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Festa nas ruas de Salvada da Bahia
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Festa nas ruas de Salvada da Bahia

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Festa nas ruas de Salvada da Bahia

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Salvador da Bahia. A cidade da cultura negra, onde "ser gente ainda é privilégio de poucos"

Em Salvador, mais de 80% das pessoas são negras, a cultura é vibrante e a culinária uma viagem. Nesta cidade, os negros são os mais pobres e estão mais longe do poder. Um retrato da capital da Bahia.

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Esta reportagem faz parte de uma série de três retratos sobre o Brasil nas vésperas da eleição presidencial — pode ler aqui o da Amazónia e aqui o das colónias no Rio Grande do Sul.

“Na cidade da Bahia coexistem duas realidades. Uma quotidiana, dramática, terrível de miséria e opressão. Outra mágica, poética e festiva de liberdade e alegria”, escreveu Jorge Amado.  

Há duas cidades dentro de Salvador da Bahia, a mais negra do Brasil. Quando Clarindo chegou, com 8 anos, deparou-se logo com o lado mágico que Jorge Amado descreve. “Eu cheguei e avistei logo a baía de Todos os Santos, a cidade iluminada, o forte de São Marcelo… e soltei: ‘Oh minha mãe, que coisa linda, parece um pandeirão”. Ainda hoje, aos 80 anos, os olhos fixam-se no horizonte e ficam brilhantes. A sua chegada foi a chegada de mais uma família negra àquele paraíso que não tem fronteiras com o inferno.

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A viagem entre Conceição do Almeida e Salvador, cerca de 160 quilómetros, foi feita em 15 horas. “Nós pegámos uma carona em um camião, vínhamos em cima da carga de feijão. Depois saltámos em Santo Antônio de Jesus, pegámos o trem de ferro, fomos até São Roque do Paraguaçu. Aí pegámos o apoio de Cachoeira e saltámos aqui na navegação baiana”. Vinha com os pais e dez irmãos — “minha família é pequena, somos 24 filhos, mas quando chegámos aqui ainda só tinham nascido 11”, sorri.

Assim que chegaram foram todos trabalhar. Os quatro mais velhos serviam como empregados domésticos, a mãe “lavava roupa de ganho” e preparava tabuleiros “com milho cozido, pamonha, batata doce, iguarias, frutas da época, porque que na época as frutas tinham tempo”. E Clarindo, além de estudar, vendia esses tabuleiros — atraía-o sobretudo o negócio no Pelourinho, o centro da cidade, junto à baía que o acolhera. O encanto inicial por aquele aglomerado de casas de estilo colonial, misturava-se com a felicidade de poder “vender a um preço melhor.” “As pessoas eram ricas, me davam sapatos, me davam roupa usada para mim, para meus irmãos”.

Foram aquelas mesmas ruas, umas décadas mais tarde, há 23 anos, que Ivone Jesus começou a percorrer em busca de um sentido para a sua cor da pele e para o seu cabelo, que até aí esticava. Mas eram já ruas mais desertas, então associadas ao crime e à prostituição. O centro já não era a parte vibrante da cidade, estava abandonado e talvez por isso o seu pai se tivesse oposto a que entrasse para a banda feminina de percussão Didá — que em iorubá significa “Poder da Criação”. Quando os destinos de Ivone se cruzam com o Pelourinho tinha 12 anos e, apesar de viver numa cidade onde mais de 80% são negros ou “pardos”, não via beleza nenhuma em ser como é, preferia ser igual à minoria.

Este lado terrível de miséria e opressão de que fala Jorge Amado é a luta de Clarindo — “continuamos na resistência”, diz sempre que cumprimenta um conhecido ou desconhecido. Enquanto isso, Ivone, hoje mestrina da banda, tenta ser um exemplo para que os mais novos sintam orgulho e não vergonha de serem a marca da Bahia — “O meu cabelo é bonito mesmo, como o meu nariz grande, que também é bonito, e a minha boca e o meu corpo grande”. São eles, assim como o Vovô do Ilê Aiyê, a dona Nenê, a baiana do acarajé Érica, Ivete, que foi a primeira reitora negra do Brasil, e André, que é professor e investigador, que não desistem de mudar as regras, os vícios, os costumes e os crimes que durante séculos têm feito da Bahia uma cidade de “miséria e opressão”. Mas são também eles que a fazem todos os dias “poética e festiva de liberdade e alegria”.

Hoje com 80 anos, Clarindo chegou a Salvador com oito

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Ser gente é privilégio de poucos”

“’Distinta’ Criola,
Achei ridícula a sua pretensiosa aparição no BA-TV desta manhã, enfocando os 40% de vagas para os negros. Vá te catar, mulher. Se eles esvaziam as salas de aulas e lotam as cadeias, é por instinto e por maldades, típicos da raça negra mesmo, que não tem educação, princípios, nem querem ser gente […] Tomara que esses 40% não passem e mostrem a vocês que não é culpa dos brancos e sim burrice deles, que não têm preparo, afinal ser gente é privilégio de poucos”.

Ivete Sacramento é responsável pela Secretaria de Reparação da Prefeitura de Salvador e foi a primeira reitora negra do Brasil, assumiu o cargo na Universidade do Estado da Bahia em 1998. Uma das marcas que deixou na instituição de ensino superior foi o estabelecimento de uma quota (40%) para alunos negros — os anos não apagam as reações que recebeu e que ilustra sempre com a carta recebida a 23 de julho de 2002 e que mostrou ao Observador.

Carta recebida por Ivete Sacramento, responsável pela Secretaria de Reparação da Prefeitura de Salvador e primeira reitora negra do Brasil, a 23 de julho de 2002

“É até contraditório uma cidade que tem 82% da população negra a gente falar de racismo, que faz com que essas pessoas negras fiquem alheadas do processo de desenvolvimento. Se passearmos pela cidade, a população é iminentemente negra, mas essas pessoas negras não ocupam posições de destaque”, diz, destacando como a história ajuda a entender o porquê de se ter chegado até aqui: “Em 1888 houve a Abolição da Escravatura. A nossa princesa Isabel aboliu a escravatura no dia 13 de maio, mas isso não significou a abolição de facto para o povo escravo. Houve uma desobrigação do estado de acolher aquela população escravizada. E ninguém tinha pedido para vir, para ser escravizado. Então, no dia 14 de maio, começa a saga do povo negro brasileiro.”

Um povo que de escravo rapidamente passou a vadio. “Não tivemos nenhuma medida de política pública para abrigar aqueles que, historicamente, foram traficados para o Brasil. Como não houve qualquer política de acesso a emprego, você tirou o trabalho, tirou a casa e não deu nenhum abrigo, nenhuma casa, nenhuma perspetiva de desenvolvimento, muito pelo contrário. O escravizado, que tinha uma senzala, deixou de ter. E aí, esse escravizado que está na rua, acabou acolhido com uma lei da vadiagem”.

Ivete Sacramento é responsável pela Secretaria de Reparação da Prefeitura de Salvador e foi a primeira reitora negra do Brasil

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Esse vazio de que fala durou mais de um século: “Nada foi feito em 1888 e só em 2001 é que começámos a implementar políticas públicas de promoção da igualdade racial e de reparação”. A secretaria que agora lidera é, aliás, uma das primeiras com políticas públicas de combate ao racismo no Brasil — começou em 2003 — e a única constituída por uma Prefeitura: “Você tem de dizer ao servidor que ele é racista, porque a população foi criada sob um olhar racista, ao negro era normal ter um papel menor e subalterno”: “Aqui na Bahia a pobreza tem cor”.

E a discriminação também passa pela religião: “Temos aqui uma religião, que todo o mundo chama de candomblé, e que quem a praticava sofria racismo. As pessoas para se manifestarem religiosamente no passado tinham de se esconder, os terreiros eram invadidos por polícias. Quando nós chegámos aqui, em 2013, ao fim de tantos anos, percebemos que todas as religiões tinham isenções de taxas municipais, menos as religiões e povos de terreiro, que são muitas”. Foi um dos primeiros trabalhos feitos pela secretaria: “O Estado há muito que é laico, mas só após esse estudo o prefeito decretou a igualdade, o reconhecimento administrativo, religioso, social, mudando a legislação que havia até 2013. Foi uma medida de reparação”.

Em 2013, o município também ainda não reconhecia as comunidades quilombola (descendentes e remanescentes de comunidades que foram criadas por pessoas escravizadas que fugiram), a maioria na Ilha da Maré — “em pleno século XXI”, — “e agora são reconhecidas, são cinco”.

Cartaz de 1854 em que se oferecia uma recompensa monetária a quem encontrasse um jovem escravo que tinha fugido

Além do reconhecimento estão a ser implementadas medidas na área da educação e da saúde, com os orçamentos das respetivas secretarias, dado que a Secretaria de Reparação apenas tem um orçamento administrativo.

Ao Observador, Ivete conta como as discrepâncias eram muito mais fortes antes do trabalho da sua equipa: em zonas prestigiadas economicamente “tinha um posto de saúde todo completinho, com todos os médicos, um conforto; e num ambiente de periferia estava tudo destruído e os médicos iam lá quando queriam, o atendimento era zero”. “Hoje já temos a mesma estrutura de posto na periferia e no centro, por exemplo, mas claro que ainda há médicos que depois de colocados por concurso recusam ir para a periferia, mas esse já não é um problema administrativo, a gente não pode fazer nada”.

Na Prefeitura também foram adotadas quotas — 30% dos trabalhos são para negros. E como se prova que alguém é negro? Através de uma entrevista em que uma comissão de verificação percebe se aquela pessoa tem características visíveis que são as comuns para discriminação por cor da pele. A antiga reitora da UNEB conta que até essa comissão havia negros a dizer ‘eu sou moreninha” ou “eu sou mulato” para tentar fugir à origem que se habituaram a ver como negativa; e brancos — “até um japonês” — a tentar entrar pelas quotas dos negros, invocando sangue africano. “Então agora usamos a metodologia do racista para a declaração como negro: olhamos para a pessoa, vemos a cor da pele, o fenótipo e como se comporta”. Além do combate ao racismo, a secretaria pôs em marcha planos de empreendedorismo, educação e urbanismo.

Vista geral do Pelourinho, em Salvador

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Antes de ter abraçado este desafio, Ivete Sacramento recorda como em 1998 as fotografias do fórum de reitores do Brasil inteiro era o retrato perfeito de como as oportunidades não são iguais: “Eu era o único ponto preto ali”. “Mudar isso passou a ser uma responsabilidade para mim”. E foi dentro dessa responsabilidade que, em 2002, anunciou um regime e de quotas (40%) para o ingresso de negros na universidade.

Era mais um passo que dava, depois de ter passado por “todas as etapas da ascensão do negro em Salvador”: “A primeira foi em 78, com a conscientização negra, foi por altura dos 90 anos da abolição, e fiz parte de um movimento. Era na época em que apareceram os blocos [de Carnaval] Afro, que nos deram a direção inicial da nossa ascendência africana. Cada ano eles representavam um país. E nós começámos a vestir-nos de forma africana”. Era ainda docente numa escola e fez questão de assumir as origens, de usar cabelo natural de negra e isso inspirou muitas alunas. “Ia observando as meninas a me imitarem aos poucos”, sorri, com orgulho.

“Que bloco é esse”

“Somo crioulo doido, somos bem legal
Temos cabelo duro, somos black power
Que bloco é esse? Eu quero saber

É o mundo negro que viemos mostrar pra você (pra você)
[…] Branco, se você soubesse o valor que o preto tem
Tu tomavas banho de piche pra ficar negrão também”

O primeiro bloco Afro que nasceu no Brasil foi o Ilê Aiyê (Mundo Negro, numa tradução livre), mas António Carlos, ou Vovô do Ilê, como é mais conhecido, nem gostava muito do nome. Preferia que se tivesse chamado “Black Power” — foi aconselhado a que não o fizesse. Ainda assim, essa expressão surge na letra da música feita por Paulinho Camafeu para o primeiro desfile, o de 1975, e que é um hino deste bloco.

“Minha mãe foi a primeira a me chamar atenção de que o nome Black Power não ia dar certo. E depois o senhor Arquimedes, que era o presidente da federação de clube carnavalesco, aí me chamou, ele era um militar da marinha negro, e me falou que eu podia sumir ou ser preso”
António Carlos, Vovô do Ilê Aiyê

Na verdade, o projeto do Ilê Aiyê é desde o início muito mais do que um bloco de Carnaval, “foi feita uma aposta na formação, temos aqui um projeto social: temos uma escola de arte e cultura, com aulas de percussão, de canto, de dança, de noção de cidadania”. Tudo funciona na Senzala do Bairro Preto, a sede do Ilê Aiyê, no bairro periférico do Curuzu. “Minha mãe foi a primeira a me chamar atenção de que o nome Black Power não ia dar certo. E depois o senhor Arquimedes, que era o presidente da federação de clube carnavalesco, aí me chamou, ele era um militar da marinha negro, e me falou que eu podia sumir ou ser preso”.

Tudo foi ganhando forma naturalmente, até o nome da sede surgiu da vivência no bairro. “Um dia nós conseguimos que a prefeitura jogasse uma camada de asfalto no barro que cobria a sede e quando chovia se misturava tudo — barro com asfalto — e ficava uma lama escura. Nessa altura um compositor fez uma música em que chama a este lugar [a sede do Ilê] a Senzala do Barro Preto. E assim ficou”, conta o fundador da associação que nasceu em 1974. Sentado numa sala cheia de troféus e medalhas, numa cadeira forrada com tecido colorido de inspiração africana, António Carlos fala com o cansaço de quem já contou esta história milhares de vezes e a tranquilidade de quem sabe que o vai ter de a repetir muitas mais. Com a uma simpatia de poucos sorrisos, orgulha-se de mostrar o que construiu, o pavilhão onde se ensaia e até a parte administrativa — onde guarda tantas memórias impressas em papéis.

O primeiro Carnaval do Ilê Aiyê foi logo em 1975: “O elenco foi fundado com a proposta de em plena ditadura ser uma entidade exclusivamente de negra, dirigida. Porque as grandes organizações carnavalescas não permitiam até aí o acesso de negros. Eles [negros] podiam sair tocando, sem trio elétrico, ou carregando alegoria. Mas não podiam desfilar no bloco. Depois, nos anos 80, surgiram os famosos blocos de trio, já com influência dos blocos Afro”.

O primeiro bloco Afro que nasceu no Brasil foi o Ilê Aiyê (Mundo Negro, numa tradução livre)

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Depois do Ilê Aiyê foram surgiram outros, mas talvez por ter sido o primeiro o bloco do Curuzu tronou-se um símbolo. O Vovô não tem dúvidas de que continua a ser o mais tradicional e muito respeitado. “No início houve críticas. Houve até quem se prendesse em pequenas coisas, que a sede deveria chamar-se quilombo e não senzala” (por esta estar associada a atrocidades e à escravatura), mas enquanto fundador, muito influenciado pelo movimento negro norte-americano, opôs-se, porque queria ressignificar a palavra: “É um espaço de cultura, de dança, de alegria, de confraternização, de abraço e ficou assim.”

Mesmo com um nome mais suave, as dificuldades foram muitas. E, em tempo de repressão, a patrulha mista (polícia e militares) estava sempre muito atenta à documentação e a quem fazia parte. “Não acreditavam que um bloco da Liberdade [zona onde fica o Curuzu], que é conhecido como linha 8, não tivesse marginais”. O bloco cresceu, no primeiro ano foram logo 100 pessoas a participar, e causou um impacto muito forte na cidade.

“No jornal A Tarde, foi notícia que éramos um bloco racista, porque não deixávamos entrar brancos. Veja se isso é possível... mas o mais interessante é que mais recentemente, nos 25 anos do Ilê Aiyê, A Tarde fez um caderno de homenagem ao bloco”
António Carlos, Vovô do Ilê Aiyê

“No jornal A Tarde, foi notícia que éramos um bloco racista, porque não deixávamos entrar brancos. Veja se isso é possível… Mas o mais interessante é que mais recentemente, nos 25 anos do Ilê Aiyê, A Tarde fez um caderno de homenagem ao bloco”, sorri António Carlos, insistindo que ali dentro não há racismo, apesar de manterem a tradição de não deixarem entrar brancos no bloco. Quem não é negro pode assistir, ir à sede, participar nos eventos, mas não desfilar.

Por lá passaram nas últimas semanas Lula da Silva, Ciro Gomes e Simone Tebet. E a todos, António Carlos deixou recado: “O Ilê Aiyê não tem partido”. “Eu falei com o Lula aqui, disse-lhe que, quando passam as eleições, isto parece um país europeu, não há negros no governo. E depois os partidos só passam aqui nas próximas eleições para tirar foto comigo. Estamos com dois projetos um de 150 mil reais e outro de 115 mil reais e os caras do governo da Bahia não pagam à gente. E querem fidelidade? Nós queremos liberdade, igualdade e respeito, queremos espaço para dividir esse bolo”.

António Carlos, Vovô do Ilê Aiyê, na principal rua do bairro do Curuzu

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António Carlos nasceu ali, sempre rodeado de negros, e nunca sentiu a discriminação que existe em outros ambientes. “Já tínhamos a autodefesa nossa. Aqui havia muito orgulho de se ser da Linha 8. Aqui não havia trauma de ser negro, o branco aqui era convidado”, conta ao Observador, lembrando que na sua opinião os problemas que existem não são todos culpa dos brancos.

“Eu não fico só batendo no branco, se nós estamos em maioria na cidade e não há deputados negros eleitos, apesar de haver candidatos, é porque os negros não votam em negros. Então não se pode só por a culpa no outro. Aqui é o único lugar onde a gente vota no inimigo, aqui na Bahia. Existe um Apartheid aqui, uma minoria branca que domina, mas é fortalecida pelo voto e pelas atitudes do povo negro. Há a chamada black attitude e eu tive sempre”.

"Sabe, o Carnaval aqui é 'carnanegócio', custa mais de um milhão, um milhão e meio [de reais] para pôr um Carnaval na rua"
António Carlos, Vovô do Ilê Aiyê

Neste momento, o Ilê Aiyê tem uma escola até ao 4º ano, onde estudam até 140 alunos e depois existem outras atividades à parte que ocupam cerca de 100 crianças e adolescentes. O Curuzu é um bairro de construções desordenadas, de fios emaranhados e de famílias com muitas necessidades, onde facilmente os jovens se deixam levar pelo mundo do crime. Este projeto teve o mérito de tirar muitos da situação de risco, mas vive agora momentos mais difíceis do que num passado recente — quando era patrocinado por gigantes como a Petrobras (petrolífera estatal), o banco Itaú e até o Grupo Pão de Açúcar. Neste momento não tem esses patrocínios.

“Sabe, o Carnaval aqui é ‘carnanegócio’, custa mais de um milhão, um milhão e meio [de reais] para pôr um Carnaval na rua”, conta ainda o único fundador do Ilê vivo, lembrando que este ano o tema do desfile será um país africano de língua portuguesa: “Vai ser sobre Angola, focado no centenário e Agostinho Neto”.

E a tradição vai manter-se, como acontece todos os anos desde 1975: “Desfilamos aqui na Liberdade, onde cada casa, cada janela, vira um camarote, depois vamos até ao Plano Inclinado [já às portas do centro da cidade] e depois o desfile vai para o Campo Grande”.

Bairro do Curuzu, na periferia de Salvador

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Nesta campanha já vendi panelas de feijão. Eles dão feijão ao povo para terem voto”

“Toda menina baiana tem um santo, que Deus dá
Toda menina baiana tem encantos, que Deus dá
Toda menina baiana tem um jeito, que Deus dá
Toda menina baiana tem defeitos também que Deus dá”

Um dos camarotes privilegiados é o de dona Nenê. Lucidalva Ferreira dos Santos tem 62 anos e explora há 16 anos o restaurante ao lado do Ilê Aiyê, uma esplanada ao nível de um primeiro andar com vista privilegiada para o Curuzu. “Nasci e me criei aqui. Morei ali numa avenida em frente ao colégio Teresa Conceição Menezes. Minha mãe faleceu quando eu tinha 3 anos e eu fui entregue à comadre dela para tomar conta”. A vida começou difícil. Tem o santo, os encantos, o jeito e os defeitos que Deus lhe deu e que Gilberto Gil cantou. Talvez porque a comadre da mãe também tenha ajudado a moldar.

Já fez um pouco de tudo, foi “vendedora de picolé, de água de côco e trabalhou no Hospital do Câncer, em Brotas, durante 9 anos”. Viu a morte de perto tantas e tantas vezes, sentiu medo de viver onde vive outras tantas, mas nunca deixou que a tratassem mal pela cor da pele.

"Eu nunca sentia dificuldade com isso e sempre me aceitei do jeito que eu sou. Quem não gosta do meu jeito, que tome suas providências. E sempre meti a cara em tudo: é para fazer, a gente faz, não é para fazer, a gente não faz. Nunca tive problemas com ninguém em relação à minha cor, não vou dizer que já tive porque é mentira. Quem tem de me achar bonita sou eu, sempre tive resposta para todo o mundo"
Lucidalva dos Santos, dona do restaurante do Curuzu ao lado do Ilê Aiyê

“Eu nunca sentia dificuldade com isso e sempre me aceitei do jeito que eu sou. Quem não gosta do meu jeito, que tome suas providências. E sempre meti a cara em tudo: é para fazer, a gente faz, não é para fazer, a gente não faz. Nunca tive problemas com ninguém em relação à minha cor, não vou dizer que já tive porque é mentira. Quem tem de me achar bonita sou eu, sempre tive resposta para todo o mundo”, atira com a atitude de quem cedo teve de se desenvencilhar para sobreviver num bairro onde “todas as pessoas são negras, negonas”, tal como a sua mãe e a sua avó — a bisavó era indígena.

Da esplanada que fica na cobertura de uma pequena construção típica do Curuzu, com acesso por umas escadas laterais exteriores, tem-se uma vista privilegiada para aquela rua — é mesmo ao lado da Senzala do Barro Preto.

E Nenê já se apercebeu de que há problemas no Ilê. Depois da pandemia os turistas, que tanto admiravam o seu feijão, não voltaram e os ensaios “também estão um pedacinho mais vazados”. “Acho que eles vão tomar providências”, suspira, enquanto faz contas à sua vida. Agora quase que o dinheiro vem contado para as despesas, está longe de ser a loucura que era até 2020: “Eu já levei 24 horas de relógio sem botar o pé na minha casa, que é mais abaixo um pouquinho, porque tinha muito movimento, os gringos que vinham para o almoço de dona Nenê, janta de dona Nenê”.

Lucidalva dos Santos, dona do restaurante do Curuzu, ao lado do Ilê Aiyê

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O “feijão com carne dentro”, que diz ser a sua especialidade, já ultrapassou as fronteiras do Curuzu. “Ainda nessa campanha política eu vendi panelas de feijão, que é muito bom. Eles me encomendaram, para dar feijão para o povo votar neles”, ri-se, dizendo que ela não tem partido. Mas a pressão política que existe, a vontade de mudar de vida não a deixa calar muito tempo o voto do dia 30. Será no 13, em Lula da Silva, e explica porquê — “roubar todos eles roubam, mas o que está lá agora não gosta de pobre”.

A vida de Lucidalva será sempre ali, mais acima ou mais abaixo — “Nunca pensei sair, um dia um angolano apaixonou-se por mim e queria que eu fosse para lá, mas eu não saio daqui, nem que ganhe a lotaria, só não vou falar para ninguém que ganhei”, ri-se, enquanto baixa a voz para falar nos problemas de segurança do bairro.

O acarajé terá tido origem no Golfo do Benim, chegado ao Brasil no período da escravatura e tem ligações ao culto dos orixás — divindades da mitologia iorubá —, presentes nas religiões de matriz africana, como o Candomblé.

“Várias vezes já me senti desconfortável, mas como sou raiz [expressão para dizer que é originária] e não mexo com eles, eles não mexem comigo”, diz em relação a quem comanda o bairro, rematando: “Mas que mete medo, às vezes mete”.

A maioria das pessoas gostaria de ficar onde nasceu, mas há também quem se questione se vale a pena partir se não vier um futuro. Érica Cruz, tem 34 anos, e comanda agora um dos espaços mais conhecidos da comida baiana de rua: o Acarajé da Dinha, no bairro boémio Rio Vermelho. A avó Dinha (Lindinalva de Assis) morreu em 2008, depois de uma vida que lhe valeu o título de melhor acarajé — uma espécie de bolinho feito de massa de feijão-frade, cebola e sal que é frito em azeite de dendê (óleo de palma). Lá dentro pode levar camarão e quiabo. O acarajé terá tido origem no Golfo do Benim, chegado ao Brasil no período da escravatura e tem ligações ao culto dos orixás — divindades da mitologia iorubá —, presentes nas religiões de matriz africana, como o Candomblé.

O que é o Candomblé?

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  • Trata-se de uma religião que teve origem no Brasil, nas comunidades de escravos, tendo por base crenças espirituais iorubás, fons e bantas e uma influência direta do catolicismo.
  • Olodumarê é o Deus poderoso, que é servido por orixás — divindades menores. Cada crente tem o seu orixá, que confere proteção e controla o seu destino.
  • Não tem escritura sagrada, mas sim uma tradição oral. Como rituais tem a dança e a música.
  • Terá à volta de dois milhões de crentes em todo o planeta. Tendo havido perseguição e atos hostis a quem praticava esta religião durante muitos anos.

O quiosque onde hoje vende acarajé a 15 reais fica no largo de Santana, próximo de onde a avó trabalhava com um pequeno tabuleiro, vendendo por valores bem mais baixos — aliás ainda hoje em Salvador se podem encontrar bancas a vender acarajé a partir de 1 real (como acontece junto ao Curuzu, na periferia).

Mas o acarajé da Dinha é já uma marca, tendo já sido frequentado por celebridades como Chico Buarque, Daniela Mercury e até Jorge Amado. Érica não vende só acarajé, vende o melhor acarajé e vende uma história.

Há quem ainda peça um desconto, a jovem empresária associa isso a várias coisas: ser uma comida africana, de rua, e que se encontra com facilidade em Salvador. “Quando a gente fecha um orçamento, sempre tem um “oh baiana tá caro”. Érica não cede, o valor é tabelado e não é barato, porque busca também a valorização.

Érica Cruz, tem 34 anos, e comanda agora um dos espaços mais conhecidos da comida baiana de rua: o Acarajé da Dinha

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Eu vejo mais entusiasmo, mais alegria dos turistas — que falam da nossa cultura, que querem descobrir e desfrutar do que a gente aqui tem” — do que dos baianos. “Acham que todo mundo deveria vender barato, mas eu tenho seis funcionários de balcão, fora dos da produção”, que trabalham para o quiosque do Rio Vermelho e para o da Costa Azul.

Érica é negra, baiana do acarajé (passa quase sempre de mãe para filha), mas tirando a comida poucas são as tradições africanas que tem no seu dia a dia. Sente-se brasileira nos costumes, adora samba — a raiz — e tem o sonho de que o Brasil também a veja no futuro, a ela e à filha, agora com um ano, brasileiras como quaisquer outras.

"Não é que tenham olhado torto, mas olharam com cara de ‘não vai comprar nada’. Às vezes até fico pensando se serei eu, que já estou tão cansada disto tudo, a generalizar ainda mais". Foi por isso que nunca mais lá entrou, porque "não se sentiu acolhida"
Érica Cruz, baiana do acarajé

“Fui hoje a uma pastelaria que vende fatias de torta a 22 reais e fiquei lá dez minutos esperando, parada. E eles passaram até os pedidos para fora à minha frente. Se entrasse outra pessoa como a moça que estava lá antes, para quem eles foram super prestáveis, eles atendiam bem. A mim nem me perguntaram o que eu queria. Claro que há hoje muitas lojas do segmento para negros e assim, onde o tratamento é excelente, mas tem lojas onde você vai e sente que é tratado de forma diferente”.

A jovem baiana, que se formou em administração e fez pós-graduação em logística, não tem dúvidas de que existe muito racismo, contando que até na Zara já sentiu isso: “Não é que tenham olhado torto, mas olharam com cara de ‘não vai comprar nada’. Às vezes até fico pensando se serei eu, que já estou tão cansada disto tudo, a generalizar ainda mais”. Foi por isso que nunca mais lá entrou, porque “não se sentiu acolhida”. “Sim, às vezes não vou para comprar, mas era bom alguém que dissesse: ‘Se precisar de algo estou aqui’”.

O Acarajé da Dinha fica no bairro boémio Rio Vermelho

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

É isso que tenta mudar todos os dias em Salvador e a educação da filha é um dos seus segredos — “quero que a minha vida seja um livro aberto para ela”. Se por aqui não der já para fazer a vida que quer, sabe que um dia acabará por sair: o Rio de Janeiro é a cidade que ama, mas onde não se vê a viver, já Portugal seria uma opção: “Quem sabe a vender acarajé…”

A mulher negra arranja sempre uma forma de dar a volta por cima. André Carvalho tem 39 anos, mas desde pequeno que não tem dúvidas disso. Hoje é professor de História, dá aulas a alunos do ensino médio da rede pública, e investigador da área da educação e das relações étnico-raciais. “O meu pai teve com a gente [mãe e irmão] até um determinado momento e depois saiu. A gente foi criado por minha mãe, que era uma professora também”.

Quando o pai saiu de casa, outra figura materna ajudou a assumir as rédeas, permitindo que André fosse hoje professor. “A minha tia paterna (uma das primeiras médicas negras da Universidade federal da Bahia) passou a assumir emocional e financeiramente as obrigações do meu pai. A partir de determinado momento, ela passou a pagar a minha escola. Provavelmente a minha mãe não poderia ter pago sozinha as escolas onde estudei. As escolas de classe média onde eu era claramente uma minoria”, diz, recordando de um dos conselhos que a tia mais repetia: “Tens de ser o melhor”.

"A minha tia dizia-me sempre 'nós que somos pretos temos de ser os melhores, porque sempre vão cobrar da gente o melhor. Se você não for o melhor, se você for igual ao outro, você não vai entrar [num trabalho]. Você só vai entrar se for melhor'"
André Carvalho, professor e investigador negro

“Ela dizia-me sempre ‘nós que somos pretos temos de ser os melhores, porque sempre vão cobrar da gente o melhor. Se você não for o melhor, se você for igual ao outro, você não vai entrar [num trabalho]. Você só vai entrar se for melhor’”.

André entende melhor hoje que sempre viveu “num matriarcado” e que, por isso, as mulheres são as suas “heroínas”. Mas isso não é só uma experiência pessoal: “Eu acredito que as mulheres negras assumem essa demanda na sociedade, assumem esse compromisso, têm honrado esse compromisso. Não que os homens também não participem. Hoje meu pai tem uma outra relação comigo, a gente tem se aproximado. Mas, claro, eu também insisto sempre nessa questão da mulher, porque as mulheres da minha vida participaram ativamente”.

No seu dia a dia, não sente que esteja menos preparado que os seus colegas, sejam das escolas públicas ou das privadas, mas sente de forma clara como as crianças negras, como ele, são as que mais estão expostas a um ensino público que apesar de ter professores competentes não tem meios. “Às vezes na sala a gente não aguenta de calor, são dois ventiladores, com temperaturas muito altas e 35 alunos lá dentro”. E desses 35, a maioria são negros, ainda que com a pandemia e as perdas de emprego de muitos brasileiros se tenha assistido à chegada de alguns alunos que frequentavam o privado. “Na minha escola, a Rafael Oliveira, antes era 90 ou 95% de negros. Agora pode ter caído para 80%, mas continuam a ser muitos mais”.

Segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio Contínua (PNAD Contínua, 2017), em Salvador da Bahia, os negros (pretos e pardos) totalizam 2,425 milhões, ou seja, 82,1% dos 2.954 milhões de habitantes. Percentagem muito diferente da do resto do Brasil, onde os negros representam 54% do total.

Também entre o contrato dos professores com a escola diz sentir desigualdades: “A maioria dos efetivos são professores brancos, eu sou dos poucos que sou negro e efetivo”.

Segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio Contínua (PNAD Contínua, 2017), em Salvador da Bahia, os negros (pretos e pardos) totalizam 2,425 milhões, ou seja, 82,1% dos 2.954 milhões de habitantes. Percentagem muito diferente da do resto do Brasil, onde os negros representam 54% do total. Nos rendimentos, o fosso também está a crescer. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) tem-se assistido a um acirramento da desigualdade salarial.

André Carvalho tem 39 anos e é hoje professor de História

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Senhora, o cabelo da sua filha fica feio na televisão”

“Hoje eu só vim agradecer / Por tudo que Deus me fez / Quem me conhece sabe / O que vivi e o que passei / O tanto que ralei / Pra chegar até aqui / E cheguei, cheguei”

O que Ivone de Jesus mais aprendeu na banda Didá foi a valorizar-se enquanto mulher negra, mais do que tocar instrumentos de percussão. Na escola onde andava, no bairro de Sete Portas, a maioria dos colegas eram negros, mas também não aceitavam: “Eu dava química no meu cabelo desde os oito anos. Mesmo assim não ficava liso, porque sempre tive muito volume. Para a minha mãe era cansativo, desembaraçar o meu cabelo, mas ela também cresceu a aprender que o bonito era anular as nossas características. Para a minha mãe, o preconceito era muito natural, era natural achar que o meu cabelo era feio, ela não tinha consciência porque também nunca lhe foi explicado”.

Antes de entrar na Didá, Ivone provou a cidade da opressão. A letra da música Fé, lançada este ano pela cantora e compositora carioca Iza — parece ter sido copiada a papel químico das páginas da sua vida. Talvez por isso naquela terça-feira à noite tenha escolhido ensaiá-la com uma das turmas. Ainda hoje se lembra quando, aos 11 anos, saiu de uma operação ao pé direta para um casting da série brasileira as Chiquititas. Esperou horas na fila, “com o pé enfaixado”, para ouvir “senhora, o cabelo da sua filha não pode ser assim não, que vai ficar feio nas imagens”. Tentaram fazer uma trança, mas ela ficava espetada, e teve de ficar a segurá-lo. “A minha mãe achava normal, a gente achava normal, mas não era”.

Ensaio da banda Didá numa das salas do edifício. Horas depois o ensaio foi na rua, onde toda a gente pôde assistir

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Entrar para a banda de percussão Didá, que estava com muito sucesso nas televisões, era o sonho da mãe e foi isso que colocou a menor nos ensaios: “O meu pai era um homem à antiga. Se era casada não podia ficar saindo e mãe tinha aquela coisa de idealizar os sonhos nos filhos.” No início o pai também não aceitou, “porque o Pelourinho era brega”.

“Todo dia era uma briga dentro de casa, mas a minha mãe não desistiu. Eu ainda pensei desistir, porque chorava de ver todo dia perturbação, uma briga entre eles. Sofria, vendo o meu pai xingando ela dentro de casa”. A resistência do pai só terminou quando ‘Neguinho’ foi lá a casa falar com o pai.

Neguinho do Samba é António Luis Alves de Souza e foi ele quem deu o pontapé de saída para a criação da banda Didá, que já gravou com estrelas como Anitta, Daniela Mercury, Carlinhos Brown e a rapper americana Cardi B, tendo ainda tido uma participação na abertura do Mundial de Futebol de 2014, ao lado de Shakira. Em 1996, Neguinho do Samba — o pai do samba-reggae — foi o músico músico que dirigiu a banda Olodum no videoclipe "They Don't Care About Us", de Michael Jackson, gravado no Pelourinho

Neguinho do Samba é António Luis Alves de Souza e foi ele quem deu o pontapé de saída para a criação da banda Didá, que já gravou com estrelas como Anitta, Daniela Mercury, Carlinhos Brown e a rapper americana Cardi B, tendo ainda tido uma participação na abertura do Mundial de Futebol de 2014, ao lado de Shakira. Em 1996, Neguinho do Samba — o pai do samba-reggae — foi o músico que dirigiu a banda Olodum no videoclipe “They Don’t Care About Us”, de Michael Jackson, gravado no Pelourinho, e anos antes o cantor norte-americano Paul Simon tentou oferecer-lhe um carro pelo trabalho no Olodum.

Neguinho do Samba, que morreu em 2009, terá dito que preferia dinheiro para comprar um edifício no centro histórico, à data deserto e entregue ao crime, para instalar a sede de uma banda feminina — não entendia porque o Olodum era reservado a homens. Hoje a Didá é liderada pela sua filha Débora Souza.

De menino doméstico a guardião do centro histórico

“O povo que não preserva o passado, que não vive o presente, jamais poderá construir um grande futuro”

As ruas da infância de Clarindo Silva eram mais cheias do que aquelas que Ivone encontrou anos mais tarde quando chegou à Didá. E nem a debandada geral lhe trouxe dúvidas sobre onde seria o seu lugar em Salvador, Clarindo sabia que era ali, no centro. Sentia-o. E a confirmação chegou quando o dono de um bazar de ferro velho que ocupava grande parte de um edifício do Terreiro de Jesus lhe perguntou se conhecia algum menino como ele que quisesse ser doméstico. Era uma família de posses, ainda que a crise da Segunda Guerra Mundial a tivesse obrigado a subalugar duas portinhas à Cantina da Lua — onde o senhor Renato vendia “cervejas, cachaça de infusão com folha de cidreira, capim santo, cambuí… as bebidas mais tradicionais da cidade” na época.

“Os meus quatro irmãos mais velhos já eram empregados domésticos e no trabalho comiam carne, comiam queijo, comiam manteiga, coisas que não entravam em nossa mesa”
Clarindo Silva, o guardião do Pelourinho

O jovem respondeu aquilo que o dono do bazar queria ouvir. Hoje tem perfeita noção disso. “Posso ser eu”, gritou, pensando na vida que os irmãos tinham conseguido: “Os meus quatro irmãos mais velhos já eram empregados domésticos e no trabalho comiam carne, comiam queijo, comiam manteiga, coisas que não entravam em nossa mesa”. As peças pareciam estar a encaixar-se, mas quando a mãe foi falar com o senhor Eduardo levava uma condição, exigida por Clarindo: não podia deixar a escola. “Mesmo quando vendia os tabuleiros andava sempre com alguma coisa para ler, eu queria estudar, estava sempre batendo na tecla de ser advogado. Era um sonho quase irrealizável, eu sabia”.

A condição foi aceite e, a partir daí, veio a vida que tanto quis — não por ser boa, mas por ser a menos má que podia ter. “Saía da escola, passava rapidinho em casa, ia pegar a comida dele [patrão] para levar para o bazar e ficava lá, arrumava as coisas, lavava o sanitário e varria. Quando saía do bazar, por volta das 15h, ainda ia para a casa do patrão, mas antes passava no bairro da Caixa de Água para pegar o leite, que na altura íamos pegar nos estábulos”. Daí, ia para casa fazer os trabalhos de casa e quando acabava a mãe já tinha um tabuleiro pronto, que Clarindo vendia no seu bairro, porque nesta nova vida já não tinha paciência nem tempo para vender no centro da cidade.

Clarindo diz sempre que cumprimenta um conhecido ou desconhecido: “Continuamos na resistência”

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

No bazar foi crescendo. Passou de doméstico a batedor de ferrugem, mais tarde a auxiliar de balcão e depois a balconista. A ascensão foi rápida e na escola, tirando os três anos que parou a seguir ao ensino primário, tudo ia andando. Após a paragem voltou a estudar “numa escola na rua Rui Barbosa que era extremamente racista: dos 48 alunos só tinha ‘dois negões’”.

“Eu era pobre e o Roque estava no nível  dos outros colegas. Todos com cadernos com espiral. Eu era o único que fazia anotações em papel de embrulho”. Clarindo era um menino raquítico e sentava-se no fundo da sala.

“No último ano, o professor perguntou onde íamos fazer exame de admissão, que era pior do que o vestibular hoje. Era mês de outubro e ele disse ‘e você aí do fundo, menino?’. Eu respondi ‘Vou fazer no [colégio] Severino Vieira’”. O professor tentou desincentivar, dizendo que deveria escolher um colégio menos exigente, porque ele era “muito fraquinho”.

"Só havia dois negros na minha escola. Eu era pobre e o Roque estava no nível  dos outros colegas. Todos com cadernos com espiral. Eu era o único que fazia anotações em papel de embrulho"
Clarindo Silva, o guardião do Pelourinho

Nesse dia, teve uma crise de choro e decidiu entrar na biblioteca pública para pedir livros, nunca tinha feito até então, e “das 22h até às 2h ou 3h ficava em casa com os pés dentro de uma bacia de água fria a estudar, a preparar-se para o exame”.

“O Português era eliminatória e havia uma prova escrita e outra oral”. No dia da oral decidiu ir para a fila mais pequena, a da sala onde estava uma professora que era conhecida como ‘calamidade’. Estava bem preparado e não tinha muito a temer, mas estava nervoso.

“Está tremendo? O que você faz na vida?”
“Sou empregado doméstico”
“E o que quer ser?”
“Quero ser advogado”
“Um advogado preto? [silêncio] Leia até ao segundo parágrafo e faça a análise”

Dias mais tarde foi consultar as notas e, sem que tivesse qualquer expectativa, “Deus tinha-[lhe] dado a benção de tirar 8 na escrita e 10 na oral”. Era mais do que suficiente. Acabou a fazer jornalismo, trabalhou n’A Tarde, um dos jornais de maior circulação, e mais tarde haveria de explorar as duas portinhas da Cantina da Lua. Um projeto que passado uns tempos engoliu todo o prédio do Bazar onde tinha sido doméstico e que durante todos estes anos acolheu eventos relevantes, recebeu políticos e tornou-se uma verdadeira marca de resistência. Foi a cara da luta pelo Pelourinho, pela remodelação dos espaços públicos e ainda tem esperança de ver o centro de Salvador vibrante de gente. Autor de vários livros, um dia Clarindo escreveu uma frase que mostra ao que veio: é um homem que “preserva o passado”, “vive o presente” e quer continuar a “construir o futuro”.

Aos 80 anos, aquele ser magro de expressão sorridente, sempre vestido de um branco que lhe destaca os traços da cara, é dos que mais Bahias conhece. E, como todos os outros que vivem estas duas cidades que são só uma, foi por elas que se apaixonou, mesmo nos momentos em que a da miséria e opressão se sobrepôs à mágica e poética.

Vista, ao final do dia, de uma das praias de Salvador

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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