar-me para fazer coisas curtas. Estão-se a graduar alunos em escolas superiores de teatro como encenadores, mas ensinar encenação não tenho bem a certeza que se esteja fazer por aquilo que vejo no palco, quando vejo.

Qual é a escola Ricardo Pais?
O meu modelo foi a escola que frequentei em Inglaterra. Aprende-se muito mal teatro em Portugal e esta espécie de processo revolucionário em curso, este acesso absurdo de imaginações fantasiosas sobre o que o teatro pode ser por via da internet ou pelos grandes temas do corpo, da cor da pele ou do politicamente correto, lembra-me imenso o facilitismo que o teatro sofreu a seguir ao 25 de abril e tudo isso puxa-nos anos para trás. Ao contrário do que parece, em vez de estarmos a evoluir muito, acho que estamos a regredir muito e não é por acaso que tanta gente faz teatro. Acho que faz gente de mais.

Aos 75 anos, o encenador natural de Leiria garante que há gente a mais a fazer teatro em Portugal

João Tuna

Como surge a peça “Talvez… Monsanto”?
Ele cruza-se com dezenas de espetáculos meus, porque paralelamente aos meus espetáculos de texto, às peças encenadas mais ou menos canónicas, em 1978 fiz uma que não imaginava ser capaz de fazer. O José Ribeiro da Fonte convidou-me a fazer o  espetáculo “Saudades: Um Hetero-Cabaret-Erosatírico”, construído a partir de pequenos trechos, músicas e dramaturgias. Tal como na escola, onde eu queria estudar como ator e me disseram que era melhor ser encenador e pelos vistos não se enganaram, também o José viu nessa altura que eu tinha talvez uma capacidade plural da perceção sensorial dos espetáculos, que incluíam o som, a luz, a imagem e o movimento. Ele achou que isso claramente potenciaria a encenação de uma coisa criada de raiz a partir de músicas que iam do cabaret à revista portuguesa. A partir desse espetáculo, que foi um sucesso, senti-me mais ou menos legitimado a explorar mais esse universo, motivado também pela minha paixão desde sempre pela música.

Também se cruza com o “Raízes Rurais, Paixões Urbanas” de 1997.
Sim, esse já foi uma encomenda muito particular, onde estiveram pela primeira vez a Adufeiras de Monsanto, que agora, 23 anos depois, regressam ao meu abraço e ao meu carinho.

Como aconteceu esse reencontro?
Apenas o propiciei naquilo que é um exercício muito típico meu que é o exercício de networking, de pensar que aquelas pessoas combinam com outras e é preciso juntá-las para fazer um rede de criação, numa espécie de coabitação que é o que este espetáculo é. A ideia terá sido minha, mas nasceu de circunstâncias. O percussionista Rui Silva, que já trabalho comigo no Teatro Nacional São João, tornou-se adufeiro e um dia quando veio para os ensaios do “Al Mada Nada” (2014), disse-me que tinha acabado de chegar de Monsanto, onde as adufeiras lhe tinham falado melancolicamente de mim. Achei aquilo muito curioso e fiquei a pensar que um dia os devia juntar. Falei disto ao guitarrista Miguel Amaral e ele disse que seria interessante fazer uma experiência sobre a ligação de algumas do fado com a música da Beira Baixa, algo iniciado por José Afonso, aliás a “Senhora do Almortão” é o último trecho cantado neste espetáculo.

Introduziu também a atriz Luísa Cruz.
Sim, a Luísa é uma atriz extraordinária e canta muito bem. Infelizmente, teve muito poucas oportunidades até agora de mostrar o que é capaz de cantar, tem inclusive um disco de fado gravado no São João, chamado Quando Lisboa Anoitece. Além disso, toca adufe e clarinete, senta-se com as adufeiras e faz todo o trabalho delas com elas, inclusive trocam impressões sobre a forma como se borda. A Luísa é determinante neste espetáculo e, com Simão do Vale, diz textos de Ruy Belo, escritor que resolvi chamar a Monsanto, porque Ruy Belo era um homem muito mais do Ribatejo e da beira mar.

Pode dizer-se que o espetáculo é uma vénia à portugalidade, à tradição, às raízes?
Nunca pensei na portugalidade, isso é uma treta que se vende em folhetins da chamada promoção cultural, nunca tive qualquer preocupação com isso. Gosto imenso do que é português, mas também gosto imenso do que é alemão, francês ou italiano. Não tenho qualquer missão portucalense, gosto de música e tenho um especial carinho e respeito pela música portuguesa. Dei comigo a perceber que se tivesse a humildade e a generosidade de a tratar como trato um texto de Shakespeare ou um Gil Vicente, provavelmente só teríamos todos a ganhar com isso. Este meu interesse pela música portuguesa nunca teve uma intenção patriótica, o que é arte, é arte. O mal são as confusões que se fazem à volta da arte popular.

É principalmente conhecido por encenar grandes clássicos da dramaturgia universal. Também gosta de dar prioridade ao que é mais contemporâneo ou vai sempre às raízes?
Se for às raízes elas ficam lá, eu sou mais à frente com tudo, ou pelo menos tento. Talvez esteja a ser pretensioso, mas pelo menos tento.

"Se reparar, no setor cultural quem se manifesta mais são as pessoas do teatro e das artes cénicas, pouco se fala nelas e quando aparecem pergunto-me muitas vezes se as pessoas sabem quem elas são e o que fazem."

Estamos em plena pandemia e quase todos se sentem legitimados a ter uma opinião ou posição sobre ela. Qual é a sua?
Estou a ver se me safo da Covid, desde o princípio que tenho os cuidados todos, até porque sou asmático, embora moderadamente. De resto, acho que é uma espécie de regime de terror que ninguém estava preparado. A minha mulher morreu no hospital de São João quando a Covid estava a invadir o hospital, portanto, assisti à paranoia institucionalizada que aquilo gerou e não posso deixar de perceber o quanto a saúde pública está em perigo neste momento. Nesta segunda vaga fui capaz de me ter assustado um pouco mais, mas nunca me assusto muito com estas coisas, embora esteja atento.

Tem medo de morrer?
Não tenho medo de morrer, pelo menos que eu saiba. Faz exatamente um ano a 27 de novembro que fui operado, fiz um bypass coronário, fui operado de coração aberto, que é uma expressão que adoro. Já me tinha esquecido disto, só me lembrei ontem porque fui ao médico ver como estavam as coisas e fazer alguns exames. Nessa altura, percebi que a minha mulher tinha muito medo que eu morresse, tal como os meus filhos e os meu amigos. Fui para a sala de operações e dois dias depois já andava no corredor com o professor de ginástica, o médico dizia-me que se eu não tivesse chinelos ninguém desconfiava que estivesse internado. Tenho tido com a saúde uma relação bastante construtiva, mas reconheço que uma pandemia é sempre uma pandemia. Também penso que ela seja um produto do terror instruído pela própria comunicação social, aliás, este regime de terror não favorece a predisposição das pessoas para pensarem razoavelmente sobre as coisas.

A pandemia irá deixar marcas, que consequências prevê na Cultura?
Já causou o caos nas organizações mais maduras como é o São João, percebo que tem sido um martírio para redirecionar os espetáculos, há despesas gigantescas com a limpeza e a higienização. Tem causado muito mau estar, sem dúvida. Esta coisa da redução das salas de espetáculo ou até mesmo do espetáculo sem público, é algo um bocadinho angustiante, com toda a franqueza. O que mais me inquieta é a ocorrência absurda em fazer tudo online, uma pessoa em cada sítio e depois o zoom junta-os todos e estão a representar a mesma peça. Todo este tipo de experiências que podem ser engraçadas em ambiente escolar ou num território de exploração cientifica, são patéticas como restituição das artes no palco.

Não acredita na digitalização na arte?
Pela intervenção da Covid? Acho que é uma privação tremenda para toda a gente, tanto para os que fazem, como para os que veem. Se vai mudar muito? Não acredito. Acho que quando estiver tudo controlado, as pessoas vão querer voltar ao teatro. Parece-me evidente que faz falta às pessoas a possibilidade de verem espetáculos e também é aferível pelo número de pessoas que, por exemplo, vão ao São João a meia sala. Existe um público de teatro que está absolutamente fidelizado e isso já é um passo gigantesco em relação ao passado, portanto, há de ter efeitos no futuro. Há 30 anos, éramos talvez o país na Europa que menos público de teatro tinha e hoje já não se pode dizer isso.

A Cultura tem saído muito à rua. Considera que as manifestações produzem efeitos?
Nunca senti que produzissem diretamente, acho que toda a gente está sempre à espera delas. Se reparar, no setor cultural quem se manifesta mais são as pessoas do teatro e das artes cénicas, pouco se fala nelas e quando aparecem pergunto-me muitas vezes se as pessoas sabem quem elas são e o que fazem.

Que opinião tem sobre a atual gestão política cultural?
Nenhuma, não tenho qualquer opinião sobre a política cultural.

Sendo uma pessoa tão relevante no meio, não sente que deveria ter uma?
Não, não tenho.

Mas acha que algum dia irá ter?
Espero que não.

"Claro que há diferenças entre haver um secretário de Estado da Cultura e um ministro da Cultura, mas a diferença tem que ser expressiva. Não é porque se senta num conselho de ministros que um ministro tem poder, toda a gente sabe isso."

Num mundo cada vez mais global e imediato, que papel poderá ter o teatro no futuro?
Toda a gente dizia que o teatro ia acabar com televisão, não acabou, ou que o cinema ia acabar com a televisão, também não aconteceu. Agora já se pode dizer que com as “netflixes” deste mundo pode haver ali uma ameaça, mas a Netflix também concorre aos Óscares e os filmes que passam também podem ser transmitidos em sala. Nunca fui muito alarmista em relação a isso.

Mas é adepto da Netflix?
Sou completamente viciado.

O que está a ver agora?
Nada porque estou recolhido num hotel, uma vez que a minha casa está em obras. Vejo sobretudo filmes, tive um período maluco de séries que vi com a minha mulher quando finalmente tivemos uma box. Vimos o “The Crown”,  “Prison Break”, “Segurança Nacional” e o “Breaking Bad”, que é excelente. Sou um grande fã de ecrãs, mas depende do que está neles.

Que imagem é que acha que as pessoas têm de si?
Nunca me preocupou isso, às vezes dizem-me coisas e acham que me estão a fazer um grande favor, normalmente calo as pessoas a meio, porque não estou nada interessado em saber o que pensam de mim.

E que imagem tem de si?
Tenho boa imagem de mim, trato de mim, tento sobreviver o mais que posso ao envelhecimento, ou seja, tento manter-me em forma.

E como homem do espetáculo e do teatro?
Não sou capaz de fazer essa síntese. Tenho ideia de que cumpro muito bem o meu dever, que me excedo e me surpreendo ainda hoje muito com aquilo que consigo fazer com o pouco que sei.

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