Quando ouvem o início da Quinta Sinfonia de Beethoven, tal como poderão ter feito agora mesmo, aquelas quatro notas de trovão a caírem duas vezes dentro dos nossos ouvidos, Tã Tã Tã Tãaaa, Tã Tã Tã Tãaaa, o que vos passa pela cabeça? O trágico, o sublime, o grandioso, o indizível, o génio? As contradições interiores, as fragilidades humanas, as preocupações tumultuosas, as vidas amarguradas, a tensão e a glória permanentes da existência? Uma grande seca, a fazer lembrar as tardes de domingo em casa da tia-avó a ouvir música clássica depois da missa? O vizinho surdo do 3.º esquerdo que se esqueceu de desligar a aparelhagem? O professor de Análise e Técnicas de Composição, a falar sobre o acorde pivô da modulação cromática do compasso 56 do primeiro andamento? Seja o que for, caros leitores, prometo que depois de lerem este artigo não conseguirão ouvir esta sinfonia sem se lembrarem de molas da roupa.
Mas vamos começar pelo princípio.
Allegro con brio
A mola da roupa (ou melhor, o prendedor de roupa, porque no início não tinha mola nenhuma) tem uma origem difícil de traçar. Há quem sugira que os prendedores de roupa apareceram na Antiguidade (há alguma coisa que não se remeta para a Antiguidade, já agora?). Mas não há registos que o demonstrem. Um mosaico que sobreviveu ao desastre vulcânico em Pompeia, e que hoje vive num museu em Nápoles, mostra, em cores vivas de terracota, umas varas com roupa a secar na fullonica (lavandaria) de Veranius Hypsaeus, mas não aparecem prendedores (na Roma Antiga, esse berço da civilização ocidental, a roupa era levada para as fullonicae, onde era lavada com água e urina recolhida dos urinóis públicos, considerada na altura como tendo propriedades detergentes por causa do amónio; às vezes é bom não termos acessos aos cheiros da história). É provável que, na maioria das vezes, e fora dessas lavandarias, a roupa lavada secasse em cima de arbustos e árvores, ou em cima de erva, e assim terá continuado por vários séculos.
Os prendedores de roupa terão surgido para evitar que a roupa voasse e se sujasse, mas a sua utilização cresceu associada ao desenvolvimento das povoações, onde não havia espaço para espalhar roupa a secar. Estes pequenos objetos começaram com uma forma muito primária, pequenos galhos de árvore rachados no meio, que apertavam a roupa pendurada numa corda. Passaram depois a ter um pedaço de metal em cima a rodear o galho, para os tornar mais resistentes. Até meados do séc. XIX, este tipo de prendedor de roupa era normalmente associado a famílias itinerantes, sobretudo ciganas, ou a camponeses, que cortavam e esculpiam galhos flexíveis de salgueiro para vender, segurando-os com pedaços velhos de latão. Há também quem associe os prendedores de roupa aos pescadores, que os usavam para segurar as redes de pesca ao cordame dos barcos, ou aos Shakers, conhecidos pela invenção de objetos simples e sem decorações, que serviam com devoção a lide doméstica. Nada disto tem registos credíveis, pelo que a mola da roupa continua a ser um objeto de linhagem desconhecida.
Alguns textos apontam para um inventor chamado Jérémie Victor Opdebec, de quem até agora também não se sabe muito (ou mesmo nada), que terá obtido uma primeira patente para um prendedor de roupa em madeira, em 1809, de funcionamento muito similar aos prendedores feitos de galhos vendidos pelas famílias itinerantes (nada disto está demonstrado). Este tipo de prendedores, um pedaço de madeira com uma ranhura ao meio, que apertava a roupa numa corda, veio posteriormente a apresentar uma pequena saliência esférica de madeira no topo que lhe dava um ar ligeiramente antropomórfico. Acabou por ser chamado de Dolly (Boneca) Peg, por ser muitas vezes usado pelas crianças para brincar. As Dolly Pegs caíram em desuso e, pelo menos em Portugal, só se consegue comprar este tipo de prendedores em pequenas quantidades, em lojas dedicadas a designs mais nostálgicos (por preços, todavia, não muito nostálgicos). Mas quando nos lembramos de um design vintage de prendedores de roupa, é a Dolly Peg que nos vem à cabeça.
A história da mola da roupa com o formato e com a funcionalidade que conhecemos hoje consegue traçar-se a partir do séc. XIX, com a ajuda preciosa da informação contida em patentes. As patentes para prendedores de roupa multiplicaram-se, e na segunda metade do séc. XIX o gabinete de patentes dos Estados Unidos, onde a produção de molas tinha ganho grande escala, emitiu quase 150 patentes para molas de roupa. Uma dessas patentes foi dada ao americano David M. Smith, do Estado do Vermont, em 1853. Smith obteve uma patente para um prendedor de roupa que aplicava o princípio da alavanca de Arquimedes, usando uma pequena bobina de metal entre dois pedaços de madeira. Quando era aplicada força nas partes superiores do prendedor, a parte de baixo abria-se com a ação da mola, e quando se deixava de aplicar força, o prendedor pressionava as duas partes de baixo uma contra a outra, segurando a roupa. Smith argumentava que a roupa era presa à corda de forma mais delicada, sobretudo porque não era preciso puxar o prendedor para cima, friccionando os tecidos, como sucedia com a Dolly Peg.
O design de Smith foi melhorado por Solon E. Moore, também do Vermont, que em 1887 obteve uma patente para um prendedor de madeira igualmente acionado por uma mola. No entanto, e ao contrário do que acontecia com o prendedor de Smith, era a própria bobina, que terminava em dois ganchos, que segurava as duas partes do prendedor, aumentando a durabilidade do prendedor, dando-lhe mais força e, sobretudo, agilizando a sua produção em massa. A nossa mola da roupa de hoje em pouco ou nada difere do prendedor de Moore. É um objeto tão bem pensado que se mantém praticamente inalterado há mais de cem anos: o tamanho, o peso, a forma das duas partes em madeira, os entalhes para segurar a roupa, a forma da bobina que segura a mola e que gera a alavanca, tudo no seu design tem uma razão, nada sobra ou acresce. Ou, como diz Harald Gründl, não há melhor forma para uma mola da roupa que uma mola da roupa.
O Estado do Vermont acabaria por concentrar inúmeras fábricas de molas da roupa, produzindo milhares delas por dia ao longo do séc. XIX. Ali mesmo em baixo, no Estado do Massachusetts, e enquanto Smith e Moore desenvolviam as suas invenções, Louisa May Alcott publicava as “Mulherzinhas”, romance de semi-ficção tão conhecido que dispensa apresentações adicionais. Todos conhecemos a história de Meg, Jo, Beth e Amy, e as suas aventuras e os seus infortúnios no caminho para a vida adulta. Mas nem todos se lembrarão que Amy, a mais nova e também a mais mimada e imatura, usava uma mola no nariz para dormir, por achar o seu nariz muito achatado. As irmãs, claro, faziam troça da maneira como Amy vivia a sua superficialidade, apesar de nenhuma delas ser a perfeição em pessoa (basta lembrarmo-nos da inveja de Meg, da impulsividade de Jo, da passividade de Beth). Amy acaba por se casar com Laurie na história, por isso, quem sabe, se calhar a mola no nariz até deu algum resultado. E é difícil não imaginar que, se esta história se passasse no séc. XXI, Amy seria certamente a irmã famosa, criadora de conteúdos (é assim que diz agora, não é?) para o TikTok, autora de vídeos sobre as torturas estéticas da moda, como maquilhagem definitiva, enchimento de lábios, extração de gordura bucal e, claro, molas para moldar o nariz. Aliás, numa breve pesquisa pela internet encontrei imediatamente o sucedâneo moderno do velho prendedor de nariz de Amy, uma mola com vários componentes que promete afilar os narizes mais abatatados (além de provocar uma série de outros efeitos secundários, sem contar com o risco de asfixia).
A história das quatro irmãs está pejada de relatos do quotidiano, e é presa a esse tecido do dia a dia que encontramos a modesta mola da roupa. Mas, apesar de ser um objeto discreto, não deixa de ser um detalhe importante. A referir-se ao prendedor de roupa inventado por Smith, a mola seria, ao tempo em que esta história foi escrita, um objeto relativamente recente. Aos nossos olhos de hoje a menção à mola de Amy parece um traço de tradição e nostalgia, mas na verdade, e no contexto temporal dado pelo enredo, poderá ser mais moderna do que parece.
As fábricas de molas de madeira do Vermont foram desaparecendo no séc. XX. Acabaram por ceder às fábricas chinesas e aos secadores de roupa elétricos. As molas de madeira inventadas por Moore continuam a ser hoje fabricadas um pouco por todo o mundo, mas já não com o mesmo fulgor, e encontraram o seu arqui-inimigo nas molas de plástico. Em tudo iguais às molas de Moore, as molas de plástico apenas substituíram a madeira, argumentando-se que assim durariam muito mais, por serem mais resistentes. Começaram a ser fabricadas por um italiano, Mario Maccaferri, que tinha uma fábrica de plásticos em Nova Iorque, e que em 1944 não conseguia encontrar molas de madeira para a sua mulher por causa da escassez provocada pela guerra. Decidiu então fazer alguns protótipos, patenteou-os e, um ano depois, estava a produzir molas de plástico em conjunto com uma empresa chamada Mastro Plastic Corporation. A produção teve tanto sucesso que Maccaferri comprou mais três fábricas. A partir daí, as molas de plástico espalharam-se por todo o mundo, e são hoje produzidas em cores e formas variadas, muito para além daquilo que Moore tinha imaginado.
A internet das coisas também chegou às molas, por ridículo que possa parecer. Hoje há molas que conectam com o telemóvel, que nos dizem quando a roupa está seca, ou que tempo vai fazer. Mas a mola de Moore, seja em madeira ou em plástico, continua a ser o design clássico das molas que mais se veem presas nos estendais e espalhadas pelos nossos dias, seja a fechar pacotes de batatas fritas, a segurar fraldas de pano nos carrinhos de bebé, a compor presentes feitos na escola para o Dia do Pai, ou a entreter crianças entediadas (lembro-me de uma vez ter rodeado a bainha da minha saia, e a bainha, gola e punhos da minha camisola, com todas as molas da roupa que havia lá em casa).
Andante con moto
As molas da roupa seguram muitas peças na corda da história da vida doméstica, umas mais desirmanadas que outras. A meia mais desirmanada, por ser tão inesperada, talvez seja a música. E não, não é apenas a utilização ocasional de molas para segurar as partituras nas estantes de uma orquestra. Smith, aquele primeiro inventor da mola da roupa, era violinista, e dizia que tocar violino o ajudava a encontrar soluções para os desafios que encontrava. Maccaferri, o inventor italiano da mola de plástico, era antes disso guitarrista e luthier, sendo reconhecido como grande artesão de instrumentos de cordas (fez, por exemplo, a guitarra de Django Reinhardt). O plástico devia ser alguma coisa que o obcecava, porque não só fez molas de plástico como uma guitarra, um ukelele e um violino de plástico. Por falar em violinos, e não havendo qualquer correlação conhecida, não deixa de ser curioso como uma mola da roupa, naquele design estável da autoria de Moore, partilha alguns traços morfológicos com o corpo de um violino. Se repararmos bem, a alma do violino, aquele pedaço cilíndrico de madeira que está dentro da sua caixa e que sustenta o tampo e o liga ao fundo como um pequeno pilar, cumpre a mesma finalidade da bobina de metal de uma mola da roupa. A alma do violino é um ponto fulcral de tensão, uma peça que garante que o tampo e o fundo vibram juntos de forma harmoniosa. Tal como uma bobina de uma mola, que garante que as duas partes da mola trabalham em consonância. Não há violino sem alma, nem mola, no design de Moore, sem bobina.
Antes que os leitores pensem que a comparação entre um violino e uma mola da roupa é coisa de quem já tem um parafuso, ou uma bobina, a menos, deixem-me contar-vos o que quatro cantores, todos eles certamente com várias bobinas em falta, apresentavam nos cabarets franceses no final dos anos 40. Os quatro cantores, conhecidos pelo nome de Os Quatro Barbudos (Les Quatre Barbus), formavam um grupo coral que cantava chansons de paródia. Uma delas chamava-se, precisamente, “La Pince à Linge” (A Mola da Roupa), e a sua letra disparatada contava como um homem chamado Opdebec teria inventado a mola da roupa (aliás, o despropósito da letra da música é tal que, perante a ausência de referências credíveis a Opdebec em outras fontes, começo a suspeitar que é apenas mais um produto da invenção dos cantores barbudos).
Mas o mais peculiar na chanson dos cantores barbudos era a música que usava. Nada mais, nada menos, do que o primeiro andamento da Quinta Sinfonia de Beethoven. Aquelas primeiro quatro notas de que falei no início eram cantadas, precisamente, com as sílabas “La-Pinc’-à-Linge”, o “liiiinge” a arrastar-se pela semínima em suspensão como se de uma única sílaba se tratasse. Se tiverem curiosidade, ouçam uma das várias gravações disponíveis na internet. E voltem a pôr no play para ouvir a vossa respeitada gravação da sinfonia de Beethoven. Nunca mais, garanto-vos, conseguirão ouvir aqueles compassos sem ouvir no interior da vossa cabeça quatro homens a cantar “mo-la-da-rooooupa” em francês.
É difícil não identificar aquelas quatro notas. A Quinta Sinfonia de Beethoven é provavelmente a sinfonia mais conhecida do mundo e uma das obras clássicas mais importantes, e mesmo aqueles que não tenham estudado música reconhecerão as suas primeiro quatro notas como algo importante da história da música. Matthew Guerrieri, músico e escritor, escreveu um livro que se dedica exclusivamente a essas quatro notas, um relato fascinante que mistura história e música, mas que pretende mostrar como as pessoas interpretaram aquela célula musical ao longo do tempo, e como os seus contextos afetaram a maneira como as ouviam. O alcance e o significado que a música (e o som, e a dimensão sónica dos objetos) podem ter na história, e a influência mútua entre música e o seu contexto, podem revelar coisas do seu tempo que texto e objeto não conseguem explicar enquanto fontes históricas. A música e o som são também fontes primárias de história, não material, mas sonora.
O grupo de quatro notas de Beethoven, a célula “la-pinc’-à-linge” (peço desculpa ao meu antigo professor de Análise e Técnicas de Composição pelo arrepio que acabei de lhe causar), tem uma origem tão difícil de traçar como a própria mola da roupa. A explicação mais conhecida, mas que atualmente se duvida ser verdadeira, é que Beethoven tenha querido ilustrar sonicamente o destino, de timbre ameaçador e sinistro, a bater à porta. Há interpretações do primeiro andamento tão secas que parecem, efetivamente, alguém muito irritado a bater à porta quatro vezes (sendo que, não havendo ninguém para abrir a porta, esse outro alguém bate outra vez furiosamente e, perdendo a cabeça, desata a bater sem parar até chegar ao fim do andamento). Guerrieri descreve bem como esta explicação dramática e pesada ganhou força no contexto em que a Quinta Sinfonia foi escrita, e como ela foi usada, mesmo sem ser demonstrada a sua veracidade, como símbolo filosófico e político da altura, como estandarte de um hino à luta heróica e à procura incessante de um ideal que caracterizava o romantismo dramático do séc. XIX.
Há outras explicações possíveis. Numa delas, diz-se que Beethoven terá querido fazer uma alusão à Marselhesa, que tem células rítmicas similares. Noutra, faz-se uma ligação à célula da poesia épica da Antiguidade Grega chamada péon (paeon), que tem três sílabas curtas e uma longa. Noutra explicação mais prosaica, defende-se que Beethoven se inspirou num pássaro do bosque chamado Escrevedeira-amarela, cujo canto começa com várias notas curtas e termina numa nota longa, tal como aquelas quatro notas. Nenhuma destas explicações sobreviveu tão bem como a do destino a bater à porta, que levou inclusivamente as quatro notas a serem conhecidas como a “célula do destino” (Schicksals-Motiv) e a Quinta Sinfonia como a “Sinfonia do Destino”. Como muitos apontam, a Quinta Sinfonia nunca teria o mesmo impacto se tivesse sido explicada como uma obra inspirada no canto de um passarinho. É difícil imaginar, de facto, aquela célula portentosa como um esganiçado Piu-Piu-Piu-Piiiiu.
É preciso não esquecer, todavia, e Guerrieri também nos lembra disso, que o primeiro andamento da Sinfonia, logo o seu primeiro compasso, começa com uma pausa de colcheia. Há quatro notas, é verdade, mas a Sinfonia não começa com música. Começa com silêncio. E essa modesta e discreta pausa de colcheia tem convocado várias discussões. Esse silêncio é uma moldura óbvia para a música que lhe segue. Mas Guerrieri também diz que a música que se segue é apenas uma faceta do silêncio onde é gerada, e que portanto a pausa é mais do que uma moldura. Guerrieri faz aqui alusão a Derrida, e à sua obra sobre pintura, na qual este descreve um parergon: uma forma, uma delimitação, que desaparece no momento em que exerce a sua força, tal como uma moldura de um quadro que se funde com a parede quando olhamos para a pintura, mas que, ao contrário, se funde com a pintura quando olhamos para a parede. Sugere Guerrieri que Beethoven transportou essa moldura para a própria pintura, para a sua sinfonia, através dessa pausa de colcheia, eventualmente desconstruindo a fronteira entre a sua obra e o contexto.
Allegro [Scherzo]
Aquela pequena pausa acabou por se tornar o espaço, o único espaço, para o maestro dar a entrada da orquestra (pelo menos, segundo alguns maestros). Contar compassos antes do primeiro compasso do andamento retirar-lhe-ia o ímpeto, e por isso o maestro conta com uma oportunidade para por a orquestra a tocar a primeira nota, só tem aquela pausa para dar um único comando, o que tornou a Quinta Sinfonia numa obra assombrada para quem a executa e assombrosa para quem a ouve.
A moldura da pintura, a pausa da sinfonia. E a mola na roupa. São tudo caixilhos, separações nem sempre muito definidas entre objeto e contexto. Naquela pausa de colcheia eu também vejo a figura de uma mola num estendal (Guerrieri fala de um gatilho de uma pistola a anunciar a partida), ou não fosse uma partitura uma espécie de estendal de cinco linhas, onde as notas aparecem penduradas ao sol. Aquela pausa é uma mola a segurar o tempo, a segurar a orquestra, a segurar os ouvintes, é uma moldura que liberta a sua força e se funde na música, tal como uma mola segura a roupa, apenas para se diluir no estendal quando o vento sopra.
Allegro
Paeons, parergons e outros monstros linguísticos e conceptuais à parte, os estendais são, pelo menos em Lisboa, autênticos quadros, salpicados por cores e texturas, retratos têxteis seguros por molas que povoam contas de Instagram como poemas sem palavras. São as nossas sinfonias, que orquestramos sem pensar, pendurando diferentes células umas junto das outras. Às vezes estão só as toalhas de banho, grandes mínimas em compasso binário, porque é o dia de lavar os turcos; outras vezes é só roupa interior, uma fila interminável de meias e cuecas, colcheias frenéticas em stacatto separadas umas das outras e agarradas cada uma à sua mola. Ali também conseguimos ver famílias a segurar outras pontas, as financeiras, em tempos de maior dificuldade, uma cacofonia de soutiens deformados pelo uso e pelas lavagens de uma mãe, as camisas todas iguais de punhos coçados que o pai leva para o trabalho, uma saia preta da avó, a camisola de marca com capuz, muito estimada, do filho adolescente, as muitas camisolas com bonecos dos filhos pequenos, herdadas dos primos e já puídas pelo uso e pelas lavagens (há poucas coisas mais ternas do que uma criança vestida com uma camisola coçada e suave a cheirar a amaciador). É num estendal de um rés-do-chão que vejo, todas as quartas-feiras, ladeado por um parapeito de orquídeas em vasos de plástico, um fato de banho de senhora, preto com umas linhas roxas a tapar um decote modesto, e uma touca de natação a condizer, tudo a cheirar a sabão azul e branco, uma curta melodia solitária de duas notas com um da capo semanal. O meu coração parou quando encontrei esse estendal vazio numa destas semanas, uma gigantesca pausa de breve com um sinal de suspensão. Mas a música voltou ao início e, felizmente, voltei a ouvir o estendal na semana seguinte (talvez, quem sabe, tivesse sido o professor da aula de hidroginástica sénior a faltar).
Um estendal e a sua população de molas também diz muitas outras coisas. Através dele conseguimos ver quem dobra os lençóis com brio em ângulos perfeitos, quem prende as camisas por baixo, fazendo-as parecer pessoas viradas de cabeça para o chão, braços pendurados a abanar ao vento, quem prende as t-shirts pelos ombros, quem segura as peças só pelas pontas para caber mais, criando barrigas de vazio em u que fazem a roupa parecer uma onda. Vemos também quem põe os guardanapos esticados e pendurados todos de seguida, a mostrar orgulhosamente a ausência de nódoas de tomate, quem começa da peça mais pequena para a peça maior ou vice-versa, quem espeta as molas da roupa até ao fundo e quem apenas belisca os tecidos para não estragar. Conseguimos ver quem deixa as molas na corda como pássaros pousados numa linha elétrica, quem estende a roupa como calha, quem põe dez molas para segurar uma toalha mesmo quando só está uma brisa, quem usa a mesma mola para prender a mesma camisola a outra, fazendo uma cadeia de malhas em concertina. Quem prende às cordas as meias com os pares corretos e com molas da mesma cor (às vezes fazendo condizer as próprias molas com as meias, revelando um leve transtorno obsessivo-compulsivo), e quem, ao invés, vencido pela exaustão, pendura um exército de babetes, babygrows e bodies de bebé com molas de cores aleatórias, mas tendo o cuidado de as por de lado, muito levemente para não marcar as golas. O gesto de estender roupa tem traços infinitos. É um ato de cuidar, de providenciar, muitas vezes cheio de afeto e sacrifício, e sempre repleto de significados.
Estender roupa é uma prática do quotidiano que faz lembrar o pensamento de Michel de Certeau. Uma corda com roupa a secar é sempre singular, repetitiva mas irrepetível, composta por uma conjugação relativamente errática e aleatória de molas e de roupa que não se tornarão a encontrar daquela maneira, que se faz e se desfaz para se fazer novamente e desfazer outra vez. E é uma prática que tem lugar no âmbito de uma estrutura societária maior, que a condiciona através de estratégias planeadas, usando as palavras de Certeau. E o que é o Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação de Lisboa, por exemplo, na parte em que proíbe estendais nas fachadas, salvo algumas exceções, senão uma estratégia segundo Certeau? Mesmo condicionadas, as práticas do quotidiano mantêm uma liberdade e uma criatividade que são muitas vezes inconscientes, mas que correspondem ao que Certeau chama de táticas para contornar e reinventar os limites e as conformações que lhes são impostas. Um estendal de roupa é uma tela em branco, uma partitura à espera de ser preenchida com roupa segura por molas a dançar ao vento, um triunfo do quotidiano sobre o normativo. Mesmo quando os arquitetos, em obediência à grelha jurídica, criam grelhas arquitetónicas nos edifícios para esconder os estendais, aquelas quadrículas ridículas em cimento a tapar as cozinhas, ou aquelas barbas de metal que escorrem pelas janelas, há sempre uma camisola a voar com uma manga de fora, em jeito de desafio, um lençol mal comportado que espreita por debaixo do painel, umas molas de plástico de cores garridas que gritam em pontilhado no prédio. Há sempre aquele proprietário que instala um estendal (ou que fecha uma marquise ou instala um ar condicionado) onde não deve, e onde brota, como um cogumelo espontâneo, uma grinalda colorida de roupa a secar. E há sempre a senhora que vive no rés-do-chão, que teima em estender a sua roupa na rua, numa corda que ata desde a sua janela até ao candeeiro do passeio. A desobediência institucional do estendal e das suas molas é de certa forma equivalente aos desire paths que todos nós criamos nos percursos que fazemos, desvios à norma que marcam uma nova norma, uma norma que não destrói a existente, mas que se acumula sobre ela, criando novos caminhos e oferecendo outras possibilidades. O tecido das cidades é feito destas camadas diversas, desta riqueza de percursos em potência, que estão no chão mas também nas fachadas dos prédios, de retratos e de memórias que são ao mesmo tempo individuais e coletivos.
Por esta altura, calculo que ainda não tenham terminado a Quinta Sinfonia, se ainda estiverem a ouvi-la. Continuem, se quiserem e puderem, para os andamentos seguintes. E, se tiverem uma máquina de roupa para estender, aumentem o volume e aproveitem a banda sonora. Não se vão arrepender.