Cresceu no Porto, entre tias solteironas e senhoras de nomes esquisitos que, segundo diz, quase fizeram dele “um mariquinhas”. Brincou às bonecas, fugiu do colégio aos 5 anos e atirou-se a um lago só para dar nas vistas. Na escola pública, aprendeu asneiras e pulhices e tornou-se amigo dos mais rebeldes. Deu-se com uma certa elite intelectual do Porto e estudou Cinema. Percorreu a Europa de comboio e à boleia, foi raptado na Holanda, passou fome e chegou a roubar para comer. Circulou no submundo do continente durante os anos 70, cruzou-se com terroristas dos Baader Meinhof e aceitou guiar um Mercedes com uma carga suspeita através da República Democrática da Alemanha. Nunca soube o que lá ia.
Apaixonou-se vezes suficientes, mas aprendeu com Casanova e Don Juan que de amor se deve falar pouco. Diz que já esteve em risco de vida, mas continua cá, mais regrado do que noutros tempos. Na semana em que os GNR fecham a tour dos 35 anos de carreira e lançam um CD/DVD com o concerto que recentemente deram no Campo Pequeno, em Lisboa, entrevistámos Rui Reininho, que continua a ser a cara da banda. Reconhece que ninguém é insubstituível, mas não gostaria de ver outro no seu lugar.
Nasceu numa família portuense de classe média. O seu pai trabalhava em seguros, a sua mãe era funcionária pública. Como era o ambiente em casa?
A uma dada altura chamavam-nos remediados. Era aquela Baixa do Porto muito sossegada na altura, tirando os elétricos. Em casa, o ambiente era muito pacato, gente muito cerimoniosa. A única agitação era a de um senhor que vivia ao lado e chegou ao ser diretor do jornal O Primeiro de Janeiro. Era um intelectual. O primeiro emprego que tive foi como tradutor à custa do doutor Alberto Uva, que era um sujeito fantástico. Ele foi o primeiro a ter televisão no prédio. E eu era um bocadinho atraído por aquela casa, seja pela televisão, seja pelos livros e pela música. Havia um móvel de gira-discos onde se ouvia a chanson française, Barbara, Brel…
Sendo filho único, brincava com o quê?
Com amigos imaginários como toda a gente, tinha pequenas psicopatias e desvios. Muito cedo comecei a ler os livros policiais da Coleção Vampiro, Pete Cheyney, S.S. van Dine. Eram esses os autores de que eu mais gostava, ao lado da Agatha Christie.
Foi sempre um miúdo travesso?
Não, era mais sabotador.
Como assim?
Não gostava muito do ambiente em que me via envolvido. Havia muitas senhoras lá em casa, muitas tias, as senhoras de nomes esquisitos, as van Schneider, e, na Granja, as Van Zeller. Havia muitas solteironas. Eu vivia com uma tia solteirona. A minha mãe ia trabalhar e eu ficava com uma tia, uma avó e, como se dizia na altura, uma criada. Aquilo era um ambiente muito saioleiro. Eu estive a menos de um metro de me tornar uma grande bicha. Uma grande bicha, não: um mariquinhas. As grandes bichas são porreiras, são gente que eu aprecio. Um mariquinhas das tias, a brincar com bonecas e chazinhos e bolinhos.
Brincava com bonecas?
Brincava, sim. Era a coleção da minha avó e das minhas tias. O que eu fazia às bonecas não posso dizer.
Fazia o quê?
Ver quantas saias elas tinham. Era toda a curiosidade que se tem pelas meninas: perceber o que é que uma menina usa debaixo daquelas saias todas, se são cuequinhas de renda. Há uma certa mitomania.
Porque é que fugiu do colégio de freiras quando tinha cinco anos?
Era um ambiente muito aborrecido. Aos 5, 6 anos eu tinha uma rebeldia latente, que depois vim a descobrir que era o meu lado rock’n’roll.
Lembra-se desse dia da fuga?
Claro que foi um momento de pânico. Eu corri o Marquês de Pombal (no Porto) e desci Santa Catarina porque sabia onde era a minha casa. Havia aquela camioneta que nos levava a casa e eu decidi, no meio daquela confusão: “Vou sozinho”. Mas lembro-me de um episódio ainda mais caricato em que me atirei para o lago por puro exibicionismo. Estava tudo a fazer habilidades. Eu atirei-me ao lago, que felizmente era baixinho. Não fui às aulas naquela tarde, veio roupa de casa, enfim…
Qual era a reação a essas tropelias lá em casa?
Havia umas penalizações parecidas com as do Conselho de Arbitragem: muito brandas. Tinha umas multazinhas: não ver televisão, ter de ir para a cama mais cedo. Nada de grandes punições, nunca fui vítima de maus tratos familiares.
Ficou nesse colégio até quando?
Fiquei no colégio até entrar para a escola primária. Como dizem os brasileiros, caí na real, numa escola oficial pública. Os meus pais viram que uma educação privada não estava a resultar comigo. Foi uma mudança grande começar a dar-me com os meninos reais, com os pobres, os ricos, os remediados. Aprendi coisas fantásticas: asneiras, pulhices, a dissimular, a mentir, tudo o que é importante na vida.
Começou a mentir em casa descaradamente?
Sim, porque havia uns mais experientes que nos instigavam. Havia sempre uma recompensa — não pela mentira, mas porque fazíamos coisas muito desviantes. A escola, como diria o professor Agostinho da Silva, é uma pequena prisão. Havia meninos que roubavam as semanadas uns aos outros, os lanches… Os mais expeditos — comecei a ganhar uma grande admiração por aqueles que não tinham e queriam ter — tornavam-se grandes amigos quando se colaborava. Digamos que eu comecei, não a exercer, mas a pactuar no crime. Um pouco como o nosso sistema judicial.
Como foi a transição para a adolescência?
Foi muito, muito traumatizante. O Liceu Alexandre Herculano foi uma desilusão porque era um proto-seminário: só rapazes, muitos! Mil e tal! Era como entrar para a tropa ou para o seminário. Era todo aquele choque hormonal. Foi uma desilusão porque o mundo feminino me continuava vedado, tirando umas primas e umas vizinhas com quem conseguia brincar. Cheguei a pensar na carreira das armas. A certa altura inscrevi-me na Juventude Escolar Católica (JEC) e pensei: “Se calhar, vou ser padre. O eterno feminino está-me vedado, não conheço ninguém”. Cresci de uma maneira desproporcionada: tinha uns dentes enormes, umas pernas muito compridas, muito magro. Eu tinha imensa vergonha. Tentava aproximar-me de amigos que tinham irmãs, mas sentia-me muito inadaptado e muito gozado. Felizmente, nunca [fui] alvo de violência física, porque era bastante forte, ainda sou tenaz. Sou muito duro de roer e mauzão e pego-me, entro facilmente em conflito, não tenho medo de nada. Se há um conflito, enfrento e não viro as costas. Aprendi isso naquela coisa de ter de ir lá discutir de quem era a bola de pano, num ambiente de jardim, de gente pobre, onde me ensinaram a ser rato. Eu tinha sonhos prosaicos com as beldades inatingíveis que passavam entre os [anúncios da água de colónia] Bien Être e uns sabonetes estranhíssimos.
Qual foi a primeira vez que se apaixonou por uma miúda a sério?
Pelas vizinhas de cima. Elas subiam mais um lanço de escadas e era a altura das minissaias. Tudo aquilo era perturbante.
Era platónico?
Quer dizer, eu não sei o que fazia o Platão, nunca ninguém soube, o Sócrates nunca contou essa parte. Mas eu era um platónico praticante. É claro que havia ali uns jogos.
Era muito mau aluno?
Eu era muito mau aluno, preguiçoso e incumpridor. Era completamente inadaptado. No Secundário, havia uma professora de quem eu gostava muito, a professora Lídia Elias, e que costumava dizer: “Atenção aí à ala dos namorados!” Como eu estava em Letras, tinha muitas colegas, gostava de meter-me com elas. Naquela altura, hormonalmente falando, é muito fácil perturbar uma adolescente. A certa altura, eu tinha 30 e tal virgens na mesma turma, e éramos quatro ou cinco rapazes. Comecei a vê-las com as suas inseguranças. Pensei: elas também têm um handicap, deixa-me aproveitar. Cheguei a chefe de turma, o que dá uma certa autoridade, e escondia as faltas da mais gira da turma. Consegui que não chumbasse por faltas.
Como é que contornou as inseguranças em relação à imagem?
No Secundário, com o convívio.
Quem foi a sua primeira namorada? Foi nessa altura?
Não, foi em contra-ciclo, apanhei um susto com uma moça tropical.
O que é um susto com uma moça tropical?
Fora dos parâmetros das festas e das amigas que tinha, apareceu uma visita — também acontecia na fria cidade do Porto. Era verão, na altura do São João, apanhei um furacão vindo do Brasil, uma rapariga ligada às embaixadas que me levou ao Jardim do Éden.
Com uma experiência que compensava a sua inexperiência?
Sim, claro que ninguém admite uma inexperiência, nem naquelas idades dos 15, 16 anos. Aí percebi que havia outros mundos e o que levou Colombo, Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral a atravessar o mar em busca de exotismo e de tropicalismo. E isso descontraiu-me. Fiquei a pensar que as coisas são muito simples, que a sensualidade pode ser espontânea, que é bonita e não há pecado. Acabou-se a minha culpa judaico-cristã. Descobri um novo paradigma, mais um céu.
Apaixonou-se?
Claro que me apaixonei completamente na altura, mas estava fora de hipótese. Descobri aquele mundo terrível das embaixadas em que as pessoas partem e vão para outro lado.
Como é que foi parar ao Piolho?
O Piolho era a súmula do meio universitário do Porto, na Praça Carlos Alberto, onde agora renasceram os Clérigos. A movida portuense nasce ali.
Naquela altura quem é que se encontrava lá?
Naquela altura, nos anos 70, era uma esquerda radical, maoístas, PCs, jovens da UEC, mas também de uma certa extrema direita, e dealers — era o sítio onde se vendia ácido lisérgico (LSD), começavam a chegar coisas das Colónias. Os carteiristas Roque e Sardanisca saíam do Piolho e vinham até aos Aliados: “Bamos trabalhar um bocado!” Gamavam umas carteiras e depois vinham. Na mesa ao lado estava o inspetor Pires, da Polícia Judiciária, que era mesmo ali ao lado. Às vezes eram uns engavetados e depois soltavam-nos por falta de provas.
Circulavam drogas por toda a gente?
Naquela altura, ali transacionava-se muita coisa, porque era um ponto de partida para as festas. Porque havia um Porto mais chique, o Porto Fozeiro, onde já existiam discotecas, como a Dona Urraca, o Twins. Os filhos maus das famílias boas também lá iam. Mas ali encontrava-se uma elite intelectual. Isso e no eixo que eu fazia no Bairro Oriental, ao pé das Belas Artes. Eu frequentava o Café Belas Artes onde comecei a tocar com o Anar Band, o Majéstic tinha um grupo de anarcas onde eu me inscrevi. A coisa mais bonita que disseram de mim nos últimos tempos foi que eu era um “anarca do bem”. Não sei o que isso quererá dizer mas agradeço o epíteto. Acho que é um bom epitáfio.
A partir de uma determinada altura começou a sentir uma certa claustrofobia no Porto.
Sim, é muito pequenino. No Porto senti que já tinha percorrido os cinemas todos e mais um. Nem aguentaria monetariamente, tinha de fazer qualquer coisa.
Era um tipo excêntrico?
Os cabelos começaram a crescer, fui das primeiras pessoas a usar brincos. Éramos muito invectivados na rua: «Olha um homem de brinco!» Às vezes por aqueles operários que julgávamos apoiar… O povo não nos queria para nada. Achava-nos uns valdevinos, uns inúteis, uns frimeurs (pretensiosos), uns dândis. Chamavam-nos moinas: «Ide trabalhar, moinas!» Eu cultivava bastante essa decadência, os escritos que tinham a ver com o Dandismo. O Oscar Wilde era um dos meus êmulos. Tudo o que fosse hedonista e prazer e festa eu subscrevia completamente.
Qual foi a primeira viagem que fez?
Comecei a viajar muito cedo porque pedi aos meus pais para sair. Trabalhei um mês e tal na cervejeira do Norte, na antiga CUF, hoje Unicer. Fazia noitadas e os meus pais colaboravam com o resto.
O que é que fazia na cervejeira?
Tudo o que me mandavam no turno da noite: uma pessoa começa com as paletes e a ir buscar sacos disto e daquilo para carregar camiões. Depois felizmente passei a empilhar o resíduo que fica depois de fabricar a cerveja e serve para adubo. Tinha um armazém só para mim. Tomava conta daquilo a ouvir rádio de pilhas, levava livros para ler. Havia descargas de hora a hora. Se fizesse aquilo em 20 minutos, ficava com o resto para mim. Depois aparecia o encarregado e dizia: “Vai tu!” E nós íamos buscar um jerricã cheio de cerveja para distribuir pelo pessoal do turno da noite. Sim, bebíamos umas cervejolas enquanto trabalhávamos, mas nunca houve acidentes, nem era coisa que perigasse o bom funcionamento. O jerricã levava 10 litros de cerveja para distribuir com pães com chouriço.
O dinheiro da cerveja deu para ir onde?
A primeira viagem foi mais curta. Fui trabalhar para a apanha da fruta em Inglaterra. Acabei numa fábrica porque pagavam mais. Era muito interessante aquela Inglaterra profunda. Principalmente as moças: eram umas frescalhotas. Nas fábricas, elas assobiam bem, convidam para ir para os pubs e apalpam mesmo! Aquelas matulonas atrevidas: “You care for an afternoon beer, love?” [“Bora beber uma cervejola à tarde, amor?”]
Quanto tempo durou a viagem?
Só o verão.
Foram viagens de grandes aventuras?
Era fantástico subir a Suécia e descer a Finlândia naqueles comboios todos ir a Aparanda, no Círculo Polar Ártico. E à boleia também! Não era tão arriscado quanto isso… O único rapto que tive foi em Breda, na Holanda, e fui parar a Eindhoven, raptado por um pseudo-pedófilo. Eu já tinha idade para saber em que é que me metia.
Como é que isso aconteceu?
Foi uma criatura que me ameaçou com uma faca no tabliê, tinha revistas porno.
Mas entrou no carro dele.
Sim, e como tinha o mapa na cabeça percebi que estávamos a ir para Eindhoven e não para a Bélgica. Bruxelas era o sítio onde eu estava a pensar pedir asilo diplomático porque não queria ir para as Colónias batalhar.
No momento em que viu a arma, fugiu?
Quando reagi mal, com toda a minha liberdade de opção, embrenhei-me no bosque e pensei que não conhecia aquele bosque. Os bosques do centro da Europa são muito ordenados e silenciosos. Fintei-o.
Quem era esse grupo que se encontrava em Bruxelas?
Era gente muito artiste: fotógrafos, pintores, gente de Portugal e de outros sítios do mundo.
O dinheiro da fábrica e dos seus pais chegava para tudo?
Gastava tudo. Só não trazia mais vinil porque não queria andar muito mais carregado.
Quando acabava o dinheiro fazia o quê?
Metia-me em casa dos meus pais.
E se estivesse no meio da Europa como é que voltava?
À boleia. Cheguei a ser repatriado e nunca mais paguei à pátria. Estava a passar tanta fominha… Era uma fome criativa, sabia que não ia morrer. Passava dias sem comida quente.
Roubavam comida de vez em quando?
Provavelmente. Tinha um gangue. Eu não era muito rápido, era mais o que criava o evento. Era do género de ir saindo um de cada vez de um restaurante, mas a certa altura a coisa correu mal e apareceram uns com umas marretas. Os meus amigos depois foram apanhados a dormir num parque de autocaravanas. Hoje em dia seria um perigo por causa do terrorismo. Nós éramos apenas vândalos. E depois havia outras ligações, os Baader-Meinhof, as casas em que se passava, o que se via, o pessoal da América do Sul, as armas. Vi a minha primeira Kalashnikov nos arredores de Paris: aprendi como é que se carregava a arma.
Quem é que tinha essas armas?
Gente que circulava na Europa. Sou contemporâneo dos Baader-Meinhof, por exemplo. Só a minha viagem a Berlim através da RFA dava um pequeno opúsculo. Eram-nos pedidas coisas tão engraçadas como esta: “Tens carta? Precisávamos que levasses um carro a Berlim, um daqueles velhos Mercedes. Mas não vamos pela Autobahn [auto-estrada], vamos pela secundária e tem de se entrar pelas traseiras.” Pensei assim: “Quem é que a gente leva? Quem é que está naqueles sacos?”
Foi ver?
Não!
Fez o transporte?
Fiz o transporte pela Floresta Negra, a caminho da RDA, que era assustadora.
Contou várias vezes que salvou mais do que uma vida, fazendo respiração boca-a-boca. O que é que aconteceu?
Também me salvaram a mim noutras circunstâncias. Aí eram overdoses. No meu Exército, morreu muita gente. Eu tenho um fígado bastante fraco e foi a minha salvaguarda para não me meter em grandes cowboyadas. Aquilo mói.
Tinha medo?
Tinha náusea. Não tenho medo de nada, nem do ridículo. Às vezes tenho um bocadinho de vergonha.
De quê?
Das situações embaraçosas em que me meto.
O que é que o embaraça?
Às vezes passo uma imagem muito fútil e idiota, e as pessoas não sabem do sacana ardiloso que está cá dentro. Subestimam-me. Às vezes fico um bocado envergonhado, mas deixo comentar.
Que noção tem do que acham de si?
É erradíssima, felizmente. Eu crio várias personae, não podia viver com aquele homem de palco que é insuportável. As pessoas devem pensar que eu sou um tipo…
…louco?
Chanfrado, vaidoso, mitómano.
E é ou não?
Tem dias, mas fundamentalmente não. Tenho uma vida muito sossegada. Dou-me com toda a gente, com animais e crianças que são os mais intuitivos para analisar os carácteres.
No meio disto tudo, onde é que fica a música?
A música era, das artes de que eu gostava, a que me parecia mais completa e a que me daria menos trabalho. Nunca pensei sentir-me agora tão ignorante, desprotegido e inculto em relação a este meio. Só nos meus colegas pimbas é que não estou nada interessado.
Pareceu muito divertido na publicidade da Optimus que fez com o Quim Barreiros, por exemplo.
Ah, não! Mas eu distingo os artistas da sua arte. O Quim Barreiros é um artista! Ponho o Quim Barreiros e o Manuel João Vieira ao mesmo nível enquanto personae artísticas e ambos são bons no que fazem. Vi uma vez um documentário sobre o Quim em que ele fala da sua tournée na América do Norte e é preciso ter muita fibra. É preciso muita esperteza e não é saloia!
Afinal o que é que ouvia na adolescência?
Comecei por ouvir os discos que havia lá em casa e que os vizinhos tinham: chanson française, uns instrumentais mirabolantes de que o meu pai gostava, Mozart, Helmut Zacharias, Nápoles, umas gôndolas de Veneza e umas coisas kitsch mesmo engraçadas. E tudo o que a televisão começou a vomitar para dentro das nossas casas: o António Calvário, a dona Simone, que ainda se mantém ao longo de tantos anos. É uma esfinge. Pela minha memória deve ter mais de 300 anos. Deus nosso Senhor a conserve por muitos anos. Embora eu confesse que gostava mais da Madalena Iglésias, era mais yé-yé. Mas na adolescência eu gostava muito da canção de San Remo, do Bobby Solo, de uns rockers italianos, do Johnny Halliday, do twist.
E o Bowie não?
Mais tarde. Antes ouvi rock progressivo, depois The Kinks, Ray Davies.
Quando é que surgiu a primeira oportunidade de fazer parte de uma banda?
Eu comecei pelos coros do Secundário, no Liceu Alexandre Herculano, e da JEC. A certa altura mudei de voz e alguém me disse que nunca teria uma grande voz porque tinha uma rouquidão estranha. Fui expulso do Coro Mozart. Depois fui entrando para os conjuntos das garagens.
Tocava?
Eu gostava muito do baixo.
Mas tocava mal?
Sempre toquei muito mal e continuo a tocar sempre que me deixam. Aquela rapaziada dos GNR disse: “Tu entras para o conjunto, mas só cantas, está bem?”
Como é que foi parar aos GNR?
Fui entrevistá-los para um jornaleco de bairro. Eram a banda de que eu mais gostava . Tinham a dose certa de modernidade, portugalidade, inovação. Fui convidado para a sala de ensaios e pensei: “Isto é fantástico, tudo a discutir ao mesmo tempo”. Havia um conflito de egos muito criativo.
Como é que passou a fazer parte da banda?
Já tinha um disco gravado com os Anar Band, música mais experimental, enlouquecida. Isso foi em 1977, com o Jorge Lima Barreto e outros. Ouvia muito jazz experimental, música eletrónica. Fui incorporado nos GNR. Eles queriam qualquer coisa diferente. Estavam a fazer muitos espetáculos e na altura em que eu entrei, estraguei.
Estragou?
Sim! Houve gente que embirrou comigo. Começaram a ter más críticas, nas TV Guias. “Epá, esta banda era tão engraçada e brincalhona e agora é aquele tipo esquisito.”
Como é que isso foi visto internamente?
Com muita simpatia e frontalidade, sobretudo pelo frontman da altura, o Alexandre Soares, que é um amigo para as voltas. Ele dizia: “Eu não estou interessado em cantar, faço um frete. É claro que em termos das gajas é mais chato, elas dão-te mais atenção a ti.”
A si realizava-o cantar?
Eu nunca tinha sido frontman. Eu era instrumentista e falava muito em palco.
Essa composição inicial dos GNR durou pouco tempo, com a saída do Vítor Rua e do Alexandre Soares. Porque é que isso aconteceu?
Estavam sempre a pegar-se uns com os outros e comigo também.
Mas quando eles saíram houve um manifesto… O que é que aconteceu em concreto?
Lembro-me que na altura nem era nada assim tão desagradável. Depois tornou-se porque há pessoas muito obcecadas. Lá está: cada tolinho com a sua… Ainda há um moço que ao fim destes anos todos acha que manda ali e que aquilo é um disparate, mas eu estou completamente zen, não tenho paciência.
Quando saiu a biografia dos 35 anos dos GNR, as críticas vieram do Vítor Rua.
Sim, disse que queimava os livros como se fosse o Reichstag. E que não era nada verdade.
Ele disse que o Rui ou era mentiroso ou estava afetado pelo Alzheimer.
Ai sim? Vejam só. Ou uma ou outra. Acho que não sou mentiroso, sou omisso. Isso são buscas de protagonismo. Passou tanta coisa, passámos tantos embates, atravessámos os anos 80 quando ninguém precisava de nós.
Qual foi a primeira vez em que sentiram que o público estava convosco?
Ao fim de uns quatro ou cinco anos começámos a ser convidados para tocar em tudo o que era sítio.
Na altura do “Efectivamente”?
Sim, com o álbum Psicopátria. Foi aí que pensei que era mesmo aquilo que eu queria continuar. Antes era complicado, não era rentável sequer. Não tínhamos fãs, foi uma gente que se foi habituando a nós. Não éramos particularmente simpáticos. O pessoal dos Xutos talvez fosse o mais simpático. Os dos Heróis [do Mar] eram uns estafermos como nós — iguaizinhos, uns snobes. Havia uma rivalidade que se converteu em cumplicidade. Estávamos no mesmo local, não conseguíamos embirrar nem fazer pose mais de meia hora. Depois acabávamos todos no Bairro Alto. Ajudei muitos a vomitar, eles levaram-me a casa, metia-os no táxi.
Qual foi o primeiro concerto que fez com os GNR?
Teria sido no Rock Rendez-Vous antes de o Independança sair. Lembro-me perfeitamente até porque tenho fotografias. Foi estranho: as pessoas estavam à espera de um GNR e apareceu outro tipo a cantar. Às vezes as pessoas não gostam e levam mesmo a mal.
Trataram-no mal?
Ah, sim, mas eu não me importava. Durante muitos anos trataram-me mal em palco.
Tratar mal é o quê?
Atiravam-se coisas. Às vezes é terrível porque uma pessoa está encandeada com a luz. Então garrafas é terrível! Só as vemos chegar. Uma moeda bateu-me no olho e eu podia ter ficado ceguinho. Lingerie, também. Não magoa, mas tive problemas em casa.
Que peças de lingerie?
Mais sutiãs do que as outras partes mais gagas, que eu não guardo por uma questão de decência, de pudor.
Teve problemas em casa por causa disso?
Por brincadeira pusemos [o sutiã] no carro e aquilo depois ficou na minha roupa suja. É sempre complicado explicar a presença de um sutiã numa banda só de rapazes.
Os GNR foram crescendo muito.
Foi um crescimento muito espontâneo.
Como é que chegaram ao concerto da Alameda, por exemplo?
Correu-nos bem. Tivemos um sponsor forte para uma tournée. Às vezes acontece. Foram as cervejolas.
Deu-vos tanta visibilidade que acabaram a tocar no Estádio de Alvalade em 1992.
Já estávamos a tocar em estádios pelo país inteiro. Porque não ir ao Estádio Nacional ou ao de Alvalade? Pensámos assim: na capital do Império, o único sítio onde cabemos é ali.
Tiveram medo que não aparecesse gente suficiente?
Foi um risco imenso. Depois fizemos assim uma encenação: viemos num avião e foi uma pseudo-limusine buscar-nos, era o único Mercedes com seis portas que havia. Fomos para um hotel no Estoril — o mais foleiro porque não havia verba para mais nada. Foi tudo feito a pulso.
O assédio dos fãs era forte?
As pessoas pedem coisas diferentes ao longo dos anos. Há pessoas muito gratas e simpáticas que dizem que aquilo é muito importante e não chateiam. A coisa que mais aborrece — e que se deve às nossas popstars, é que o professor Marcelo e o Cristiano Ronaldo estão sempre dispostos a tirar as selfies. Embirro imenso porque aquilo apanha-me num tempo que não é o meu, às vezes com pressa, preocupado… Uma pessoa sai de casa devastada com qualquer coisa, uma zanga, um desgosto e está ali a coisa das selfies. E eu não sei para que é que as pessoas querem aquilo!… Devem ser quilómetros de imagens digitais que ninguém há-de ver.
Teve muitas propostas indecentes de mulheres?
Se são sinceras são sempre decentes. Não falo sobre a minha vida pessoal porque aprendi com os grandes Don Juans e Casanovas a não contar nada.
Quando fala publicamente sobre as mulheres com quem se relacionou há um tom tragicómico: ou é aquela com quem apanhou sarna, ou a outra que lhe pegou chatos. Que tipo de relações foi tendo com elas?
Como dizia o António Variações, dar e receber.
Apaixonou-se muitas vezes?
Acho que sim, o suficiente, o que baste. E há alturas em que me sinto naquela felicidade, naquela vertigem. Agora de facto é uma tragicomédia. Sofre-se tanto com aquela coisa, com o ciúme. Há uma altura em que uma pessoa chega a ter ciúmes de as outras pessoas se relacionarem. Então no campo artístico, pensa-se: “Como é que houve 20 mil pessoas que me foram ver e agora vão para a cama umas com as outras?! Que nojo!”
Para quem teve um percurso tão errático é surpreendente saber que se casou pela Igreja, tradicionalmente. Como é que surgiu essa decisão?
De comum acordo, não fui obrigado a casar.
Como é que conheceu a Alexandra?
No Conservatório de Lisboa.
Foram sendo amigos?
Não, não, não, em nenhum momento. Não tinha a nada a ver com amizade. Alguma cumplicidade e depois fomos amigos por causa do miúdo.
Quando se casou pensou que era para sempre?
Já coabitávamos há quatro ou cinco anos. Naquela altura, havia uma convicção e mesmo a felicidade da própria família… Quando olhei para trás, estavam pessoas emocionadas a chorar. E eu disse: «Olha que lindo, não é?»
A si não lhe deu para chorar.
Não, estava preocupado com várias coisas ao mesmo tempo. Estava entre noivo e co-produtor. Recordo [esses dias] como momentos felizes. Foi um casamento muito cigano, comecei a comemorar com três ou quatro dias de antecedência. No bar Swing quase chamaram o INEM porque acho que ferrei em alguém.
Quando diz ferrar quer dizer morder?
Sim, numa daquelas bailarinas que dançam em cima das colunas. Estava de tal maneira entusiasmado que tive de pedir imensa desculpa. Foi das poucas vezes que involuntariamente magoei alguém. Rompi-lhe aquelas meias de rede.
O nascimento do seu filho mudou o quê na sua vida?
O que muda é que o egoismozinho vai-se.
Sentiu-se preso?
Senti. Acho que esperneei um bocadinho e depois pensei: “Não vale a pena. O prazer que daí advém é tão surpreendente e agradável que o resto fica para trás”. Em certas circunstâncias até me salvou a vida.
Deixou de fumar depois de ele nascer.
Dei por mim: “Agora como é que eu faço com um bebé e um cigarro? Alguma coisa está aqui a mais.”
Ainda é adepto da macrobiótica?
Ainda sou carnívoro, mas estou a desfazer-me cada vez mais disso. A carne vermelha traz-me agressividade, dá-me pesadelos.
Continua a ser hipocondríaco?
Sim, mas já tive doenças que podiam ser graves, coisas relacionadas com o fígado, viroses, furunculoses. Mas sou relativamente saudável.
Trata-se com o quê? Homeopatia?
Também. É raríssimo tomar um antibiótico. Agora tomo burututu, cardo mariano, gotas chinesas para arrefecer o vento gástrico, a humidade gástrica. Faço acumpunctura também. Há anos que não tomo analgésicos nem anti-inflamatórios.
Porque é que quis entrar no The Voice?
Curiosidade e vaidade. E foi engraçado estar lá e ganhar. Em termos de massa não foi nada de extraordinário.
O que é que aconteceu no dia em que se foi embora a meio do programa?
Talvez tenha cometido um erro: fiz a cadeira, passei com distinção e não podia fazer melhor. Depois estava ali em competição em termos de atenção e argumentos com gente que não era da minha geração, com quem eu não tinha cumplicidade.
Foi uma birra?
Naquela altura foi um cansaço imenso. Eu pensava que tinha estaleca para aquilo.
O que constou…
Foi que eu estava sob o efeito de substâncias psicotrópicas e bêbedo.
Estava?
Não podia. Só se levasse a pipa lá para dentro! Àquela hora era impossível.
Mas foi-se embora porquê?
Estava com graves problemas. Explodiu-me ali a coisa toda. Estava com um grande receio e muito indignado porque precisava urgentemente de fazer um tratamento e havia coisas que não estavam a funcionar. Pensei: “Se calhar isto é a última coisa que eu faço e eu não queria que fosse isto. Queria que já tivesse acabado.”
Naquela altura, achava que estava em risco de vida?
Estava mesmo. Revi-me — e fiquei muito assustado — numa pessoa que estava com um prognóstico parecido com o meu: o ator Nuno Melo. Ele morreu mesmo [de cancro no fígado]. Bem, mas havia circunstâncias da minha vida que não estavam a correr bem. Devia ter sido mais profissional, mas eu só não tinha desistido para não deixar os meus concorrentes.
Já gravou a solo, tem uma carreira para além dos GNR. E os GNR existem sem si?
Existiram antes e poderão continuar a existir. Ninguém é insubstituível, agora não sei se eles teriam paciência para ensinar as mesmas macacadas. Se me afastassem dos meus capangas, eu não teria a pretensão de continuar com os GNR. E eles também sabem que eu não gosto nada de ver gente a cantar as minhas coisas. Aprendi com a dona Amália.
Como é que lida com o envelhecimento?
Às vezes satisfeito. Sou apologista daquelas anedotas do género: “Um tipo chega aos 60 anos, acorda e dói-lhe alguma coisa e fica feliz porque está vivo.” Tento levar com um certo humor. Costumo dizer que agora tenho muito cuidado a atravessar a rua porque se for atropelado vem no jornal: “Sexagenário colhido fora da passadeira”. Já não é o homem dos GNR. É um sexagenário.