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Rui Cardoso Martins, nasceu em 1967, na cidade de Portalegre

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Rui Cardoso Martins, nasceu em 1967, na cidade de Portalegre

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Rui Cardoso Martins, sem medo de rir da morte: "Os meus livros têm qualquer coisa de autobiográfico, mas não é o recontar da minha vidinha"

Celebrizou-se como cronista, escreveu humor, cinema, teatro, faz uma perninha no cante alentejano. No novo romance volta à morte, aos lutos, falando de coisas duras com ironia. Entrevistámo-lo.

Dia de chuva em pleno verão, chega a pingar, falando sem parar, as mãos atrapalhando-se entre o guarda-chuva, que deixaria esquecido, a mochila e o telemóvel com um amigo que precisava de ajuda. Tem o à-vontade dos que já foram a todo o lado enfrentado as suas próprias inseguranças. O sotaque alentejano ainda não desapareceu totalmente e, como todos os alentejanos, tem uma relação fatal com a planície, embora tenha nascido no enclave elevado de Portalegre.

Nas suas crónicas, no seu humor, na sua forma de falar e, sobretudo, neste romance, há muito dessa cultura, da ironia torcida entre as palavras, na forma de dizer ao mesmo tempo, uma coisa e o seu contrário, de usar palavras como quem pisca o olho e sobretudo, de fingir obediência e calma ou de esconder a teimosia e o orgulho. Exclama: “Humilde povo alentejano? Qual humilde? Puta que os pariu! Como esse filósofo alemão de má memória, Heidegger, ele sabe que há palavras que fundam um um povo”.

Há vinte anos criou Cruzeta, o seu alter-ego a flirtar com o suicídio, e agora volta a ele no novo romance As Melhoras da Morte (Tinta-da-China), um título que é uma expressão onde a ironia serve para driblar a fatalidade, mas é também um acontecimento biológico, onde os corpos a morrer melhoram subitamente, antes do derradeiro fim. A narrativa, que é uma viagem para o funeral de um amigo de adolescência, é também uma viagem iniciática à sua cidade, Portalegre, e ao Alentejo. Como um quadro de De Chirico, onde a realidade flutua num excesso de luz ganhando contornos surreais, assim vemos Cruzeta e os seus velhos amigos, a cidade decadente, o choque entre o mundo tecnológico, que permite pôr a tocar Jimi Hendrix num cemitério, mas onde emergem tantos atavismos como um padre que diz que a morte “é a suprema humilhação”. Cruzeta e o escritor que o inventou pensam o contrário. Não há nada de humilhante na morte e é preciso retirar de cima dela esse tabu, ver o que ela tem de belo e de cómico. Falar-lhe cara a cara, sem medo, mesmo que com tristeza.

Esta viagem também é um pretexto para o herói ir desferindo criticas ao país, aos políticos, às modas diletantes, de refletir sobre o cante alentejano, deixando espalhadas pelo livro as letras de vários poemas pouco conhecidos e pouco cantados. Ficaremos a saber que ele próprio comete o cante, com uma voz grave e segura de quem parece nunca ter feito outra coisa na vida. Mas é sobretudo uma pessoa disponível para arriscar.

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O miúdo que saiu do Alentejo aos 17 anos para ser jornalista e se fez um dos cronistas mais importantes das últimas décadas, olhando Portugal a partir das histórias que recolhia nos tribunais, no Levante-se o Réu, do jornal Público, transformou-se depois em escritor de programas de humor, dando corda à sua veia satírica, e hoje escreve filmes, séries para televisão e teatro. Há 20 anos atreveu-se no romance e volta a ele sem hora marcada. É docente nas universidades Nova e Lusófona e, neste momento, prepara-se para ser o mestre em destaque, no 41.º Festival de Teatro de Almada. Apesar disto, explica que “não é rico”, mas nós não acreditamos.

A capa de "As Melhoras da Morte", de Rui Cardoso Martins (Tinta da China)

Nas suas crónicas nos jornais, habituou-nos a um olhar cheio de ironia e ternura pelas tragédias das vidas banais, para lhe capturar os traços mais subtis, mas também mais risíveis. Nessas crónicas da série Levante-se o Réu, pelas quais foi, várias vezes, premiado, consegue fazer uma leitura não só do tempo, mas da sociedade portuguesa, das relações de poder, das instituições judiciais. Como é que começa a fazer essas crónicas, ainda era apenas um jovem jornalista? Já as queria fazer ou foi um acaso?
Na primeira semana de existência do jornal Público, saiu uma crónica minha. E durante 17 anos, todas as semanas, com algumas exceções, quando andava em reportagem. Fazia uns intervalos. Mas, basicamente, escrevia sempre. Isto começou no dia em que a o Vicente [Jorge Silva, um dos fundadores e antigo diretor do jornal] me falou da existência em Portugal de uma tradição de crónicas judiciárias que ele queria retomar. Falou-me no Mário Castrim, falou-me na Alice Vieira. Eu não conhecia nada daquilo, mas lá fui eu assistir a um julgamento e fazer uma primeira. E aconteceu uma coisa muito curiosa com os revisores do texto. A crónica é sobre um ladrão de cuecas femininas, um homem que roubava pacotes de cuecas femininas num supermercado. Era assim um caso realmente miserável em todos os aspetos. Mas eles, o revisores, resolveram transformar aquilo em notícia, em fait divers. E eu disse, não, não. Isto é uma crónica. Isto é outra coisa. Porque eu estava a tentar encontrar uma linguagem que servisse. Não sabia ainda. Ainda nem sequer tinha pensado em termos de “vou ser cronista”. Agradeci-lhes muito as gralhas que corrigiram, mas aquilo era uma crónica. Depois saiu e muito rapidamente as pessoas começaram a gostar. Porque eram crónicas que contavam coisas em que às vezes não se acreditava. Havia pessoas que juravam que eu inventava aquilo.

Mas quando ia para o tribunal já sabia a que julgamento ia assistir? Ou ia à descoberta, uma vez que a maioria dos julgamentos são públicos?
Algumas vezes sabia, porque havia pessoas que me avisavam. Tinha até pessoas que às vezes me avisavam sobre casos curiosos, ou que era importante serem divulgados. E eu lá ia. Mas outras vezes não, eu não sabia, era um bocado como ir à pesca ou a um cinema multiplex com a premissa “só tenho um bilhete, só tenho duas horas, e vou escolher um filme sem ter lido nada, sem saber nada sobre ele”. E entro e vejo o filme. Eu entrava e via o julgamento, depois transformava aquilo numa crónica. Havia uns velhotes, no antigo Tribunal da Boa Hora, que iam todas as tardes ver os julgamentos, porque aquilo até é melhor do que o teatro, não é?  De maneira que eu ia, entrava, saía até ter a certeza de que tinha uma crónica. Algumas precisam da resolução, então eu tinha que acompanhar as várias sessões do julgamento. Eram coisas graves e precisavam de ser contadas. Precisamos de saber quais são as consequências de coisas que trazemos a público. Por exemplo, violência doméstica. De facto, para mim aquilo foi uma escola sobre como se aborda um assunto. Sem nunca perder de vista que aquele réu podia ser eu, ou podia ser uma pessoa da minha família, ou um amigo meu. Este é o princípio básico da forma como peguei nisto: nunca perder o respeito pela miséria humana. É isso que muitos não percebem: não se pode transformar a vida dos outros num fait divers, numa coisa exótica, que é um grande perigo. Quando se faz jornalismo, mas também quando se faz literatura ou mesmo o humor. Hoje as pessoas acham que tudo tem graça, mas a partir do momento em que lhes cai em cima, em que lhes toca a elas, aí é um problema.

Isto não quer dizer que eu não tenha dito coisas terríveis, sobre pessoas horríveis que vi no tribunal. Era também uma forma de denunciar muitas injustiças. Por exemplo, um desgraçado de um pedreiro a quem a polícia ia buscar às sete e meia da manhã para prender à frente de toda a gente porque havia uma confusão de identidade com outra pessoa com o mesmo nome. Escrevi essa crónica e ele passou a andar com a crónica na carteira. É comovente.

"Fiz muito trabalho em Portugal e fiz muito trabalho no estrangeiro, mas quando comecei a escrever ficção, um dia percebi que, de facto, não estava a olhar para uma parte importante de mim, as camadas que trazia precisamente do Alentejo."

Chegou a ter problemas?
Uma vez o Público telefonou-me a dizer “é melhor não vires cá hoje ao jornal, porque está cá um senhor com  uma navalha”. E eu disse “pronto, então hoje não vou”.

Nessas crónicas já se podia sentir a borbulhar um sentido de humor que, mais tarde, vai explorar nas Produções Fictícias, com os bonecos do Contra-Informação ou o Herman Enciclopédia, entre outros. Podemos dizer que é um sentido de humor muito próprio do Alentejo, que não é desbragado, que é contido, que se faz em jogos de palavras e subtilezas?
Sim, esse humor tem muito da forma como os alentejanos também olham para as coisas. Sempre com um sentido de ironia. Sempre prontos a dizer uma piada. Muitas vezes é de uma subtileza, de uma inteligência, as expressões como “basta que sim” ou o “ai eu, ai eu, ai eu” ou “então vemo-nos daqui a dez anos se não houver novidades”. Isto é, se ainda não tiver morrido nenhum de nós. Sim, o Alentejo está no meu humor, está de facto metido em mim desde o princípio e vice-versa. Não sei se isto se pode dizer assim. Parece esquisito. Mas não há outra forma, fiz muito trabalho em Portugal e fiz muito trabalho no estrangeiro, mas quando comecei a escrever ficção, um dia percebi que, de facto, não estava a olhar para uma parte importante de mim, as camadas que trazia precisamente do Alentejo. E foi isso que me deu uma perspetiva, quando apareci como escritor. Eu não sabia o que era antes. Nunca tinha pensado nesses termos. Fazia-me muito medo. Ainda hoje faz um bocado.

Tem um certo pudor de pensar em si como “escritor”?
Sim, há hoje quem não tenha pudor nenhum. Mas eu tinha. Tenho. Até por questões ecológicas das árvores, estragar tantas árvores para isto? Para quê? Enfim. E pronto, o Alentejo, onde eu nasci, vivi até os 17 anos, continuei e continuo a visitar, é uma parte fundamental de quem eu sou. Vou lá, tenho lá a casa, e vou visitar os meus mortos e até já lá fiz vinho. É uma coisa italiana. Chique! Chique! Mas não é para vender é para dar aos amigos. Mas o vinho é bom. E ajudou-me muito a escrever este novo romance, porque é um vinho à memória dos meus pais. Faço-o com um amigo, o Pedro Garcia, que é de Trás-os Montes.

A certa altura escreve: “No Alentejo, continuamos a ser mais de nos fazermos mal a nós mesmos do que mal aos outros”. Também há quem resuma: “Os transmontanos matam-se uns aos outros, os alentejanos matam-se a si próprios”.
Sim, isso resume um bocado. Mas depois também há aquele Alentejo dos montes e do jipe, sempre fui muito crítico desse tipo de… lifestyle. O meu avô era um dos chefes de moagem de Portalegre. Era uma empresa grande. Ninguém é rico na minha família. Absolutamente ninguém. O meu pai nasceu na Beira Baixa mas quando morreu era um alentejano de gema. Aprendi algumas coisas dos gregos com ele. Ele sabia grego e sabia latim. Foi uma das minhas sortes. Um dia apaixonou-se pela minha mãe e casaram-se. Ficaram em Portalegre, de onde era todo o resto dessa minha família. Minha avó, que nunca gostou de padres, era muito engraçada, analfabeta, mas inteligentíssima. Uma vez até fez uma greve aos netos. Conto isso neste livro porque, de facto, essa fica logo, uma mulher que fez “greve aos netos”.

Formei-me em Portalegre, andei num colégio. Foi lá que assisti ao 25 de Abril,  mas também assisti a coisas como a palmatória, bofetadas, todo esse tipo de violências que hoje…

Mas a si ninguém bateu?
Nunca me aconteceu.

Talvez por ser o filho do professor?
Talvez, mas ao meu lado havia dois miúdos. Nunca os esqueci. Um deles, todos os dias acabava por fazer cocó na cadeira ao meu lado, com medo da professora. Imagine o pavor dessa criança. Isso marcou-me muito. Depois veio o 25 de Abril e foi outra coisa.

"A crónica foi uma revelação, foi o perceber, não diretamente por mim, mas pelo impacto que teve nos outros. Não só nos leitores que me diziam coisas lindas, como um advogado que me disse: 'não leve a mal, mas eu tenho a minha casa de banho toda forrada com as suas crónicas”' Ou pessoas que pensavam que eu inventava aquilo tudo. Tudo nos dois extremos, a total ficção ou a total realidade."

Foi jornalista durante muitos anos e um dia decidiu mudar de vida e enfrentar o desafio de escrever humor, no projeto Contra-Informação.
Lembro-me perfeitamente do dia em que tomei essa decisão. Tinha estado na festa dos mortos, no México, nas eleições históricas da África do Sul, quando venceu o ANC do Nelson Mandela, estive na guerra na ex-Jugoslávia. Depois tinha o trabalho aqui de reportagem em Portugal e as crónicas. Mas comecei a sentir-me enredado em agendinhas e coisas, conferências de imprensa, que é o jornalismo “pé de microfone”.

Um dia, quando o porta-voz do governo era o Marques Mendes, depois de horas e horas à espera do final de um Conselho de Ministros, lá vem o Marques Mendes, põe uma palanca, uma caixa, tipo caixa de fruta para conseguir chegar ao microfone e diz que o governo não tinha declarações a fazer. Uma coisa que entretanto se tornou uma banalidade, no jornalismo não é? Mas nesse momento ainda era escandaloso que não houvesse nada a reportar aos jornalistas, Já nem me lembro qual era o problema em causa. Mas não havia declarações. Pensei que se não saísse dali definhava.

Entretanto é convidado para escrever os textos do Contra-informação. O humor presente nas entrelinhas das suas crónicas, iria ser exercido frontalmente?
Nessa altura, o Joaquim Furtado, grande filho de Abril, e o Fernando Balsinha, na RTP, tinham surgido com a ideia de uns bonecos que parodiavam o jornalismo e a política. Esse projeto já tinha sido feito na SIC e tinha fracassado. Era originalmente uma ideia inglesa. Convidaram-me para uma coisa experimental e acabou por durar 14 anos. 14 anos! Muito politicamente incorreto, mas no Contra-Informação éramos totalmente independentes e assumimos: “Vamos criticar a política e ninguém tem nada com isso. E não temos medo.”  Claro que, para isto, tivemos que ter a RTP do nosso lado (mesmo quando o Pinto de  Costa ameaçou cortar a publicidade no canal) e também a arte da escrita, que, por assim dizer, foi o que nos permitiu ganhar autoridade junto do público. Começámos e, rapidamente, a ganhámos. Porque tinha graça.

Aquelas personagens chegavam a parecer mais reais que a realidade. Era uma espécie de jornalismo crítico, uma versão televisiva dos cartoons do Abel Manta ou dos bonecos do Bordalo Pinheiro?
Um dia, numa reunião na RTP, uma jornalista anunciou: “O Pinto da Costa manda dizer que, ou acabam com esse programa, ou o futebol clube do Porto sai da RTP”, ao que o Joaquim Furtado respondeu “então o Porto que saia”. Isto foi muito importante. E depois, o Porto não saiu, claro. Foi um sucesso em termos de humor.

Eram essas a figuras atrás de nós, em background, da nossa cultura, que estavam ali convosco a fazer aquilo. Aliás, existe um um projeto de pôr alguns bonecos do Contra-informação no museu Bordalo Pinheiro, o que me deixa muito feliz. Sim, arrisquei em sair do jornalismo, onde tinha um contrato de trabalho. Hoje em dia as pessoas não se atreveriam, ou melhor, nem eu me atreveria a fazer uma coisa dessas. Mas a minha ideia era “vou levar os princípios do jornalismo para o humor. Isto é, só escrevo o que quero. É uma espécie de critério editorial, de independência total de criarmos o que quisermos. Dou à quem doer”. Mas claro, tínhamos princípios deontológicos, por exemplo, “nunca nos vamos meter na vida privada das pessoas, a não ser que as próprias façam disso uma notícia”. E a verdade é que muitas faziam disso uma notícia. Então nós aproveitávamos.

Acredito que é possível, com o humor, dar a ver o outro lado, o que não se vê publicamente. Por isso não acredito em escritores sem sentido de humor. Mesmo aqueles que parecem muito pesados têm que ter uma fina capacidade de humor. Não vou definir ironia, porque esta já se transformou num lugar comum, embora eu não tenha nada contra os lugares comuns. Devo dizer que um lugar comum às vezes é a melhor coisa que podemos ter, porque é um sítio em que nos reconhecemos todos, não é? Mas quando se transforma em clichê, o tamborilar dos dedos, a testa pelada de suor. Há por ai muitas páginas com testas  perladas de suor.

Como é que chegou ao cinema?
Tem-me acontecido, com muita regularidade, ser puxado para lugares por causa de coisas que fiz apenas com o objetivo de fazer bem. Foi assim que entrei no cinema. Uma reportagem num bairro da Bela Vista, em Setúbal, com miúdos problemáticos, acabou por originar o filme Zona J. Um texto, seja ele de que género for, tem que ter vida. Às vezes leio coisas onde não se sente qualquer vida a pulsar ali. O William Faulkner, quando lhe perguntavam o que é que ele achava que era a literatura, ele dizia: “É aquilo que cria emoção”. Não é emoção lamechas mas os sentimentos são poderosas forças. Por isso é que eu detesto telenovelas. Queimam a linguagem, queimam o tempo, queimam o trabalho de um ator.

"Experimentar muitos tipos de linguagem alimenta tudo. O jornalismo alimenta o teatro, o teatro alimenta a crónica, a crónica alimenta o cinema"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Também já escreveu algumas peças de teatro e faz parte do Festival Teatro da Almada deste ano, nas conferências das Lições dos Mestres, onde já esteve, por exemplo, o encenador alemão Peter Stein.
Pois, estou cheio de medo disso. Já passaram por lá o Peter Stein, o Luís Miguel Cintra, muitos outros. De maneira que tive que meter logo na cabeça na prateleira com as peças de teatro que tinha lido. É simples. Às vezes a resposta é simples. Foi com estas que eu aprendi. Claro, depois vêm os romances e outras coisas que fiz. Mas há uma coisa sagrada para mim: todas as coisas precisam de uma narrativa. Este curso é só de narrativa. Outra coisa importante que quero passar é que para escrever é preciso ter memória. Vou usar novamente as minhas memórias que é aquilo que eu uso quando escrevo.

Mas é isso até o princípio do jornalismo. Devo escolher logo como é que vou contar isto e como é que vou contar aquilo. E isso aprende-se com os outros, lendo muito, escrevendo muito. E agora vou tentar passar isso. Já tenho quase 30 alunos inscritos, para as cinco sessões, de três horas cada. É de 8 a 12 de julho, no salão das Carochas, em Almada. Será um curso basicamente sobre métodos de escrita que chamei Ler Muito, Ver Espectáculos, Viver Mais, porque, isso de viver é o fundamental não é?

Ou seja, é um convite a assumir riscos?
O nosso horizonte atual diz cada vez mais às pessoas para não assumirem riscos, porque não podem não ter um contrato, não podem não ter uma casa, não podem não ter um carro. Há toda uma série de coisas que nos vão fazendo perder todo o nosso heroísmo, o que pode haver em nós de rebeldes.

Vou aceitando fazer coisas que também me interessam. Arte da crónica na FCSH, argumento de cinema, teatro. Vou aceitando coisas, não sei tudo, como é óbvio. Há muitas coisas que recuso, mas estas coisas fazem parte do meu trabalho, de ter experimentado muitos tipos de linguagem. E a verdade é que experimentar muitos tipos de linguagem alimenta tudo. O jornalismo alimenta o teatro, o teatro alimenta a crónica, a crónica alimenta o cinema.

Outra das coisas muito fortes no Alentejo, e que se nota na sua escrita, no humor, nas crónicas, nos romances, é a rejeição da idolatria. Nada se idolatra, nem deus, nem reis, nem celebridades. Idolatrar é visto como algo pouco digno.
De facto não percebo a idolatria. Não percebo o que é que faz com que as pessoas passem a idolatrar outras. Não percebo. E aqui incluo tudo, nas artes, no futebol. Não percebo. Não percebo porque é que isso acontece. Vejo que acontece e pronto, mas não consigo aderir.

Pensando que antes a crónica, nos jornais, era feita por jornalistas e por escritores muito bons. Pensemos no Cardoso Pires, no Lobo Antunes, no Saramago, na Isabel da Nóbrega, no Vasco Pulido Valente ou, muito antes, no Luís Pacheco; estando, neste momento, na Universidade Nova de Lisboa a dar uma cadeira chamada A Arte da Crónica: que opinião tem sobre as crónicas e os cronistas de hoje?
Tenho pensado bastante nisso, desde que fui convidado pelo responsável do Departamento de Línguas e Literatura Portuguesa da Nova. Tenho, de facto, fugido completamente desse problema, mas sei que é um problema grande. Portanto o que faço é trabalhar só os grandes cronistas portugueses e brasileiros. O Nelson Rodrigues, a Salomé Cardoso, mas também o Vinicius de Moraes, o Carlos Drummond Andrade, o Rubem Braga, que é magnífico. Aprendi imenso com ele. A Clarice Lispector também, faz parte do meu programa, já agora. O António Lobo Antunes, evidentemente, o Mário de Carvalho, a Agustina, o Pedro Mexia, para aquelas crónicas mais de divulgação cultural, a Maria Judite de Carvalho.

É uma arte em que os grandes escritores também se revelam, até porque é preciso persistência. Não há um cronista que se faça com uma crónica. Talvez com exceção do Paulo Mendes Campos, que tem uma crónica extraordinária, que se chama “O Amor Acaba”.

A crónica foi uma revelação, foi o perceber, não diretamente por mim, mas pelo impacto que teve nos outros. Não só nos leitores que me diziam coisas lindas, como um advogado que me disse:”não leve a mal, mas eu tenho a minha casa de banho toda forrada com as suas crónicas”. Ou pessoas que pensavam que eu inventava aquilo tudo. Tudo nos dois extremos, a total ficção ou a total realidade. O que importava era a crónica. As crónicas não estavam alocadas a uma personalidade, a um ego. Às vezes podiam estar, eu entendo a crónica e a literatura em geral sempre no seu sentido mais nobre. Há aí uma série de cronistas, que não sei se são candidatos a políticos, ou apenas espalha-brasas, ou pessoas que escrevem razoavelmente bem sobre todos os assuntos. Um cronista é outra coisa, tem essa ideia do texto como uma viagem.

"Os meus livros têm qualquer coisa de autobiográfico, assumidíssimo, mas não é o recontar da minha vidinha. É outra coisa, acho eu. E os meus amigos fazem parte disso, os meus amigos, os meus amores, as minhas desgraças e os meus momentos de grande alegria."

Neste seu novo romance, As Melhoras da Morte, também essa ideia de viagem está presente; de uma viagem interior, na aprendizagem da morte, mas também na relação com a passagem do tempo, na relação com a decadência da cidade. Todas as personagens fazem esta viagem, esta transformação que em última instância devia ser aquilo que norteia qualquer arte, qualquer projeto artístico: provocar mudança.
É o que acho. Quando se começa uma coisa, quando um escritor começa a escrever um texto, grande ou pequeno, deve pensar que a pessoa que o vai ler vai participar também nessa viagem, vai fazer a sua própria viagem interior. Vai ser terrível às vezes, vai ser bonita, outras vezes, será comovente.

Também é uma viagem pela paisagem alentejana, este vazio, este vazio da paisagem, “campos de nada”, como escreve. E como se este nada da paisagem se espelhasse no ADN dos alentejanos.
Sinto isso especialmente em agosto, quando vou a Santo Aleixo da Restauração, perto da Amareleja e Barrancos, e está aquele calor. Fico ali, ponho-me a a beber vinho tinto gelado…

É um vazio que angustia e que as suas personagens refletem, as cidades refletem.
Os meus livros têm qualquer coisa de autobiográfico, assumidíssimo, mas não é o recontar da minha vidinha. É outra coisa, acho eu. E os meus amigos fazem parte disso, os meus amigos, os meus amores, as minhas desgraças e os meus momentos de grande alegria.

Os seus romances são também a sua forma de fazer essa viagem iniciática a caminho da sabedoria?
Sim, sempre. Os livros, desde o primeiro, E Se Eu Gostasse Muito de Morrer. No fundo, este novo romance, repesca as mesmas personagens, vinte anos depois, mas agora reencontram-se nesse Alentejo para o funeral de um deles e são obrigados a confrontar-se com a morte, a deles e a dos outros. É um livro que fala de coisas pesadas com uma falsa ligeireza e até com muito sentido de humor.

Mas também volta a falar sobre o luto que, de certa forma, tem sido parte da sua vida. Até publicamente tem falado disso, nomeadamente da morte da sua primeira mulher, a editora Teresa Coelho. E os seus livros também são uma forma de fazer essa viagem dentro do luto e dentro da perda?
Foi a maneira que encontrei, através de uma espécie… de um alter-ego, que é o Cruzeta, de contar coisas que acho que são importantes para toda a gente. Porque este livro pode ser lido noutros lugares, noutras línguas. São coisas que interessam, acho eu, num sentido cosmopolita, a toda a gente, e repegando uma frase que me li há muitos anos: “O interior é igual em toda a parte”.

Neste As Melhoras da Morte, a questão do suicídio é muito importante, não só como melancolia mortal, mas também porque se repete e cresce, no mundo todo, ainda que de outras formas, como o caso dos Hikikomori, no Japão, ao qual também alude neste livro.
Pois o Japão também tem as suas formas de suicídio muito enraizadas na própria cultura, ainda que esta seja uma forma muito moderna de suicídio. Mas tive um amigo, japonês, que morreu em casa também. Fechado em casa, horas e horas e dias e meses. Há cada vez mais miúdos que, simplesmente, não se conseguem relacionar com o exterior de si mesmos.

Os meus livros têm tido um lado… vou dizer uma palavra tramada: um lado útil ou literário, no seu melhor sentido. Tenho sido convidado para congressos de psiquiatria, precisamente por causa da questão do luto, mas também do suicídio, porque quando escrevemos sobre estas questões temos que conhecer minimamente o assunto, não é pormo-nos ali a dizer coisas.

Por exemplo, quando escrevi sobre cegos, tive o cuidado de falar com cegos  e sou amigo de cegos, desde há muito. Um dos momentos mais bonitos da minha vida foi na Biblioteca Nacional, onde existem cinco volumes do meu livro Deixem Passar o Homem Invisível, em braille. E fizeram um lançamento dessa edição com cento e tal pessoas numa sala totalmente forrada e sem uma pinga de luz. Às escuras serviram bolinhos e café, às escuras conversámos. Disseram-me até que foi das vezes em que melhor falei sobre um livro.

"Há uns anos morreu um amigo meu e as pessoas consideraram que eu não devia levar os meus filhos, muito pequenos na altura, ao funeral dele. A família disse-me: “Isso não pode ser”. Mas não pode ser como?  Há uma semana andavam ao colo dele e agora ele desaparece no ar e não se explica nada disso às crianças? Isso é que tem consequências terríveis."

Porque ninguém via ninguém..
Nem eu a eles, nem eles a mim, claro. Éramos todos cegos, portanto, a voz transformava-se, surgiram outras formas de ver, porque há muitas formas de ver sem ser com os olhos. Como eu digo na epigrafe desse livro: “Cegos são pessoas que não veem, na minha opinião”.

Apesar de escrever com humor, nos seus romances a morte é um tema central, porque, de certa forma, o riso e a morte não são assim tão distantes. E, neles, perpassa sempre a crítica a um tempo, uma sociedade em que as pessoas não sabem lidar com a morte, com a doença, escondem-na. Neste livro há mesmo a personagem de um padre que afirma: “A morte é a suprema humilhação”, algo que indigna profundamente o Cruzeta.
Há uns anos morreu um amigo meu e as pessoas consideraram que eu não devia levar os meus filhos, muito pequenos na altura, ao funeral dele. A família disse-me: “Isso não pode ser”. Mas não pode ser como?  Há uma semana andavam ao colo dele e agora ele desaparece no ar e não se explica nada disso às crianças? Isso é que tem consequências terríveis. Imagino eu que tenha consequências terríveis. E isto foi anos antes de eles terem que lidar com a morte da mãe. Portanto, foi uma aprendizagem também para tudo o que se passou depois, nas nossas vidas.

Já nem sei o que dizer, porque é que as pessoas se lideram nos seus próprios assuntos. Parece-me óbvio que é preciso prestar homenagem aos mortos. Homenagem é estar lá, porque esses momentos são mesmo importantes para a vida das pessoas. E são determinantes, depois, na nossa história futura. Nos amores, por exemplo, a não ida ao funeral de alguém próximo é um golpe mortal na relação. Por exemplo, namorados: rapazes que, com uma desculpa, não vão ao funeral do pai da namorada. Digo logo, “olha amigo, já foste”. Não se perdoa, não se perdoa. Não foi ao funeral do meu pai? Mas há aqui um lado de… Lá está, de as pessoas terem cada vez mais dificuldade em lidar com a morte. Não a saberem integrar em si. Faz lembrar-me uma pessoa que conheci que dizia: “Pois, sabe, não gosto de funerais”. E eu pensava: “Olhe, já eu adoro”. No meu livro, falo de um funeral lindo, em que puseram colunas com o Jimi Hendrix a tocar a Purple Haze e este funeral aconteceu mesmo.

Mas essa expressão, muito alentejana, que dá título ao livro, As Melhores da Morte, que é ela própria, uma ironia, mas também um fenómeno científico, biológico, porque, de facto, antes de morrerem, as pessoas doentes, parece que melhoram subitamente.

Uma espécie de canto do cisne?
Sim, a expressão “o canto do cisne” a gente percebe desde os gregos, não é? Já a expressão “as melhoras da morte” é tão nossa, tão alentejana. Há dias fui ao médico e ele contou-me que assiste muito a este fenómeno das pessoas “melhorarem” pouco antes de morrer. Dizia-me ele: “Quando os familiares me dizem que a pessoa está muito melhor, já percebi as melhoras”. São para se despedir, precisamente, dos parentes.

Quero escrevo uma coisa, quero que ela pegue logo ao principio, mas nos mude no final. Se há coisa que detesto é livros ou poemas que são, na verdade, “conversas de chacha”, que começam num sítio e vão para lado nenhum, nem deviam ter começado. Uma coisa que decidi com esta minha editora, a Bárbara Bulhosa, foi que não haverá nunca contratos de entrega de livros. Ou seja, vou ter a minha profissão, vou liderar-me pelos meus próprios meios. No meu caso, ter contratos e prazos para escrever seria mesmo a chamada “morte do artista”.

Neste romance também satiriza as novas aspirações a um “linguagem neutra”. Sendo alguém que já explorou muitos géneros de linguagem, que conhece o seu potencial, mas também as formas como ela é tantas vezes manipulada pelos centros de poder, acredita que pode existir uma linguagem neutra?
Sobre isto tenho que falar de uma crónica do Rubem Braga, que se chama “Aquele Folheto Perdido”, de 1950. Porque supostamente estava farto do Brasil do seu tempo, resolveu procurar jornais antigos e descobriu um com 100 anos. Nesse jornal ele vê, na primeira página, um anúncio que é uma mulher preta, bêbada, com um cesto e que tinha perdido um folheto. Isso e a notícia de um pardo, isto é, um escravo mulato, que estava a ser procurado pelo seu dono, que oferecia 300 mil réis. E quem se atrevesse a dar-lhe guarida seria perseguido pelas autoridades. E ele começa a olhar para aquilo que fazia a primeira página de um jornal e pensa no retrato horrível que aquilo faz do Brasil. E essa crónica que mostra como, em 1950 ou em 2024 essas coisas ainda não se resolveram todas, nem pouco mais ou menos. Este texto do Rubem Braga deixou algumas alunas minhas, duas alunas brasileiras, bastante incomodadas com a linguagem que ele usa.  Tal como há uma tradução inglesa, do meu primeiro romance, em que falo em “caça aos pretos”.

São de facto palavras que podem deixar muita gente incomodada…
Mas era assim que a personagem falava, era assim as pessoas falavam. Eu não uso essa expressão porque percebo que isto ofende. Mas há 100 anos as pessoas falavam assim. Se eu quero retratar determinada realidade, tenho que utilizar a linguagem dela. Mas esta crónica do Rubem Braga serviu-me para pensar, por exemplo, no caso do Mark Twain, que escreveu As Aventuras de Huckleberry Finn, que é um rapazinho que ajuda um escravo a fugir e que no fim daquilo tudo sente remorsos por estar a ajudá-lo. Porquê? Porque foi educado para isso e sente remorsos por estar a ajudar. Mas a senhora não sei quantos, que era dona de escravo, do Jim, é tão boa pessoa e não tem remorsos. E ele, ao mesmo tempo, que estava a fazer a coisa mais bonita do mundo, que era arriscar a vida para ajudar um escravo a fugir, estava a sentir remorsos. Então não é que o Mark Twain, porque usa a linguagem da sua época e porque usa as linguagens que era preciso usar para contar aquilo, está a ser proibido nas universidades americanas? Acho isto absurdo. Agora não podemos dizer “todos” e “todas”. Acho ridículo, acho que o policiamento, ainda para mais, estético, é difícil, é feio.

Como dizia Wittgenstein: “Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”.
Até porque as personagens dos romances não são o escritor. A propósito deste livro, cheguei a lembrar que o Cruzeta, no primeiro livro, que é muito parecido com coisas que o seu autor — eu — escrevi-o porque achei que era matéria de literatura transformada noutra coisa, andava com uma granada no bolso. Ora eu nunca andei com uma granada no bolso.

Há um empobrecimento da linguagem, no jornalismo, nas universidades. Infelizmente, agora até vou parecer um velho jarreta, mas encontro alunos que não sabem mesmo conjugar duas ideias. Já nem falo de frases, pronto. É muito, muito preocupante. E ainda para mais, depois quando há esta politização extrema das linguagens isto não pode dar boa arte. Não pode dar, nem boa arte, nem bons cidadãos. Nem bom cinema. Muito menos boa literatura.

"Todo o romance tem uma 'falsa ligeireza', um humor negro que é, na verdade, a maneira que encontrei para falar de coisas que me são complicadas, como a morte de amigos"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Como faz a oposição desse presente que descreve e um passado em que os jornalistas davam uma notícia nas linhas e outra nas entrelinhas?
A censura foi uma escola incrível de escrita jornalística. Nunca sequer passei por isso, mas agora, parece que estamos sentir isso a aproximar-se de nós outra vez. Mas a mim já não me apanham. Os filmes da Disney optaram por uma solução que acho engenhosa: avisam “este filme espelha preconceitos e opiniões que não estão de acordo com aquilo que neste momento é o correto”. Nós cantávamos “atirei o pau a gato, e o gato não morreu”, mas eu nunca atirei nenhum pau a nenhum gato…

Um dos temas transversais a este romance é o suicídio no Alentejo. Sabemos que é uma coisa cultural, endémica, sobretudo entre os mais velhos, o que faz desta cultura um caso curioso, porque normalmente quem se suicida são os mais jovens.
Há alguns anos, a taxa de suicídio no Alentejo era brutal. Mas tem vindo a diminuir. Em compensação, tem crescido em vários outros lugares do país. E essa diminuição está ligada a uma forte intervenção de equipas de psiquiatras por todo o Alentejo. Porque o suicídio não deixa de ser um sintoma de doença e há várias coisas que se podem fazer para prevenir o suicídio. Por exemplo, aprendi que quando uma pessoa começa a falar em deixar isto ou aquilo aos outros, ou a dizer “não vale a pena fazer isto”, já está lá a chamada “ação de suicídio”. Estas intervenções que foram sendo feitas no Alentejo melhoraram um pouco a situação, apesar da taxa se manter brutal. Mas há 20 anos era oito vezes maior do que no norte do país. Neste momento, com esta intervenção, houve uma espécie de estabilização para baixo. Só que aumentou no norte, provavelmente, consequência das crises económicas, da Covid, do isolamento, tudo isso. E no meu livro eu ironizo dizendo que nós alentejanos começámos “a exportar a nossa ideação suicida” como exportamos azeite ou vinho. Isto é uma das partes [graças] que este livro tem, que é dar a volta ao prego. Isto é para rir, para não chorar. Todo o romance tem uma “falsa ligeireza”, um humor negro que é, na verdade, a maneira que encontrei para falar de coisas que me são complicadas, como a morte de amigos e, inclusive, o suicídio a que assisti na escola. Portanto, é isso que faço. Este meu livro é uma caminhada também, não é? Uma vez caminhei nove horas seguidas. De facto, a caminhada é curativa e é criativa.

Neste seu romance-périplo sobre o Alentejo, também fala do cante, essa canção que nunca tem sangue ou vingança, mas pássaros e flores, e que agora se tornou uma moda, um exotismo para abrilhantar eventos. Afinal, o que pensa do cante?
Passámos por aquela fase em que tínhamos que ter vergonha de ser alentejanos, porque alentejano “era foleiro”. E o cante alentejano, entretanto, foi promovido a Património Imaterial da Unesco, etc. Até eu, na comemoração dos 50 anos do 25 de Abril, fui cantar a Portalegre com guitarra e com flauta, que não tocava quase há 40 anos. Portanto, agora não se calam, daí no meu livro eu dizer que é preciso arranjar uma associação tipo Alcoólicos Anónimos para os viciados no cante, para ver se eles se curam. O Cruzeta, o nosso herói, tem mesmo um projeto que é fundar a associação dos Cantófilos Anónimos. Em que as pessoas se sentam em grupo e dizem: ”Sou o António e estou há 20 dias sem cantar”.

É uma brincadeira porque o cante alentejano é muito, muito bonito. Mas, às vezes, é invasivo. E ficou, infelizmente, um bocadinho folclórico, em alguns casos. O Pedro Mestre, que é da Aldeia Nova de São Bento e também toca viola campaniça, dizia numa conferência: ”Somos muito dados, mas temos de nos dar ao respeito. Já estamos a cantar mal, já estamos a cantar com pessoas em conversa só para encher o cenário. Vamos, como ovelhas à Ovibeja, metidos nos comboios, sem condições. E para quê?”

O cante não tem vingança, amores de “faca e alguidar”, isso tem o fado, mas tem outras coisas bem terríveis como a condição de escravos, que foi a dos alentejanos durante séculos, e que é espelhada numa canção antiga que colocou também no seu livro: “Meus senhores, eu venho à praça/ o meu corpo a oferecer/ Este meu corpo, carcaça/ de se comprar e de vender.”
Esta canção fala dos ganhões que iam oferecer-se para trabalhar nas herdades. Depois há aquela outra que diz “há lobos sem ser na serra”, que tem a com a ideia do homem ser o lobo do homem, mas também servia para falar dos Pides. Esta canção era muito mal vista pelo regime. Mas sim, confesso, vou fazer uma letra para um cante, para a Celina da Piedade.

Então mostre que é um bom alentejano, cante aqui para nós…
Mas eu não estou em condições. Pronto vá lá: “Dá-me uma gotinha d’água/ dessa que eu oiço correr/ Entre pedras e pedrinhas/ Entre pedras e pedrinhas/ alguma gota há-de haver/Alguma gota há-de haver/ Quero molhar a garganta/ Quero cantar como a rola/ Quero cantar como a rola/ Como a rola ninguém canta…”

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