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INÁCIO ROSA/LUSA

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Santa Filomena. Os dramas por detrás das demolições

A casa de Teresa desapareceu numa manhã. Dulce teme a sua vez, que há anos sabe que virá. Até 2016 o bairro vai abaixo. O que fazer a quem não tem outro sítio para onde ir? As opiniões dividem-se.

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“Quem é?”

7h59 não são horas de se bater à porta dos outros. Faz sentido, por exemplo, que um pouco mais tarde o carteiro o faça. Ou, antes da altura do jantar, é possível que apareça uma vizinha a procurar pelo filho, que costuma ir à casa de outras crianças brincar. Mas às 7h59 da manhã, quando o dia se começa a levantar, não é normal chamar-se por alguém.

Foi isso que Teresa Carvalho, 45 anos, pensou quando ouviu o toc-toc na porta de madeira da sua barraca no bairro de Santa Filomena, na Amadora. Nesse momento, tinha o filho mais novo, de três anos, nos braços. Wilton molhara a fralda durante a noite e Teresa estava prestes a dar-lhe banho. Enquanto isso, Feliciano Soares, 39 anos, o pai desta família são-tomense, preparava Carlos, o filho do meio de oito anos, para este ir para a escola. As aulas começariam daí a 45 minutos.

Só que, àquela hora, bateram-lhes à porta de casa. Então, pai e mãe abandonaram por momentos o que estavam a fazer para ver quem era. Espreitaram lá para fora e, em vez de apenas uma pessoa, encontraram várias.

“Quem é?”

Eram polícias. “Todos vestidos como se fosse para irem para a guerra. Máscara, capacete… tudo. E lá atrás tinha uma caterpillar”, recorda Feliciano. Uma retroescavadora.

“Vamos começar a demolição. É preciso esvaziar a casa”, disse-lhes um deles.

Teresa e Feliciano foram apanhados de surpresa. De repente, a família teve de sair toda de casa. Pelo meio, foi-lhes novamente pedido que retirassem de dentro da barraca tudo o que quisessem guardar para a demolição avançar.

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Feliciano recusou-se a fazê-lo e ordenou à mulher e ao filho mais velho, Kelves, de 16 anos, que não retirassem nada. Primeiro, porque era uma forma de protesto. Segundo, porque era única ponta de esperança que tinha de reverter o que ia a acontecer. Se as coisas ficassem dentro de casa, talvez ela não fosse abaixo.

Enganou-se. Um grupo de funcionários da Câmara Municipal da Amadora começou a trazer o recheio da casa para a rua, cuja terra batida não demorou a enlamear-se com a chuva miudinha daquela manhã. “Começaram a puxar as coisas para fora. Televisão, máquina da roupa, frigorífico, mobília… Ficou tudo à chuva”, recorda Teresa. “E depois começaram a mandar a tudo abaixo, ainda nós tínhamos coisas lá dentro. Roupas minhas, das crianças… Tinha a despensa cheia de comida e eles partiram tudo lá, só consegui tirar dois peixes.” Era 24 de março de 2015 e, naquela manhã, Teresa e Feliciano ficaram sem a casa e os seus filhos faltaram às aulas.

As últimas demolições em Santa Filomena foram a 8 de julho. No final, só ficaram 50 casas de pé. Antes das demolições, que começaram em 2012, eram quase 500. (Fotografia: Michael Matias / Observador)

Michael M. Matias/Observador

Demolir o bairro até ao final do ano: “Um desejo e uma certeza”

O casal são-tomense sabia que, mais tarde ou mais cedo, aquele dia tinha de chegar. Isto porque o bairro de Santa Filomena, na Amadora, é um dos núcleos de barracas que a Câmara Municipal planeia erradicar, há mais de duas décadas, ao abrigo Programa Especial de Realojamento (PER). Realojamento é a palavra-chave, mas não para Teresa e Feliciano. A lei, publicada em 1993, determinou que todas as pessoas que estivessem instaladas até a essa altura em bairros sujeitos a demolições teriam direito a habitação social. Dois anos depois de a lei ter sido aprovada na Assembleia da República, a Amadora entrou no programa. Em 1995, contaram-se 5419 agregados familiares a viver naqueles aglomerados em todo o município da Amadora. Assim, seria construído um número igual de fogos de habitação social, onde seriam realojadas essas famílias.

Passados vinte anos, o cumprimento desse objetivo está a menos de metade. Até hoje, 2098 casas foram construídas e 2325 famílias foram realojadas no âmbito do PER. Além disso, o arrastar da situação criou outro problema: à semelhança de Teresa e Feliciano, muitos imigrantes das ex-colónias chegaram ao país nos anos que se seguiram ao acordo do PER e fixaram-se naqueles bairros de barracas. Por terem chegado depois de 1993, o ano da lei do PER, não teriam direito a habitação social no dia em que as suas barracas fossem demolidas. Foi assim o caso de Teresa e Feliciano.

(Fotografia: Michael M. Matias)

Michael M. Matias/Observador

Ao Observador, a vereadora da Habitação da Câmara Municipal da Amadora, Rita Madeira, garante que uma das prioridades do seu pelouro é demolir o bairro de Santa Filomena até ao final do ano. “É um desejo e uma certeza”, diz-nos. “Mal seria se assim não fosse”, acrescenta a vereadora. “Não faz sentido nenhum que, em pleno século XXI, as pessoas vivam nas condições que estas vivem (…). Em 1993 existiam 35 bairros de barracas no concelho. Hoje, são nove. E o nosso objetivo, como é óbvio e não podia deixar de ser, é acabar com tudo. É chegarmos a zero. É não haver uma barraca na Amadora. É esse o objetivo. Temos um programa para cumprir.”

Mas é a forma como o cumprimento deste programa está a ser feito — e não o objetivo — que gera as maiores discórdias na Assembleia Municipal da Amadora (AMA). Todos os partidos da oposição tecem críticas à gestão do Partido Socialista, que está à frente daquela autarquia desde 1997.

João Camargo, BE: “O bairro de Santa Filomena é a nossa Palestina”. Carlos Almeida, CDU: “A Câmara Municipal da Amadora demitiu-se por convicção da sua função, que é dar esperança às pessoas e de procurar soluções junto do governo para as pessoas que chegaram ao bairro após o PER.”

João Camargo, deputado na AMA pelo Bloco de Esquerda, faz desta situação uma bandeira do partido no concelho — “O bairro de Santa Filomena é a nossa Palestina” — e defende uma suspensão “imediata” das demolições “até que seja encontrada uma solução para estas pessoas”. Ou seja, habitação social.

A CDU — que presidia à autarquia quando o plano de demolições foi assinado — afina pelo mesmo diapasão e defende “reiteradamente a suspensão das demolições”. O líder do grupo parlamentar dos comunistas, Carlos Almeida, acusa a autarquia de se ter demitido “por convicção da sua função, que é dar esperança às pessoas e de procurar soluções junto do governo para as pessoas que chegaram ao bairro após o PER”. Ainda assim, é na administração central que coloca a parte maior da culpa: “Se o PER não está concluído, a responsabilidade é dos governos do PS e do PSD, e neste momento em particular do governo atual”.

Ricardo Carmo, PSD: “Há quatro anos estávamos à beira da bancarrota, não houve condições para haver investimento da parte do governo central”. João Paulo Castanheira, CDS: “A Câmara Municipal da Amadora tem recursos para resolver o problema e não o resolve”.

Os social-democratas e centristas da Amadora, por sua vez, rejeitam que a responsabilidade seja do atual governo. “Há quatro anos estávamos à beira da bancarrota, não houve condições para haver investimento da parte do governo central”, diz Ricardo Carmo, líder do PSD na Amadora. Já João Paulo Castanheira, do CDS, critica a gestão do PS pela demora em cumprir o PER, ao qual aderiu em 1995.

Nessa altura, a câmara era da CDU. Passados 20 anos, e com os socialistas há 17 no poder, o programa continua por cumprir. “A Amadora é o último município da zona de Lisboa que não conseguiu terminar com estes bairros”, garante o centrista. “É evidente que se dirá que o governo central tem obrigações, ao abrigo do PER, que este governo e os anteriores não cumpriram”, admite, para depois contrapor: “Mas o governo central, face à situação que vive, não tem o superavit que a Câmara da Amadora tem.” Um total de 66,2 milhões de euros em caixa no ano de 2014 — o que faz deste o município com o maior fundo de maneio do país. “A Câmara Municipal da Amadora tem recursos para resolver o problema e não o resolve”, conclui.

António Ramos Preto, PS: “Isto não tem a ver com tirar ou não as pessoas do bairro. Tem a ver com a política nacional de imigração (…). Estas pessoas não são da Amadora, não nasceram na Amadora. O problema não foi criado na Amadora”

“O CDS vive nesse drama de o município ter um superavit fantástico. Se a Amadora fosse um país, estaria na situação da Alemanha! Estaria um com rating de triple A!”, responde o líder da bancada socialista na AMA, António Ramos Preto. “O que acontece é que o município também tem a responsabilidade de financiar os programas públicos que tem desenvolvido e com os quais se comprometeu”, justifica-se o socialista, chutando a bola para o governo central: “Isto não tem a ver com tirar ou não as pessoas do bairro. Tem a ver com a política nacional de imigração, que não temos e devíamos ter. A Amadora não é um território independente do território nacional.”

Orlando Almeida, presidente da Câmara Municipal da Amadora entre 1979 e 1997: “Assinei aquele acordo [do PER] porque não havia outro. A pressão era para que eu assinasse. Mais valia isto do que não fazer nada.”

Também o ex-presidente da Câmara Municipal da Amadora, Orlando Almeida, se queixa de falta de apoio do governo central quando, sob a sua tutela, o município aderiu ao PER, em 1995. “Assinei aquele acordo porque não havia outro. A pressão era para que eu assinasse. Mais valia isto do que não fazer nada”, diz ao Observador o ex-militante da CDU e atual membro do Bloco de Esquerda. Na altura, garante que assinou o acordo com “a ideia que de futuro o poder central teria de melhorar as leis que tinham acabado de sair”. Mas isso não aconteceu, defende. E, assim, “poderes sem meios não servem para nada”.

“Nós não tínhamos capacidade para realojar as pessoas todas da Amadora dentro da Amadora”, diz, referindo-se ao fluxo de imigrantes que escolheram aquela cidade como local de residência. “Como é que a Amadora podia resolver todos os problemas que eram problemas regionais? Há coisas que não vão ser resolvidas a nível do município, porque o município não é nada.”

(Fotografia: Michael M. Matias)

Michael M. Matias/Observador

Em 1997, Orlando Almeida deixou de ser presidente da Câmara depois de perder as eleições autárquicas para o socialista Joaquim Raposo. Feitas as contas, esteve um total de dois anos à frente do município desde que o PER foi assinado. Por isso, rejeita qualquer culpa nas falhas na aplicação do programa. “Alguém falhou aqui. Foi a Câmara Municipal da Amadora? Foi. Mas já não é a minha! E também foram todos os governos que passaram, porque são eles os responsáveis pela habitação”, diz. “Não cabe na cabeça de ninguém meterem-me as culpas em cima. Então agora, passado este tempo todo, a culpa é do Orlando?”

O Observador colocou várias questões ao ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e da Energia, responsável pelo PER. Apesar da insistência, e depois de ter sido acusada a receção das perguntas, não foram dadas respostas por parte do ministério tutelado por Jorge Moreira da Silva.

“O problema não foi criado na Amadora”

Em alusão àqueles que, vindos sobretudo dos PALOP, se fixaram um pouco por todos os bairros de barracas da Amadora, António Ramos Preto, do PS, diz que “o direito à mobilidade é um direito fundamental”. E acrescenta: “Mas também temos de fazer isto com conta, peso e medida. Estas pessoas não são da Amadora, não nasceram na Amadora. O problema não foi criado na Amadora”.

João Camargo, BE: “Se as pessoas foram para lá, foi porque não tinham outra alternativa”. Ricardo Carmo, PSD: “As pessoas sabiam que não deviam reocupar aquelas barracas”.

“Se as pessoas foram para lá, foi porque não tinham outra alternativa, porque só vive naquelas condições quem não tem outra alternativa”, defende João Camargo, do Bloco de Esquerda. “É verdade que as famílias não tinham alternativa. Mas sabiam ao que iam”, contrapõe Ricardo Carmo, do PSD, em relação àqueles que para lá foram viver quando já tinha sido determinado que o bairro ia ser demolido. “Deve haver uma corresponsabilização aqui. Por um lado da câmara, que não demoliu as casas logo a seguir a elas serem esvaziadas. E, por outro, dessas pessoas, que sabiam que não deviam reocupar aquelas barracas.”

Quando assinou o PER em 1995, a Câmara Municipal da Amadora comprometeu-se a garantir que mais ninguém ia viver nos bairros de barracas destinados a serem demolidos. Esta vigilância falhou e várias famílias fixaram-se em Santa Filomena, ocupando barracas devolutas ou construindo outras.

No acordo de adesão ao PER celebrado em 1995, de um lado, pela Câmara Municipal da Amadora e, do outro, pelo Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE) e o Instituto Nacional de Habitação (INH) consta o seguinte como obrigação da autarquia: “O Município compromete-se a exercer uma fiscalização rigorosa de ocupação do solo na área da sua jurisdição administrativa por forma a neutralizar o ressurgimento ou a construção de quaisquer tipo de barracas, garantindo a sua pronta demolição”.

Algo que não aconteceu. Depois de 1995, o bairro continuou a crescer e várias famílias foram-se fixando nos terrenos destinados a serem demolidos. Ocuparam barracas devolutas ou construíram outras, sem que a autarquia os impedisse. Vieram de África, sobretudo de Cabo Verde, atraídos pelo crescimento económico da altura e pela abundância de emprego na construção, limpezas e na restauração. Assim, seis anos depois de o destino do bairro de Santa Filomena ter sido escrito naquele acordo, chegava Teresa Carvalho vinda de São Tomé e Príncipe.

(Mapa interativo. Data das imagens desconhecida. A julgar pelo elevado número de barracas, podem ser de 2012 ou antes, quando as demolições ainda não tinham começado)

Corria o ano de 2001 e a sua mudança estava longe de ter sido planeada. Foi fruto da necessidade, da pobreza e de algum azar. Certo dia, Kelves, na altura o único filho que tinha com Feliciano, brincava junto a uma bicicleta quando decidiu pegar numa peça daquele veículo, metendo-a para dentro do nariz. Tinha 23 meses e, quando os pais se aperceberam do problema, Kelves já estava em risco de vida por causa de uma infeção. Teresa chegou a tentar remover o corpo estranho com uma agulha, mas só piorou a situação. A criança precisava de ser tratada com urgência. Por isso, Teresa pegou no filho e veio para Portugal.

O bairro de Santa Filomena é habitado quase exclusivamente por imigrantes das ex-colónias de África. A maior parte vem de Cabo Verde.

Nos primeiros tempos ficou em casa de familiares. “Só que já sabe que isso é sempre complicado.” Assim que a saúde de Kelves ficou assegurada, Teresa tentou arranjar onde ficar. O salário mínimo que ganhava a fazer limpezas não lhe chegava para pagar uma renda e fazer frente a todas as despesas. Por isso, quando ouviu falar do bairro de Santa Filomena, foi ver como era. Assim que conseguiu, ocupou uma casa que estava vazia e deixou-se ficar por lá.

A maior parte dos habitantes de Santa Filomena são imigrantes de Cabo Verde. Muitos chegaram depois de 1993. Vieram pelo boom da construção. Agora estão desempregados. (Michael M. Matias / Observador)

Michael M. Matias/Observador

Dois anos depois, em 2003, Feliciano veio a Portugal visitar Teresa e Kelves. Sem contar com isso de início, acabou por ficar no país. Tinha um bom emprego: era segurança do então Presidente de São Tomé e Príncipe, Fradique Menezes. Mas escolheu deixá-lo para trás. “Não fazia sentido estar longe da minha família. Quando cheguei, percebi que era aqui que eu devia estar.” A partir daí, o seu corpo alto e esticado deixou de servir como defesa a Fradique Menezes e passou a alimentar o boom da construção civil que nessa altura varria o país de Norte a Sul.

Depois nasceu Carlos, em 2007, e cinco anos depois apareceu Wilton. E, com ele, o despedimento de Teresa (depois de o patrão lhe ter negado o tempo previsto para amamentação do bebé). Estávamos em 2012. E, nessa mesma altura, 17 anos depois de a Amadora ter aderido ao PER, começaram as demolições no bairro de Santa Filomena.

A casa ou os filhos 

Teresa e Feliciano foram avisados de que a sua casa ia ser demolida e que, por terem chegado a Portugal depois de 1993 — ano em que foi assinado o PER —, não teriam direito a habitação social. Teriam, pois, de arranjar uma alternativa. Segundo os registos da Câmara Municipal da Amadora, foram a 23 reuniões de atendimento, onde a sua situação foi analisada por técnicos de ação social da autarquia e por assistente sociais da Segurança Social — conhecidos em Santa Filomena, tal como em tantos outros bairros semelhantes, como “as doutoras”.

“As doutoras”, conta Teresa, levantaram problemas quanto ao estado da sua habitação. “A casa não era boa”, admite a são-tomense, que é a primeira a elencar os problemas que a sua barraca tinha: só tinha água canalizada graças a uma puxada que fazia dos vizinhos, a troco de uma quantia mensal, tal como acontecia com a eletricidade; nos piores dias, chegavam a aparecer ratos, algumas vezes vindos do teto falso. Além disso, a humidade, sempre presente, tal como a falta de circulação de ar, tornavam aquele lugar pouco saudável para os três menores. “As doutoras disseram-nos que se não arranjássemos a casa perdíamos os nossos filhos. Têm de sair, têm de sair! Se não a Câmara manda a casa abaixo'”, recorda Feliciano. Este pôs mãos à obra e fez os melhoramentos possíveis. Estucou, pintou e isolou a barraca como pôde. Mas as técnicas da Segurança Social, conta, disseram-lhe que isso não chegava. “Ou mudam de casa ou ficam sem os miúdos”, conta Teresa.

Fizeram contas. A única quantia que chegava àquela casa eram os 427 euros do Rendimento Social de Inserção (RSI) e o pouco dinheiro que Feliciano ganhava a apanhar e a vender ferro-velho a 0,15€ o quilo. Com esse dinheiro, pagavam o essencial: roupa, alimentação, material escolar para os filhos, eletricidade, água e outras despesas inesperadas. Tinham uma horta à porta de casa — plantavam couves, batatas, tomates, pepinos e outros legumes. Iam mais vezes buscar comida ao quintal do que ao supermercado. No final de contas, a matemática era difícil. “Mas chegava”, garante Teresa. “Porque não tinha de pagar renda de casa a ninguém.”

Instados a mudarem de casa para continuarem com a guarda dos filhos, Teresa e Feliciano começaram a procurar um novo sítio onde morar. Uma pessoa conhecida falou-lhes do Prior Velho, em Loures. “Lá as casas são baratas.” E foi lá que encontraram um rés-do-chão com uma sala, um quarto, uma cozinha em jeito de corredor e uma casa de banho. 250 euros por mês.

Em novembro de 2014 assinaram o contrato de arrendamento — o primeiro que fizeram em mais de dez anos a viver em Portugal. Mas não se mudaram para lá. “Nós não fomos logo para a casa, porque os meninos já estavam inscritos na escola da Amadora e não podíamos tirá-los de lá”, começa Teresa, para depois admitir: “Alugámos a casa só para mostrar às doutoras que éramos capazes de alugar uma casa, se não eles tiravam os filhos”. Pediram às assistentes sociais que a demolição fosse feita depois de o ano letivo acabar, em julho. Mas, a 24 de março, a polícia bateu-lhes à porta e abriu caminho à retroescavadora.

Em todo o bairro, há mobília e eletrodomésticos que ficaram para trás. A terra batida mistura-se com bocados de tijolo partido. A exceção são as hortas que surgem nos escombros. (MMM / Observador)

Michael M. Matias/Observador

Sem outra hipótese, mudaram-se para o Prior Velho. Os pais dormem na sala, numa cama de ferro alta que tem aos pés o berço de Wilton. Do outro lado da casa, necessariamente pequena, dormem Carlos e Kelves. Antes das férias começarem, os dois rapazes dormiam pouco: tinham de ir para as respetivas escolas na Amadora de transportes. Saíam de casa às 6h00 e, sem dinheiro para o bilhete, apanhavam dois autocarros. Se aparecesse o revisor, desciam e faziam o resto do caminho a pé.

Teresa e Feliciano continuam os dois desempregados. “Ninguém pede limpezas nem homem para obras, já. Está tudo fechado, é só crise”, diz Feliciano, que só de vez em quando consegue fazer um biscate. Já chegou a ir a pé para a Amadora só para receber cinco euros num serviço.

Numa das ocasiões em que estivemos com Teresa, marcámos encontro para as instalações da Segurança Social no Areeiro, em Lisboa. A são-tomense deu conta de lhe terem cortado o RSI. O subsídio tinha sido suspenso por não terem declarado a nova morada.

Kelves (16) e Carlos (8) levantavam-se todos os dias às 6 da manhã para irem às aulas nas suas escolas na Amadora. O caminho era feito de autocarro e nunca demorava menos de duas horas. Como não tinham dinheiro para o bilhete, eram obrigados a sair do transporte sempre que aparecesse um revisor. Nesses casos, iam a pé o resto do caminho.

A família consegue comer graças a uma instituição de solidariedade que lhes dá pouco mais do que os alimentos básicos. O dinheiro é tão escasso, que não conseguem pôr 25 euros de parte para uma botija de gás. Sem fundo de maneio, passou pouco tempo até terem voltado a ouvir um novo toc-toc na porta. Desta vez era o senhorio a queixar-se de que já não recebia a renda há três meses. “Quem está mal que se mude”, disse-lhes, depois de ameaçá-los com um despejo.

A situação está longe de ser fácil para esta família de cinco. Sem opções, acaba por resumir-se àquilo que Feliciano enuncia como uma evidência inquestionável: “Quando a gente tem, a gente come. Quando a gente tem pouco, a gente come pouco”. A mulher ri-se desta lógica. “Rir para não chorar, não é?” É uma das poucas vezes que o faz. Baixa e magra, de testa ampla e traços de Nina Simone, Teresa veste de preto há uma semana e meia. Soube que a sua mãe tinha morrido atropelada em Angola — também ela procurou outro sítio para escapar à pobreza de São Tomé. “Tenho até de pedir às pessoas para me darem dinheiro para mandar rezar missa pela alma da minha mãe, nem para isso tenho que chegue”, lamenta-se.

“Fim ao pesadelo das barracas”

Foi com o mesmo vestido negro que Teresa se apresentou dois dias antes, a 4 de junho, na sede do Partido Socialista, no Largo do Rato. Foi lá para uma reunião com Maria da Luz Rosinha, membro do secretariado nacional e antiga presidente da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, pedida pela coletivo HABITA em nome dos moradores de Santa Filomena.

Não foi por acaso que lá foram — a Amadora é um bastião socialista desde 1997, quando Joaquim Raposo se tornou presidente da Câmara. Uma das promessas eleitorais era o “Fim ao pesadelo das barracas”. Em 2001, foi reeleito com maioria absoluta. Algo que, até hoje, o PS mantém naquela autarquia. Em 2013, já com Carla Tavares à frente (Joaquim Raposo teve de ceder o lugar, graças ao limite de mandatos, mas foi eleito para presidir à assembleia municipal) o PS arrecadou 45,5% dos votos. Tanto um como outro ocupam posições de topo na máquina partidária dos socialistas: ambos fazem parte da Comissão Nacional Política do partido.

Por tudo isto, à entrada da sede do PS, Rita Silva, da direção do HABITA e também dirigente do Bloco de Esquerda, tem alguma esperança nos resultados desta reunião no Rato. “Viemos cá fazer pressão, porque estamos com eleições à porta e isso pode fazer toda a diferença para haver uma suspensão das demolições.”

"Fim ao pesadelo das barracas", prometia Joaquim Raposo, num cartaz de 1997. Foi nesse ano que o PS conquistou a Câmara Municipal da Amadora, até então um bastião comunista.

“Fim ao pesadelo das barracas”, prometia Joaquim Raposo, num cartaz de 1997. Foi nesse ano que o PS conquistou a Câmara Municipal da Amadora, até então um bastião comunista. (Arquivo Ephemera, de José Pacheco Pereira)

Maria da Luz Rosinha, a antiga autarca vila-franquense, recebeu pouco mais de dez moradores e ex-moradores do bairro de Santa Filomena numa sala de reuniões — outros tantos ficaram de fora, por alegada falta de espaço, acabando por esperar pelo fim do encontro no átrio de entrada do edifício. Poucos prestavam atenção à televisão que, sintonizada na SIC Notícias, dava conta grande notícia do dia: o treinador Jorge Jesus acabara de trocar o Benfica pelo Sporting.

O Partido Socialista está no seu quinto mandato consecutivo à frente da câmara da Amadora. É um caso de sucesso eleitoral pouco comum. Em 1997, venceu pela primeira vez, com 33,8%. Depois, conseguiu sempre ganhar com mais de 40% dos votos: 45,4% (2001), 42,7% (2005), 46,5% (2009) e 45,5% (2015).

Enquanto isso, algures num andar cimeiro da sede do PS, Rita Silva, do coletivo HABITA, dirigia as mesmas perguntas ad nauseam a Maria da Luz Rosinha: “O Partido Socialista mantém a confiança política à presidente da Câmara Municipal da Amadora? Defendem ou não uma suspensão do processo de demolições?”.

A resposta de Maria da Luz Rosinha foi tão repetitiva quanto as perguntas que lhe chegavam: “É uma decisão que cabe à Câmara da Amadora tomar. A Câmara Municipal da Amadora é do Partido Socialista mas também é autónoma”.

À saída da reunião, da qual não saiu mais do que uma promessa de contacto por parte de Maria da Luz Rosinha e da presidência da autarquia amadorense, Rita Silva resumiu o encontro para aqueles que esperavam o seu fim no átrio da sede do PS. De pé, no topo do terceiro degrau daquele hall de entrada, a dirigente do HABITA falou aos presentes, em jeito de comício.

“Vamos responsabilizar o PS porque não se pronuncia sobre aquilo que acontece na câmara da Amadora. Porque a Carla Tavares faz parte da Comissão Nacional Política do PS. Porque apoiou politicamente a sua candidatura, que organiza os despejos e as demolições”, começou por dizer.

E fechou a intervenção com uma promessa que redundou numa acusação: “Vamos continuar para demonstrar que a Câmara está a trabalhar para interesses privados, deixando as pessoas na rua sem nada. Vamos demonstrar que a Câmara está a trabalhar para o interesse do fundo de investimento imobiliário do senhor José da Conceição Guilherme”.

Santa Filomena: a terra é de quem?

Rita Madeira, a vereadora para a Habitação na Amadora, não sabe a quem pertencem os terrenos onde assenta o bairro de Santa Filomena. “Se me perguntar, ao certo e aos dias de hoje, quem são os proprietários do terreno, então eu não lhe sei dizer. Como deve imaginar, isto hoje em dia é tudo muito dinâmico e os terrenos vão passando de mão em mão. Fala-se muito de um fundo, um dito fundo… Nós não sabemos. Não sabemos nem temos de saber”, disse ao Observador. Para a autarca, a única certeza é que apenas “uma pequena parcela”, de todo o conjunto, pertence à autarquia.

Santa Filomena está num local privilegiado. Lá de cima vê-se Monsanto e outras partes de Lisboa. Sem nuvens, até o Cristo Rei em Almada está à vista. (Michael M. Matias / Observador)

Michael M. Matias/Observador

A história daqueles terrenos tem um início complexo, mas à medida que os anos vão passando esta vai ficando mais simples no que diz respeito à sua propriedade. Depois de ter passado “de mão em mão” entre a década de 1950 e a de 1990, entre particulares, um conjunto considerável de parcelas de Santa Filomena foi adquirido em 1999 pela empresa Geralnova — Compra, Venda e Exploração de Imóveis, S.A.. Mais tarde, os mesmos terrenos foram adquiridos pela Moinho de Vila Chã — Actividades Imobiliárias, Lda. em 2002. Esta, por sua vez, vendeu estes ativos ao Villafundo — Fundo Especial de Investimento Imobiliário Fechado.

A escritura desta última transação — de aproximadamente 25 milhões de euros — data de 29 de dezembro de 2006. Ou seja, oito dias depois de a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários ter aprovado a constituição do fundo. O Villafundo é gerido pela Fundinvest, um dos maiores aglomerados de fundos de investimento imobiliário do país, e pertence ao Millennium BCP.

bairro_santa_filomena proprietários

Após consulta no Registo Predial Comercial da Amadora, o Observador conseguiu confirmar que a empresa Moinho de Vila Chã é detida por três empresas — sendo que uma destas é detida maioritariamente por José Guilherme, o conhecido construtor da Amadora e homem de negócios enigmático que atualmente vive e faz negócios em Angola. Igualmente conhecido como Zé Grande, terá partido dele a “prenda” de 14 milhões a Ricardo Salgado, então presidente da Comissão Executiva do Banco Espírito Santo, que este último classificou de “liberalidade”. É também conhecida a proximidade entre o construtor e o antigo autarca amadorense, Joaquim Raposo. Ambos chegaram a ser investigados no âmbito de um caso de corrupção e favorecimento de construtores que envolvia a Câmara Municipal — o processo prolongou-se durante mais de dez anos, mas acabou arquivado.

"Se me perguntar, ao certo e aos dias de hoje, quem são os proprietários do terreno, então eu não lhe sei dizer. Como deve imaginar, isto hoje em dia é tudo muito dinâmico e os terrenos vão passando de mão em mão. Fala-se muito de um fundo, um dito fundo... Nós não sabemos. Não sabemos nem temos de saber."
Rita Madeira, vereadora da Habitação da Câmara Municipal da Amadora

O Observador não conseguiu confirmar a acusação de Rita Silva, a dirigente do Bloco, de que o construtor José Guilherme tem uma participação no Villafundo, uma vez que este organismo funciona num regime que não o obriga a divulgar os seus elementos. Ainda assim, contactámos o gabinete relações públicas do Millenium BCP, ao qual foi perguntado se existe algum plano de construção, ou uma intenção de avançar nesse sentido, nos terrenos do bairro de Santa Filomena. “Não vamos comentar”, foi a única resposta concedida.

Do ponto de vista imobiliário, o terreno onde assentam as barracas de Santa Filomena é apetecível. De fácil acesso por estar próximo de vias rápidas, o bairro fica perto de vários serviços de transportes públicos, supermercados ou centros comerciais. E na parte cimeira do terreno, que se estende ao longo de uma encosta tão íngreme que só alguém com boa forma a sobe sem grande pesar, dá para ver uma boa parte de Lisboa. Monsanto à direita, os aros vermelhos do Estádio da Luz algures pelo meio, a ponte 25 de Abril lá ao fundo e, num dia de céu limpo, dá até para distinguir os braços abertos do Cristo Rei em Almada. Estivesse ali um prédio de 10 andares, não seria difícil avistar o rio Tejo.

Há vários condomínios privados mesmo ao lado das barracas de Santa Filomena. Muitas dessas casas, algumas a custar mais de 200 mil euros, ainda não foram vendidas. (Michael M. Matias / Observador)

Michael M. Matias / Observador

Na verdade, o bairro de Santa Filomena já é rodeado por alguns condomínios de luxo. Ornados com fachadas cor de tijolo creme, o objetivo inicial era que deles sobressaíssem as amplas janelas que os atravessam de um lado ao outro. Só que em vez do brilho dos vidros, a maior parte dos apartamentos apresenta os estores cinzento-escuros corridos. Muitas daquelas casas ainda estão por vender, apesar de já terem sido construídas há quase uma década. A crise no mercado imobiliário explica, em parte, esta história, tal como os preços pouco convidativos. Mas o facto de estes prédios terem aos seus pés um bairro de barracas não ajudará.

A vereadora da Habitação da Amadora garante que a Câmara nunca foi contactada devido a alguma pretensão imobiliária para aquela zona. E, da parte da autarquia, também não há nenhum plano. “Nem podia haver. Os terrenos não são da Câmara, portanto a Câmara não tem de fazer nada”, garante a vereadora Rita Madeira.

Já só faltam 49 barracas para Santa Filomena acabar

Em 2012, quando as demolições do bairro de Santa Filomena começaram, a Câmara contou 442 casas naqueles terrenos e 1945 habitantes. Hoje, passados três anos, esse número é bem menor. A 19 de junho, quando falámos com Rita Madeira, faltavam demolir 79 barracas. Desde então, a Câmara voltou a mobilizar retroescavadoras para o bairro. Fê-lo nos dias 7 e 8 de julho, logo pela manhã – levando o HABITA a fazer mais uma denúncia, do caso de uma mulher grávida de sete meses e com uma filha de cinco anos cuja casa (que ocupara há menos de dois anos) foi demolida, juntamente com outras 30 habitações. Já só restam 49 barracas — 11% do bairro de outrora.

Jaquelina Pina, com a filha de cinco anos, ocupava uma casa que foi demolida por ordem da câmara da Amadora no dia 7 de julho. Jaqueline está grávida de sete meses. (Sebastião Almeida / Observador)

Sebastião Almeida/Observador

Rita Madeira explica que não é verdade que haja pessoas sujeitas a demolições no concelho da Amadora sem que tenham uma alternativa habitacional. “Todos eles têm uma alternativa. Não há uma barraca que seja demolida sem haver dezenas de reuniões com as pessoas. E quando a barraca é demolida, no caso das pessoas que não estão no PER, é quando já não existe mais entendimento possível, porque as pessoas dizem que não aceitam rigorosamente nada”, aponta a autarca.

“Só aceitam uma habitação social. Mas isso a Câmara não pode dar. Não podemos eternizar estas situações”, diz a autarca. “Nós não podemos realojar as pessoas porque se não isto era uma neverending story.” Semelhante ideia tem João Paulo Castanheira, do CDS da Amadora: “Não defendemos que deve haver uma casa para toda a gente, não vamos entrar nessa demagogia, que é demagogia de uma certa extrema-esquerda.”

Nos encontros com a Segurança Social são oferecidas duas hipóteses às famílias que chegaram ao bairro depois de 1993 (ano do PER): uma viagem só de ida para os seus países de origem ou a oferta do valor da renda numa nova habitação durante um período que não costuma exceder os três meses.

Sobram, então, duas soluções. Que são apresentadas às famílias cujas barracas vão ser demolidas, em reuniões de atendimento com assistentes sociais da câmara e da Segurança Social. Nestes encontros, são oferecidas duas hipóteses àqueles que lá chegaram, depois de 1993, vindos do estrangeiro: uma viagem só de ida para os seus países de origem ou a oferta do valor da renda numa nova habitação durante um período que não costuma exceder os três meses.

É-lhes também dado o aviso de que a casa vai ser demolida em breve, sem que lhes seja dada uma data específica. A demolição pode ser a qualquer momento. Contactado pelo Observador, o Instituto da Segurança Social referiu quem “em situações de emergência, sempre que não exista outra alternativa habitacional imediata, tem sido proposto aos cidadãos o acolhimento em Centros de Alojamento de Emergência”, que se destinam “a acolher cidadãos em situação imediata de perigo e desproteção, decorrentes da ausência de condições mínimas de subsistência e exigindo uma resposta imediata”. “As pessoas têm alternativa”, insiste Rita Madeira.

Existe, porém, o caso de Teresa e Feliciano, que ao ficarem sem a casa no bairro de Santa Filomena passaram a ter de pagar renda noutro sítio, deixando assim de sobrar dinheiro para despesas básicas. Ou o caso de famílias inteiras de desempregados cuja solução é mudarem-se para um quarto alugado a dividir por avós, pais e netos. Ou dependerem da boa vontade de familiares que os acolhem e podem deixar de fazê-lo a qualquer momento. Ou até o caso de um homem que, depois de lhe terem demolido a casa, só conseguiu arranjar sítio para dormir no albergue para sem-abrigo de Xabregas, em Lisboa.

“É uma alternativa”, responde a vereadora quando confrontada com estes casos. “Aquilo não são casas”, assegura, referindo-se às barracas. “É uma habitação, mas não é propriamente um lar.” E considera que a Câmara “está de pés e mãos atados”. “A Câmara assinou um acordo e agora tem de cumpri-lo. Nós temos um PER que nos obriga a demolir.”

Provedor de Justiça: Câmara só deve demolir se realojar

No início de março deste ano, o Provedor de Justiça, José de Faria Costa, que acompanha o caso da demolição de Santa Filomena desde 2012, sugeriu à autarquia da Amadora que suspendesse as demolições e despejos no bairro. “Esta intervenção só deve ser prioritária se o município, o Estado e eventualmente outras instituições estiverem em condições de realojar todos os agregados familiares que não disponham de habitação própria ou tomada de arrendamento.” Para o provedor, o recenseamento feito no âmbito do PER em 1993 “já não pode servir de critério seguro para diferenciar os moradores a realojar”. Poucas semanas depois de fazer esta recomendação, as retroescavadoras voltaram ao bairro de Santa Filomena e demoliram várias casas — incluindo a de Teresa e Feliciano.

Ao Observador, José de Faria Costa explica a sua tese. “Em abstrato, se eu pudesse demolir e pudesse dar uma casa condigna a essas pessoas noutras circunstâncias, a demolição tem todo o sentido. Porque o problema não está na demolição”, diz, acrescentando que este reside no facto de “não haver uma alternativa” para as pessoas destes bairros. Alternativa essa que, segundo o Provedor de Justiça, deveria ser procurada pela autarquia. “A senhora presidente da câmara da Amadora tem de encontrar uma alternativa válida, melhor até, para dar melhores condições de salubridade para aquelas pessoas.” E que, nesse sentido, “têm de ser dados passos, efetivos e reais, para a recuperação de uma expectativa de uma relação de confiança” entre os moradores de Santa Filomena e os seus autarcas.

"A senhora presidente da câmara da Amadora tem de encontrar uma alternativa válida, melhor até, para dar condições de salubridade para aquelas pessoas, que evidentemente merecem."
José de Faria Costa, Provedor de Justiça

O provedor, como representante de um órgão do Estado, considera que os direitos fundamentais dos cidadãos “estão aqui a ser amachucados”.

“Não é pelo facto de se derrubarem aquelas casas que desaparece em absoluto o direito à habitação, porque o direito à habitação naquelas casas já era muito diminuto”, diz o Provedor.

Direito a uma vida digna, direito à salubridade, direito ao auto-desenvolvimento harmonioso da pessoa e o direito à habitação, por exemplo. Quanto a este último, consagrado no artigo 65º da Constituição da República Portuguesa, o Provedor faz uma ressalva: dadas as condições que a maior parte das casas de Santa Filomena têm, “não é pelo facto de se derrubarem aquelas casas que desaparece em absoluto o direito à habitação, porque o direito à habitação naquelas casas já era muito diminuto”.

Ainda assim, na sugestão enviada à câmara da Amadora e tornada pública no site da Provedoria de Justiça, José de Faria Costa afirma que “uma súbita demolição das construções e dos abarracamentos numa conjuntura particularmente difícil, para cada família, deve ser levada em consideração pelas autoridades municipais”.

(Fotografia: Michael M. Matias)

Michael M. Matias/Observador

“O Provedor não está acima da lei”, retorque a vereadora da Habitação da Câmara Municipal da Amadora, Rita Madeira. “Nós continuamos a cumprir a lei. Nem podíamos nós parar de cumprir a lei para cumprir, entre aspas, uma recomendação do provedor, por mais respeito que tenhamos pelo Provedor e pelo cargo”, explica, evocando o acordo geral de adesão ao PER em 1995.

Nesse mesmo contrato, está expresso, na Nona Parte, que “o não cumprimento ou o cumprimento defeituoso do estabelecido no presente acordo determina ao município inadimplente [incumpridor] a redução ou suspensão das verbas que lhe foram atribuídas em função da gravidade da situação”. Ou seja, se a câmara da Amadora suspendesse as demolições dos bairros de barracas, como é sugerido pelo Provedor de Justiça, deixaria de ter acesso aos fundos do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (o IHRU, que, desde 1995, veio agregar e substituir o IGAPHE e o INH). Além disso, ao ter permitido que se fixassem mais pessoas nestes bairros depois da assinatura deste acordo, a Câmara Municipal da Amadora já está em incumprimento do acordo firmado há duas décadas.

De acordo com informação recolhida pelo Observador, a última vez que o município pediu financiamento ao IHRU para construção de habitação social foi em 2006. Isto pode significar que, um corte do dinheiro do IHRU, não afetaria os cofres da autarquia. O bloqueio da construção de habitação social na Amadora é confirmado por Rita Madeira: “Neste momento, a Câmara Municipal da Amadora está obrigada a fazer uma gestão do seu parque habitacional”.

À lei que Rita Madeira diz “obrigar” a câmara a continuar as demolições, o Provedor de Justiça contrapõe com o Decreto-Lei 804/76, de 6 de novembro, que indica que deve “ser o proprietário a reivindicar o seu direito” aos terrenos ocupados por barracas, argumentando assim que “de modo algum se justifica a atuação municipal, substituindo-se aos tribunais”. Proprietários esses que a Câmara Municipal da Amadora não conhece. “Nem tem de conhecer”, foi repetindo a vereadora da Habitação ao longo da entrevista.

Os dias das demolições são longos. Os trabalhos começam logo de manhã, às 8h00, e só acabam com a luz do dia. (Michael M. Matias / Observador)

Michael M. Matias/Observador

“Se eu for para a rua como é que vou pagar uma renda?”

Dulce Fernandes, 56 anos, também não sabe quem eles são. “Eu nunca entendi isso muito bem, nunca percebi de quem é o bairro”, diz esta cabo-verdiana. Baixa e anafada, Dulce combina uma cara de criança com olhos de velha, tomados pelas cataratas. Anda devagar, de tal modo que, a um percurso que a maior parte das pessoas faria em 15 minutos, ela deixa uma hora de parte. É assim quando a acompanhamos desde a estação ferroviária da Amadora, depois de voltarmos da reunião na sede do PS. “Não fomos lá fazer nada!”, queixa-se a alguns moradores de Santa Filomena sentados perto da entrada do bairro. “Só fui lá subir a minha tensão”, diz, já a chegar à porta da sua casa. Não fica muito longe do sítio onde Teresa e Feliciano viviam com os três filhos.

Dulce teme o dia em que o seu destino seja igual ao dos seus amigos são-tomenses. Todas as manhãs, basta chegar-lhe um qualquer ruído menos reconhecível aos ouvidos para se levantar sobre as pernas inchadas e começar a cambalear para fora da casa. “Tenho medo que seja uma retroescavadora.”

Tirando essas vezes, as manhãs desta cabo-verdiana são dominadas por outro sentimento: tristeza. Dulce veio para Portugal “para trabalhar”. Já tinha uma vida em Cabo Verde, três filhos, sobrinhos criados por si e um emprego. Mas não lhe chegava o dinheiro que fazia no seu país, primeiro a trabalhar na construção de obras públicas, depois a vender na rua. Experimentou fruta, mas a concorrência era muita. Investiu em contentores que chegavam dos EUA com roupas que lá não se venderam. Tanto podia vir roupa boa, de marcas cobiçadas, como outras sem qualidade que eram difíceis de vender. A incerteza de cada contentor — cada um custava cerca de 500 euros — era demasiado grande para esta mãe solteira. Aos 41 anos, deixou os filhos com família em Cabo Verde. Em junho de 2000 veio para Portugal “buscar uma vida melhor”. Ou seja, chegou num tempo em que ainda havia emprego, mas já depois de 1993 — o ano do recenseamento do PER.

Passou dez anos sem ver os filhos, que só vieram para Portugal em 2010. Nessa década parece ter envelhecido três.

Dois meses depois de ter chegado a Portugal, começou a trabalhar numa pastelaria que servia refeições. De segunda-feira a sábado, Dulce começava às 8h00 e parava às 23h00. Só as horas da madrugada lhe pertenciam. Fazia trabalho de cozinha — aquele de que verdadeiramente gosta — a troco de 600 euros. Pagavam-lhe debaixo da mesa e, por isso, Dulce nem sempre fez descontos. O tempo foi passando e a saúde desta cabo-verdiana começou a desaparecer. O trabalho, feito sempre de pé e apenas com pausas de 30 minutos para almoçar e jantar, começou a vergar-lhe as pernas. Foi operada a cada uma e ficou de baixa. Quando voltou para trabalhar, a pastelaria tinha fechado. Era 2007 e, desde essa altura, nunca mais trabalhou.

Nem pode. Ordem da médica, que lhe assinou o atestado que Dulce leva sempre consigo. Lá, escrito de forma aparentemente apressada e em forma de catálogo, está a lista de doenças desta mulher: bronquite asmática, hipertensão arterial, gonartrose bilateral e outras osteoartroses a nível da coluna vertebral, insuficiência venosa dos membros inferiores. A isto, Dulce junta cataratas, colesterol alto, um quisto que a assusta enquanto não é chamada para consulta, depressão e ansiedade.

Vivemos à pala da minha família”, explica Dulce. Se não fosse a família, não entrava dinheiro naquela casa. Dulce está desempregada desde 2007 e não tem nenhum subsídio. Gilson tem um problema de costas que o impede de fazer trabalhos pesados e Adilson tem uma deficiência. Nenhum dos três trabalha. “Se eu for para a rua como é que vou pagar uma renda?”

Dulce vive com os dois filhos, Gilson, de 21 anos, e Adilson, de 26. Quando os dois chegaram de Cabo Verde para se juntarem à mãe, já a casa onde vivem tinha sido construída. Foi um processo vagaroso, ao qual não assistiram, mas que Dulce recorda com orgulho. Começou por alugar um quarto e uma sala à dona da casa, outra cabo-verdiana que tinha divisões de sobra. Depois, a senhoria foi-se embora para França e deixou a casa para trás. Dulce ocupou o que sobrava. Às duas divisões juntou uma cozinha, mais um quarto, e fez duas casas de banho. Pediu ajuda a uma sobrinha criada por si em Cabo Verde e que hoje é médica em Tomar para pagar os materiais e teve o apoio dos vizinhos para meter tudo de pé. “Agora se eu for para a rua como é que vou pagar uma renda? Onde é que vou arranjar para isso?”, queixa-se. “Esta casa deu tanto trabalho, custou tanto dinheiro para arranjar e agora vai ser isso.”

“Isso” são os pedaços de tijolo e cimento partidos que fazem parte da paisagem de Santa Filomena, espalhando-se ao longo do chão do bairro de forma homogénea. É por cima deles que Dulce caminha, mangueira numa mão e uma enxada na outra, enquanto caminha para a sua horta. Também ela, disposta em socalcos, está no sítio onde outrora houve uma casa. É de lá que tira muitas das coisas que come. Feijão, pepino, tomate, abóboras e muitas couves. Tem quase tanto orgulho da horta como tem da sua casa.

“Ali vivia a Teresa e o Feliciano”, diz, apontando para um pedaço de terra vazio a vinte metros. “E lá é a horta dela”, explica, apontando um pouco mais acima. “Eu depois de regar a minha horta vou sempre regar a dela também. Assim, se ela voltar cá vai ter tudo como deve ser.”

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Texto: João de Almeida Dias
Fotografia: Michael Matias, Sebastião Almeida, Lusa
Infografia: Milton Cappelletti

Nota: Teresa Carvalho, Feliciano Soares e Dulce Fernandes não aceitaram ser fotografados para esta reportagem

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