O número 13 é considerado o do azar. Para o Benfica, isso é impensável. No dia 13 de Maio de 1961, o Sporting de Lourenço Marques, onde Eusébio joga, entrega ao Benfica a carta de desobrigação e nasce um mito. Para alegria do Benfica. Para bem de Portugal. Cinco anos depois, em pleno Mundial-1966, os números das camisolas sorteiam-se e o 13 sai a José Augusto. Supersticioso, o extremo quer trocar. Eusébio, o 12, aceita num abrir e piscar de olhos. É com o 13 nas costas que o mundo conhece o fenomenal goleador, autor de nove golos, quatro deles à Coreia do Norte, em seis jogos.
Nunca o modesto bairro Mafalala, em Lourenço Marques, saltara para as primeiras páginas dos jornais. Pois bem, essa tendência altera-se em finais de 1960 por causa de um jovem (Eusébio), que cedo dá nas vistas como juvenil na equipa de “Os Brasileiros”. Mais tarde, tenta a sorte no Desportivo de Lourenço Marques, filial do Benfica e onde joga o seu ídolo: Coluna. “Fui a um treino mas não me aceitaram. Nem sequer me deram equipamento para treinar. Ofendido, ainda voltei lá para uma segunda tentativa. Não me ligaram nenhuma. Desgostoso, voltei-me para o Sporting. Eu só queria jogar à bola”, explica Eusébio.
O Sporting de Lourenço Marques é a filial leonina na Metrópole. É aqui que entra Nuno Martins, treinador desse Sporting. Jogador de 1ª divisão portuguesa, pela Académica de Coimbra entre 1953 e 1957 (figura de uma vitória inesquecível por 2-1 sobre o Benfica, no Campo Grande, em 1954), aventura-se por Moçambique e nunca mais de lá sai. Faz-se jogador do Sporting, depois capitão, finalmente treinador.
[o trailer de “Ruth”:]
Ouçamo-lo. “Naquela altura, os treinos eram das 19 horas até às 22, 22 e tal. Estava eu a trabalhar com os três guarda-redes com bolas medicinais quando me aparece um seccionista do Sporting, de seu nome Vigorosa, a dizer ‘Estão ali cinco rapazes que querem treinar e vir à experiência. Um deles, já o vi jogar e é muito bom, um miúdo com uma habilidade nata, um fora de série’. Àquela hora, não dava muito jeito mas eram miúdos e devemos sempre dar-lhes uma oportunidade. OK, disse eu, que calcem umas sapatilhas e vamos observá-los. Aparece então um miúdo magrinho, de 16 anos, e espantou-me a sua voz de líder. Perguntei-lhe o porquê ter aparecido só àquela hora e ele responde-me: ‘Bem, fomos ali ao campo do Desportivo [conotado com o Benfica de Lisboa, devidamente simbolizado com a águia] e não nos deixaram entrar.’ Então porquê? “O treinador de juniores do Desportivo era um senhor chamado Mário Romeu, funcionário da embaixada italiana em Lourenço Marques, e certamente já tinha acabado o treino. Ter-lhes-á dito ‘não, hoje já não há mais nada para ninguém.’ E o Eusébio, juntamente com os seus quatro amigos, saiu do Desportivo e entrou pelo portão do Sporting, onde estava eu a treinar os guarda-redes.”
E depois? “Eles os cinco treinaram comigo e com os três guarda-redes. Fizemos um campo improvisado e jogámos uma peladinha, onde percebi que o Eusébio tinha uma habilidade acima da média. Disse-lhe logo ‘tu ficas no Sporting, podes ser inscrito’ ao que ele respondeu imediatamente ‘inscrevo-me eu não, ou nos inscrevemos todos ou não se inscreve ninguém’. A tal firmeza na voz aos 16 anos. Isto é muito importante. Não é para todos. Eu então disse ao Vigorosa para os inscrever a todos.”
Renovamos a pergunta, e depois? “Aos 17 anos, o Eusébio já era um jogador feito. Chamei-o ao meu gabinete e perguntei-lhe se queria mais uma época nos juniores ou se queria saltar já para s honras, que era como se chamavam os seniores. Ele respondeu-me na hora: ‘Quero ir para as Honras.’ Pronto, o resto é história.”
Aquele pé esquerdo
Essa é boa. O resto é história, sim, de Portugal. Em Moçambique, como é que é Eusébio sai para o Benfica. “Os seus primeiros jogos foram verdadeiramente empolgantes. Ele tocava na bola e levava tudo à frente. Era um fenómeno. Marcava golos, assistia os companheiros, fazia todo o tipo de diagonais. Jogava a interior-esquerdo. Sempre. E sempre com o número 10. Tinha cá um pé esquerdo. Mais habilidoso e potente que o direito. Com o passar do tempo, habituou-se a jogar mais com o direito do que com o esquerdo e isso permitia-lhe fazer todas as diagonais possíveis e imaginárias. Lembro-me de uma viagem às Maurícias, pela selecção regional. Em Lourenço Marques, só havia pelados. E nas Maurícias, o clima é marítimo, pelo que a relva era húmida. O Eusébio calçou umas chuteiras com pitons rasos e fez jogos extraordinários, sem cair uma única vez. Os locais estavam verdadeiramente espantados porque alguns deles ainda tropeçavam, escorregavam, caíam. O Eusébio não. Parecia um bailarino. E marcava golos. Na estreia pelo Sporting, ganhámos 4-1 e ele marcou logo um ou dois. A partir daí, começou a ser conhecido. E a lenda foi crescendo, crescendo…”
É agora, queres ver? É agora que aparece o Sporting e o Benfica? “Antes disso, há o Belenenses”, diz Nuno Martins. “O Belenenses fez uma digressão por Moçambique e jogou com a selecção dos naturais. Quando chegou a Portugal, o mestre Otto Glória, treinador do Belenenses [e seleccionador de Portugal no Mundial-66], foi questionado pelos jornalistas portugueses sobre Eusébio, porque já se falava dele. Mas Otto Glória respondeu que ‘não, como Eusébio havia lá muitos.’ Sinceramente, não percebi.”
Terá Eusébio jogado mal nesse dia com o Belenenses? “Sim, não terá sido o Eusébio de sempre mas dizer que há muitos como ele… Essas reticências do Otto Glória fizeram com que o Sporting não apostasse logo no rapaz. Aliás, eu próprio, como treinador do Sporting de Lourenço Marques, recebi dois telefonemas do Sr. Fernando da Costa, chefe de departamento do Sporting Clube de Portugal, a perguntar-me se o Eusébio era, de facto, aquilo que se dizia na imprensa. Eu respondi sempre que sim, que o rapaz não enganava ninguém, mas do lado de lá disseram-me que ele não ia para o Sporting.”
E aí aparece o Benfica? “Um certo dia, estava eu a preparar-me para sair de casa em direcção ao Campo João da Silva Pereira para mais um treino no Sporting, quando o Eusébio bate-me à porta. Foi lá despedir-se de mim, que já não iria treinar nessa quinta-feira. Até me lembro da frase dele: ‘Eu vou para o Puto’, como era conhecido Portugal. Eu questionei-o: ‘Mas então já assinaste, já falaste com a Direcção” e ele respondeu-me ‘já, já’. E estava correcto. A Direcção estava ao corrente de tudo e o Eusébio desapareceu de cena. Antes disso, pedi-lhe uns minutos, fui a casa e ofereci-lhe um casaco-blazer que tinha comprado na África do Sul. Ele agradeceu e adeus.”
E a teoria do rapto? “O que eu sei é que o Eusébio pernoitou na casa de um senhor chamado Vasco Machado, juntamente com o Major Rodrigues de Carvalho, que mais tarde acabou por ser Brigadeiro e Presidente da Assembleia Geral do Benfica. Ora o que se passou? Conta-se que esse Major foi à estação central dos Correios, Telégrafos e Telefones de Lourenço Marques, ao lado do Café Scala, na parte baixa da cidade, e emitiu dois telegramas. Um para o Sporting Clube de Portugal, a dizer “Eusébio segue navio motor, Príncipe Perfeito”. E outro para o Benfica. “Rute, segue avião hoje”. O que aconteceu? Enquanto o Sporting fez contas de cabeça sobre a viagem de barco, que atracava em Chelas, o Benfica foi buscar o Eusébio à Portela naquela noite de Dezembro de 1960.”
Dia 16 de Dezembro
Eusébio aterra em Lisboa, com o nome de código Ruth Malosso. Na zona das chegadas, um jornalista d’A Bola aproxima-se do avançado e faz-lhe umas perguntas. É ele, Cruz dos Santos. “Fui para o aeroporto às 11 e tal da noite de 15 de dezembro, uma noite fresca. Fui com um sobretudo quentinho que tinha comprado em Edimburgo uns meses antes e o Eusébio apareceu-me com uma roupinha muito de verão, uma gravatinha, com um ar muito modesto. No uso da palavra, foi a saca-rolhas que lhe fiz uma pequena entrevista, em que lhe perguntei se o que se dizia dele era verdade, que era um grande goleador, e ele disse que fazia uns golinhos.” David Sequerra, do Mundo Desporto, também anda por lá. À pergunta sobre se gosta de marcar golos, Eusébio responde assim, sem papas na língua: “Não sou um avançado-centro, um goleador, gosto mais de jogar a interior-direito.”
Em Lisboa, o nome de Eusébio é sobejamente conhecido. A figura ainda não. Por isso, este caso pitoresco contado por sr. Emílio, dono do restaurante Tia Matilde. “O Eusébio chegou meio às escondidas, como se sabe. E assim se manteve até à estreia oficial pelo Benfica, em Junho de 1961. Quem estava sempre com ele era o Domingos Claudino, director do Benfica. Um dia, levou-o a Alvalade para ver o Sporting-Académica do campeonato.”
O jogo diz respeito à 16.ª jornada, a 22 de Janeiro de 1961. Decide Geo. “Quando é esse golo, o Eusébio levanta-se do lugar e festeja-o. O Domingos Claudino olha-o com desconfiança e leva-o dali para fora. De Alvalade para o Algarve, onde Eusébio passará uma temporada sem ninguém lhe pôr a vista em cima. Pelo meio, Domingos Claudino, já cliente na Tia Matilde, pára aqui com Eusébio e levam um lanche antes da viagem ao Algarve. É a primeira vez que vejo o Eusébio. Daí para a frente, será sempre um companheiro, um amigo, uma referência, um irmão. Só para ver bem, ele chamava-me de Pai Branco.”
Escondido no Hotel Meia Praia, em Lagos, na companhia de Domingos Claudino, o avançado espera, espera, espera, desespera. A 6 de Abril de 1961, a Direcção Geral dos Desportos dá provimento ao recurso do Sporting de Lourenço Marques e indefere o pedido de transferência. Menos de um mês depois, Eusébio escreve à Federação Portuguesa de Futebol a informar que os seus representantes legais não o autorizam a ingressar noutro clube que não o Benfica.
A troco de 400 contos, o Sporting de Lourenço Marques entrega a carta de desobrigação e Eusébio pode finalmente dizer: “Sou do Benfica”. No dia 23 de Maio, já devidamente inscrito e autorizado por todos os demais, Eusébio patenteia os seus recursos. É num desafio de reservas, frente ao Atlético (4-2). Um “hat-trick” do novo reforço não deixa reservas quanto à sua capacidade. A história do futebol português começa a mudar.