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Seis interrogatórios e um encontro secreto. O frente a frente que durou meses entre Otelo e um juiz

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Entre 20 de junho e 12 de outubro de 1984, dois homens enfrentaram-se em interrogatórios sucessivos que seriam fundamentais para o processo das FP-25 de Abril.

Um era juiz de instrução e chama-se Martinho Almeida Cruz.

O outro era um símbolo da revolução indiciado de ser o líder de um grupo terrorista e chamava-se Otelo Saraiva de Carvalho.

No final desses encontros, o primeiro foi para o exílio e nunca mais seria o mesmo; o segundo foi para a prisão, mas por pouco tempo.

Esta é a história dos sete momentos em que estes dois homens se cruzaram.

Este artigo é a segunda parte da série multimédia “Os Anos de Chumbo das FP-25”, constituída por quatro artigos e três episódios de um podcast especial. Amanhã, leia “O processo judicial que foi desaparecendo aos poucos”. Para ter uma experiência multimédia mais completa, veja este artigo num computador.

Enquanto subia ao quarto andar do edifício da Polícia Judiciária na Rua Gomes Freire, em Lisboa, onde funcionava o Tribunal de Instrução Criminal, Otelo Saraiva de Carvalho pensava que iria prestar apenas alguns esclarecimentos e que sairia em liberdade ainda a tempo de ir de férias com a família para o Algarve. Mas os documentos que o juiz Martinho Almeida Cruz tinha em cima da velha secretária, um dos poucos móveis naquele gabinete, apontavam um caminho diferente. A PJ tinha reunido provas que colocavam Otelo na liderança da organização que fez nascer as FP-25 de Abril, o grupo terrorista criado em 1980 e que nos anos anteriores tinha reivindicado vários atentados e assaltos à mão armada, fazendo um total de 13 vítimas mortais — em nome do poder popular e contra o capitalismo.

Otelo ficou surpreendido mal percebeu que aquela noite de 20 de junho de 1984 seria já passada no Forte-Prisão de Caxias. Mas o magistrado deixou-o ainda mais estarrecido: nos vinte dias seguintes não poderia receber visitas nem comunicar com ninguém. Apenas tinha autorização para falar com o seu advogado — e mesmo isso teria de ser feito por breves minutos e sempre na presença de um elemento da Judiciária. No livro que depois escreveu na prisão, “Acusação e Defesa em Monsanto”, o militar diz que caiu “das nuvens”. Ainda assim, se caiu, o juiz não se apercebeu: segundo Martinho Almeida Cruz, Otelo Saraiva de Carvalho manteve-se calmo e educado, sem nunca fazer transparecer ponta de nervosismo.

Este seria o primeiro de sete encontros que o militar teria com o juiz de instrução criminal. O Observador reconstituiu cada um desses interrogatórios, cruzando testemunhos de quem os presenciou, informação que consta do processo judicial, a versão de Otelo que faz parte do seu livro e ainda um documento inédito — na altura, o juiz Martinho Almeida Cruz gravou seis cassetes com o seu relato do que estava a acontecer e, já no fim do processo, esse registo em áudio foi datilografado e passado ao papel. Agora, o juiz cedeu ao Observador essa transcrição, onde conta várias peripécias sobre o processo e os seus intervenientes, assim como muitas das pressões que sofreu.

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Nesses interrogatórios, fica claro que estiveram frente a frente dois homens muito diferentes.

De um lado, Otelo Saraiva de Carvalho, que se tornara um dos rostos do 25 de Abril por ter planeado as operações militares que permitiram o golpe de Estado que levou à queda da ditadura. À data do encontro com o juiz, em junho de 1984, o militar estava colocado na Direção da Arma de Artilharia. Estivera um período suspenso de funções na sequência da sua detenção no 25 de Novembro de 1975, pela sua controversa liderança do COPCON. Mas, mesmo depois disso, não desistira das suas ambições políticas. Candidatou-se à Presidência da República por duas vezes — na primeira, em 1976, ainda conseguiu ser o segundo mais votado; quatro anos depois, e apoiado pela recentemente criada Força de Unidade Popular (FUP), os resultados quase o votaram ao esquecimento. Em 1984, aos 47 anos, foi então detido e depois acusado e condenado por, usando a FUP como cobertura, ter montado uma organização que defendia a luta armada através das FP-25 de Abril: foi considerado culpado de um crime de organização terrorista num processo que andou às voltas nos tribunais superiores e que acabou por ser resolvido por uma amnistia.

“Fomos nós próprios, eu e o coordenador da Polícia Judiciária responsável pelo caso, que passámos os mandados, os dobrámos, metemos em envelopes e fechámos. Eu disse-lhe: ‘Convoque o pessoal todo para esta coisa, mas não quero que ninguém saiba o que vai fazer’"
Martinho Almeida Cruz, juiz

Do outro lado estava o juiz de instrução criminal Martinho Almeida Cruz. Tinha 35 anos quando o processo lhe foi atribuído por sorteio e andava na época a fazer exames com o objetivo de suspender a sua carreira de magistrado e ir para França estudar Direito Europeu. No meio judicial definiam-no como um juiz da esquerda radical e havia até quem o colasse ao Otelismo. Mas o magistrado garante ao Observador que isso não é verdade: já antes do 25 de Abril era, sim, “um velho trotskista”. No final dos dois processos das FP-25 que conduziria, acabou por ser colocado em Bruxelas por razões de segurança. De volta a Portugal para ser desembargador no Tribunal  da Relação, foi jubilado por invalidez: um atestado garantia que sofria de stress pós-traumático.

FP-25 de Abril. As bombas, as balas e os “inimigos a abater”

Naquele dia 20 de junho de 1984, Almeida Cruz já interrogara parte dos presos das FP-25 e tinha ido a casa apenas tomar banho e mudar de fato. Mal fora à cama quando Otelo apareceu à sua frente. Isso não era um problema: os últimos anos tinham-no habituado a estar acordado até tarde e a levantar-se cedo. “Eu sempre fui, e sou ainda, um amante das coisas boas, sou um ‘gastrónomozinho’, adoro comer, gosto muito da noite, era onde me encontrava com os amigos e com as amigas”, conta o juiz ao Observador mais de trinta anos depois.

As 24 horas anteriores tinham sido uma maratona de interrogatórios. Um total de 400 polícias, entre PJ, PSP e GNR, tinham aproveitado o nascer do sol para deter cerca de 80 suspeitos de integrarem as FP-25 de Abril, naquela que ficou conhecida como Operação Orion. Para o juiz, as conversas com os suspeitos até estavam a correr relativamente bem. “Uns melhores e outros piores: malcriados, bem educados”, lê-se no documento onde constam as memórias que na altura ditou para um gravador.

Ouça aqui o primeiro episódio do podcast especial.

“Porquê? Porquê?” As vítimas das FP-25 de Abril

À medida que ia ouvindo os suspeitos, o magistrado percebeu que faltava um pequeno grupo que ninguém tinha ousado deter. Já passava da meia-noite quando Almeida Cruz se virou para o coordenador da Polícia Judiciária responsável pelo caso, António Coutinho, e ordenou: “Vamos passar mandados de captura para os dirigentes desta coisa. Agora… tratam vocês. Quero esses fulanos aqui todos amanhã. Ninguém vai saber nada disto!”. O juiz recorda ao Observador: “Fomos nós próprios, eu e ele, que passámos os mandados, os dobrámos, metemos em envelopes e fechámos. Eu disse-lhe: ‘Convoque o pessoal todo para esta coisa, mas não quero que ninguém saiba o que vai fazer’.” Só de manhã os polícias descobriram o motivo da convocatória.

Entre os “fulanos” que o juiz queria ver no edifício logo no dia seguinte estava Otelo Saraiva de Carvalho — a casa do militar, em Oeiras, integrava os alvos em cujas portas a polícia bateu, embora nessa altura não houvesse ainda qualquer mandado de detenção em seu nome.

Nessa manhã de 19 de junho, o toque insistente da campainha não foi suficiente para acordá-lo. Foi a sogra de Otelo quem abriu a porta de casa e se deparou com dois elementos da Polícia Judiciária. Virou costas, fechou a porta e correu na direção do quarto para chamar o genro. Atordoado, Otelo fez questão de ainda ir passar a cara por água — mas, segundo relata no seu livro, manteve-se de pijama para não prolongar a espera dos polícias.

[Veja neste vídeo a reconstituição das buscas na casa de Otelo Saraiva de Carvalho:]

Meses antes, como admitiu depois à RTP, os colegas militares que tinham informações dos serviços secretos (à data DINFO) já o tinham avisado de que poderiam vir atrás dele por causa das FP-25. Por isso, antes de abrir a porta, Otelo ainda olhou para uma pasta que tinha no corredor e pensou nos dois cadernos que lá guardava, onde apontava tudo sobre a organização que daria origem à FUP, a que chamou Projeto Global. “Acabei por decidir deixá-los onde estavam, já que nada do que neles se encontrava escrito podia ser abrangido num âmbito conspiratório ou de suspeição, muito menos numa possível ligação à organização FP-25”, escreveu mais tarde em “Acusação e Defesa em Monsanto”.

Os polícias mostraram o mandado de busca a Otelo. Além de armas e munições, procuravam livros, documentos, máquinas de escrever ou de copiar. Otelo colaborou. Trouxe-lhes todas as armas e munições que tinha — a polícia olhou para elas uma a uma, mas não levou nada. Já tudo o que estava na pasta de Otelo foi apreendido, assim como uma agenda da mulher, que teria não apenas números de telefone, mas também medidas de cortinados, de almofadas e até de vestidos

Na verdade, não era bem assim: os dois cadernos, um de capa verde e outro de capa preta, acabariam por tornar-se a prova fundamental do processo judicial que se seguiu por mostrarem, precisamente, a ligação entre a FUP e as FP-25. Segundo o Ministério Público (MP), os apontamentos neles contidos contam tudo o que se discutia na organização que deu origem ao partido político, FUP, e ao seu braço armado, as FP-25. Os apontamentos contam também como a organização tinha ligações a outros países, de que forma distribuía o dinheiro, como ajudava os militantes que estivessem a ser julgados por crimes ou mesmo os métodos de preparação de vários encontros, fossem reuniões ou ações políticas na rua. Por outro lado, como os documentos eram quase atas de reuniões escritas pela mão de Otelo, essas anotações complementavam-se com outras semelhantes apreendidas a vários militantes que também eram arguidos.

Os polícias mostraram o mandado de busca a Otelo. Além de armas e munições, procuravam livros, documentos, máquinas de escrever ou de copiar. Otelo colaborou. Trouxe-lhes todas as armas e munições que tinha — a polícia olhou para elas uma a uma, mas não levou nada. Já tudo o que estava na pasta de Otelo foi apreendido, assim como uma agenda da mulher, que teria não apenas números de telefone, mas também medidas de cortinados, de almofadas e até de vestidos. Mais tarde, a polícia acabaria por perceber que havia uma outra pasta que Otelo levava para o trabalho e que teria documentos importantes, mas que desapareceu misteriosamente do departamento de armas onde trabalhava assim que se soube da sua detenção.

“Concluímos que só o facto de pretenderem seguir os nossos passos e vigiar as nossas atividades podia justificar a nossa situação de liberdade. Previmos desde logo que ela não poderia ter grande duração e preparámo-nos para a nossa detenção a breve prazo”
Otelo Saraiva de Carvalho, “Acusação e Defesa em Monsanto”

Nesse dia Otelo ficou em liberdade — mas não ficou aliviado. Ao final da tarde acabaria por fazer o que já tinha combinado com alguns militantes caso houvesse detenções: reunir com outros elementos da FUP para falarem da operação policial, que acabou com 56 dos cerca de 80 suspeitos detidos, e muitos a conseguirem escapar. Mais tarde, o juiz Martinho Almeida Cruz falaria em 30 operacionais que ficaram por deter.

“Concluímos que só o facto de pretenderem seguir os nossos passos e vigiar as nossas atividades podia justificar a nossa situação de liberdade. Previmos desde logo que ela não poderia ter grande duração e preparámo-nos para a nossa detenção a breve prazo”, escreveu Otelo.

Tinha razão: por esta altura, estava Martinho Almeida Cruz no gabinete da rua Gomes Freire a despachar o seu mandado de captura.

Rua Gomes Freire, Lisboa

O Tribunal de Instrução Criminal funcionava na Rua Gomes Freire, onde Otelo foi ouvido pela primeira vez

Arquivo Fotográfico de Lisboa

Carlos Picoito, à data diretor nacional da Polícia Judiciária, recorda-se bem dos motivos pelos quais Otelo e os arguidos que vieram a ser acusados por integrarem a cúpula da organização não foram logo detidos na operação desencadeada a 19 de junho. “Por um lado, nós tínhamos a ideia de que se fossemos à cúpula e deixássemos os operacionais de fora num primeiro momento, as reações podiam ser muito violentas. E, por outro lado, entendemos que a detenção das cúpulas exigia alguma preparação da opinião pública, na medida em que já sabíamos que uma das pessoas que iria ser detida era o então tenente-coronel Otelo Saraiva de Carvalho e isso iria demorar a ser aceite pela sociedade em geral”, recorda, aos 74 anos, sentado à mesa da sala de reuniões no escritório onde trabalha como advogado, nas Amoreiras, depois de em 1989 ter optado pelo setor privado.

A magistrada do Ministério Público Cândida Almeida, a quem foi entregue o processo, considerou também que a cúpula devia ser deixada de fora para continuarem a segui-la de perto — não só através de vigilâncias, mas também de escutas telefónicas — e perceberem o que diziam sobre as detenções. Seria uma estratégia para obter mais provas. “Depois daquela operação haveria necessariamente encontros clandestinos. Portanto, os investigadores deveriam estar a postos para isso, também com as escutas telefónicas, para ver o que é que então se iria passar”.

“Eu fiquei… Como é que o herói de Abril se mete numa coisa destas? Esta foi a minha primeira reação: como é que um herói que faz uma revolução pacífica, com cravos, faz uma coisa destas?”
Cândida Almeida, procuradora que ficou com a acusação do processo

Cândida Almeida estava incrédula com o que a PJ acabara de descobrir. Na época, a investigação corria na polícia e só depois de estar praticamente concluída era entregue ao Ministério Público para ser proferida, ou não, uma acusação. “Eu fiquei… Como é que o herói de Abril se mete numa coisa destas? Esta foi a minha primeira reação: como é que um herói que faz uma revolução pacífica, com cravos, faz uma coisa destas?”.

Já Otelo Saraiva de Carvalho viria a aproveitar-se em entrevistas, nos anos seguintes, da orientação política de Cândida Almeida, que era do PCP, para justificar a acusação movida contra ele, esquecendo que o caso seguiu todos os trâmites legais e foi apreciado não só primeiro por um juiz de instrução, mas também pelo coletivo do julgamento e por todos os juízes dos tribunais superiores por onde o processo andou depois.

Otelo acabaria detido a 20 de junho, dia seguinte à busca em sua casa. Depois de ser emitida a ordem judicial, foram os seus próprios colegas de trabalho que o conduziram àquele quarto andar do edifício da Rua Gomes Freire. Nessa tarde, à medida que Otelo se aproximava do gabinete de Martinho Almeida Cruz, o burburinho nos corredores aumentava. O estratega do 25 de Abril tinha sido detido e ia ser apresentado ao juiz de instrução criminal. O que aconteceria depois?

O dia em que Otelo é chamado e fica preso

O tenente-coronel Otelo Saraiva de Carvalho entrou no gabinete de Martinho Almeida Cruz, no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, rigorosamente vestido com a sua farda verde, exibindo as galões da sua patente nos ombros. Aliás, Otelo viria a aparecer sempre assim à frente do magistrado nos encontros seguintes. Apesar de detido por atos cometidos fora da instituição militar, não dispensava a farda. Vinha acompanhado de um militar, o tenente-coronel Magueijo, que entretanto já morreu. Segundo recorda Otelo no livro que escreveu depois, foi levado para uma sala, onde se manteve até que o chamaram passados 20 minutos para se apresentar ao juiz no seu gabinete.

No quarto piso do edifício, os gabinetes dos juízes ficavam de um lado e, do outro, ficavam os dos magistrados do Ministério Público — à data, a atual ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, dividia sala com Maria José Morgado. Quando Otelo entrou no gabinete de Martinho Almeida Cruz, não era apenas o juiz que o esperava. “Estavam várias pessoas na sala e havia uma excitação óbvia no ambiente”, descreveu Otelo. Afinal, era o rosto do 25 de Abril que ali estava. No interior, sentavam-se pelo menos a procuradora Cândida Almeida, o coordenador da PJ António Coutinho, responsável pela investigação, e as funcionárias do tribunal.

O então tenente-coronel já tinha previsto este encontro depois de saber que vários militantes da FUP tinham sido detidos. No dia seguinte à operação, a 20 de junho, mal entrou ao serviço, comunicou mesmo ao general responsável pela Direção da Arma de Artilharia o que poderia acontecer. Acreditava que estava prestes a chegar a sua vez, escreveu. E, de facto, não tardou muito.

“Fiquei a aguardar longas três horas, durante as quais me fizeram descer às caves do edifício para me tirarem fotografias de frente, de perfil e a três quartos, com placa de número à frente, e para recolherem as impressões de todos os dedos e as das mãos inteiras. Sentia-me já tratado como um perigoso cadastrado”
Otelo Saraiva de Carvalho, “Acusação e Defesa em Monsanto”

Depois do almoço, o general ligou-lhe a dizer que tinha recebido um telefonema a avisar que o iam buscar para prestar declarações, mas que ele tinha respondido que Otelo iria pelo seu próprio pé à Rua Gomes Freire. A versão do então diretor da Polícia Judiciária, Carlos Picoito, é diferente: segundo ele, quando chegou, Otelo já vinha sob detenção, como então ditava a lei.

Recorte do semanário Expresso do dia 7 de julho de 1984, em que é entrevistado o diretor da PJ, Carlos Picoito

DIREITOS RESERVADOS

Sentado atrás da sua mesa de trabalho, o juiz Martinho Almeida Cruz perguntou-lhe se sabia por que motivo estava ali. Otelo, que segundo o juiz foi sempre educado, embora num tom muito teatral, respondeu que julgava ser para prestar declarações sobre as FP-25. O magistrado perguntou-lhe, também, se trazia advogado. A resposta foi negativa. Então, o juiz mandou-o esperar, para que fosse nomeado um advogado pago pelo Estado.

“Fiquei a aguardar longas três horas, durante as quais me fizeram descer às caves do edifício para me tirarem fotografias de frente, de perfil e a três quartos, com placa de número à frente, e para recolherem as impressões de todos os dedos e as das mãos inteiras. Sentia-me já tratado como um perigoso cadastrado”, recordou no livro.

Martinho Almeida Cruz anunciou-lhe, então, que era suspeito não apenas de integrar a organização terrorista, mas de a ter criado. No processo haveria já declarações de “pessoas várias” que lhe permitiam considerá-lo o “mentor intelectual e executivo das FP-25”. “Quem, eu? Por amor de Deus”, respondeu Otelo com um sorriso.

De seguida, o militar questionou o juiz sobre como era possível um civil prender um militar. Perplexo, o magistrado perguntou-lhe se estaria a brincar e se sabia o que era viver em democracia. O detido acabou a pedir desculpa pela afirmação — e percebeu rapidamente que ia mesmo ficar em prisão preventiva. “Caí das nuvens! E eu que, inocentemente, ainda mantinha a esperança de só vir prestar declarações”, escreveu. O militar ainda lembrou o juiz que, a ficar preso, seria em Caxias, por ser uma cadeia militar — e até pediu para seguir para lá no seu próprio carro. O magistrado recusou essa possibilidade.

Otelo foi levado para uma cela de Caxias, à qual sempre se referiu como um “quarto” — porque aos oficiais era dado um quarto, não uma cela. De facto, era mais um quarto, com casa de banho privativa e com água quente e fria. Otelo não era um recluso qualquer. Naquela prisão militar todos o tratavam com deferência, não só por ser um oficial, mas também por integrar o Movimento dos Capitães, o grupo de militares que esteve na origem do Movimento das Forças Armadas (MFA), que viria a derrubar o Estado Novo.

Durante o golpe de Estado, Otelo já tinha mostrado que conseguia ter os militares do seu lado, mas, para a opinião pública, naquele dia continuou a ser um desconhecido. A 25 de Abril, quem ficou imortalizado em fotografias foi o comandante Salgueiro Maia, responsável por conduzir as tropas de Santarém até ao Terreiro do Paço, em Lisboa. Otelo, o estratega da operação, que comandou tudo a partir do quartel da Pontinha, era ainda um anónimo e até voltou ao seu local de trabalho, como professor na Academia Militar, logo nos dias seguintes à revolução.

Otelo Saraiva de Carvalho, à chegada a Lisboa após visitar Cuba. Foto de: Acácio Franco

Otelo Saraiva de Carvalho à chegada a Lisboa depois de uma visita a Cuba. Lisboa, 31 de julho de 1975

ACÁCIO FRANCO/ARQUIVO DN

A 26 de abril de 1974, a Junta de Salvação Nacional (JSN) — idealizada pelo MFA para governar no período revolucionário até à tomada de posse do primeiro governo provisório — deu uma conferência de imprensa sobre a operação que derrubara a ditadura. O porta-voz foi o presidente da JSN, general António de Spínola, que foi escolhido entre os militares para desempenhar as funções de Presidente da República. Nesse dia, os jornalistas perguntaram quem tinha sido o responsável pela operação e ninguém apontou o nome de Otelo. O próprio contou que estava na Academia, pronto para dar aulas, quando o informaram de que devia juntar-se ao MFA, no Palácio Cova da Moura, que tinha entretanto criado uma Comissão Coordenadora da qual ele nem sequer fazia parte. No grupo estavam apenas Vítor Alves, que redigiu o programa do MFA, Vasco Lourenço, um dos fundadores do Movimento, que no 25 de Abril estava nos Açores, Franco Charais e Vasco Gonçalves.

Otelo foi levado para uma cela de Caxias, à qual sempre se referiu como um “quarto” — porque aos oficiais era dado um quarto, não uma cela. De facto, era mais um quarto, com casa de banho privativa e com água quente e fria. Otelo não era um recluso qualquer. Naquela prisão militar todos o tratavam com deferência

Só mais tarde o jornal francês Le Figaro falaria em Otelo como o homem que comandou as operações, o que viria a fazer eco na imprensa internacional. Otelo chegou mesmo a ser capa da revista americana Time. Segundo contou o próprio, o jornalista do Le Figaro conhecia-o dos tempos na Guiné — em que teve funções que passavam por lidar com a comunicação social — e perguntou-lhe qual tinha sido a sua intervenção na operação que derrubara o regime. A resposta de Otelo valeu-lhe o destaque no jornal francês. Ainda assim, essa informação só se generalizou depois de viajar com Mário Soares para Moçambique — era o líder socialista ministro dos Negócios Estrangeiros — e de partilhar com ele a sua intervenção na revolução. O seu protagonismo aumentaria ao ponto de, em julho de 1975, ter representado o MFA em Cuba, num encontro com Fidel Castro.

Revista TIME

Otelo chegou a ser capa da revista Time, como fazendo parte da "troika" mais influente durante o processo revolucionário

Revista TIME

Os poderes quase ilimitados do COPCON, “o 115 da revolução”

Um ano antes da viagem a Cuba, Spínola decidira criar o COPCON (Comando Operacional do Continente) e escolheu Otelo para comandante adjunto, a par das funções de comandante que iria desempenhar na Região Militar de Lisboa. Nessa altura o comandante do COPCON era o general Costa Gomes, então Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e também membro da Junta de Salvação Nacional.

Viviam-se tempos conturbados, de indefinição política. Nas ruas havia manifestações, greves, ocupações e surgiam vários movimentos contra a descolonização. Dentro do próprio MFA também havia divergências e formas diferentes de olhar para o processo democrático que se queria construir, sobretudo em relação ao destino a dar às colónias portuguesas. O fosso entre Costa Gomes e Spínola era cada vez maior. Otelo, por esta altura, tentava manter-se neutro.

Em pouco tempo, o COPCON, com sede no Forte do Alto do Duque, em Monsanto, acabou por tornar-se num órgão com poderes quase ilimitados. Isso aconteceu sobretudo depois do 28 de Setembro de 1974, onde se enfrentaram várias forças na rua — umas contra e outras a favor da manifestação marcada para esse dia e organizada pelo Partido Liberal, depois de um discurso do Presidente Spínola a propósito da independência da Guiné-Bissau, em que apelava a uma “maioria silenciosa” que despertasse de “totalitarismos extremistas”. O COPCON deteve vários manifestantes, por ordem do então brigadeiro Saraiva de Carvalho, que afirmaria mais tarde não estar contra o general Spínola, mas pela “revolução”.

As detenções eram feitas a partir de uma lista cujos nomes não tinham sequer sido investigados e todas usando o mesmo argumento: seriam suspeitos de integrar uma "associação de malfeitores", uma fórmula que serviria de justificação para inúmeras detenções no ano seguinte. Muitas dessas pessoas estiveram presas durante mais de um ano sem que houvesse sequer um interrogatório ou uma intervenção judicial

Um relatório da Comissão de Averiguação de Violências sobre Presos Sujeitos às Autoridades Militares, feito dois anos depois por uma comissão independente composta por militares e civis (entre eles o advogado Francisco Sousa Tavares) viria a concluir que a partir desta altura o COPCON sairia reforçado, quando o primeiro-ministro lhe atribuiu competências policiais e passou a ordenar prisões sem a intervenção de qualquer outro órgão policial ou jurisdicional. Foi então que começaram a ser feitas várias detenções completamente arbitrárias, centenas delas com mandados de detenção em branco assinados por Otelo.

A Comissão recebeu informações sobre três centenas de detenções de pessoas ligadas à organização da manifestação spinolista, ao antigo regime e aos partidos e jornais criados depois do 25 de Abril mas situados à direita, assim como de figuras conhecidas da vida financeira e social. As detenções eram feitas a partir de uma lista cujos nomes não tinham sequer sido investigados e todas usando o mesmo argumento: seriam suspeitos de integrar uma “associação de malfeitores”, uma fórmula que serviria de justificação para inúmeras detenções no ano seguinte. Muitas dessas pessoas estiveram presas durante mais de um ano sem que houvesse sequer um interrogatório ou uma intervenção judicial. Permaneciam “juridicamente abandonados ou esquecidos” como se lê no relatório da Comissão.

forte do alto do duque

O Forte do Alto do Duque, as instalações do COPCON

Arquivo "A Capital"

A Comissão também não encontrou provas de que estes detidos tivessem elaborado um verdadeiro plano de tomada do poder, recorrendo a meios subversivos, ilegais ou violentos, sob pretexto de uma manifestação, ao contrário do que alguns jornais da época noticiavam. “A Comissão não encontrou junto das instâncias oficiais quaisquer factos justificativos dessa tese”, lê-se.

Otelo justificou a emissão desses mandados em branco com a inoperância da PSP, que antes do 28 de Setembro se teria recusado a executar as ordens de prisão emanadas do órgão criado para extinguir a PIDE por não lhe reconhecer competência legal para isso. E disse sempre que apenas cumpriu uma ordem do então primeiro-ministro, Vasco Gonçalves. Veio a apurar-se que as ordens emanadas do primeiro-ministro foram “reduzidas” e que se referiam apenas a pedidos de interdição de saída do país e congelamento de contas.

Na sequência do 28 de Setembro, Spínola renunciou ao cargo de Presidente da República, não sem antes explicar ao país que “a crise e o caos” eram inevitáveis, tendo em conta o “clima generalizado de anarquia” que se vivia. O general Costa Gomes seria o seu sucessor.

Nos meses seguintes começaram a chegar todo o tipo de queixas ao COPCON. Até se faziam filas à porta. “Era o 115 da revolução”, escreveu Otelo no seu livro. Havia queixas de trabalhadores que diziam que tinham ficado sem emprego depois de os patrões terem abandonado o país e levado tudo. Havia trabalhadores agrícolas a reclamar da anunciada reforma agrária (a primeira lei seria aprovada em novembro), temendo perder as terras que cultivavam, enquanto Otelo os incentivava a trabalhá-las e a ocupá-las – chegando a dar ordem à GNR para não intervir em casos de ocupação das terras. E havia muito mais: até queixas de violência doméstica lhe chegavam, como se lê no seu testemunho recolhido por Paulo Moura para o livro biográfico “Otelo – O Revolucionário”. Todos queriam falar com Otelo.

Se alguém precisava de sítio para morar, ele mandava os militares à procura de casas que pudessem ser ocupadas. Se alguém queria “correr com os fascistas” de algum local, Otelo mandava ajudar. Um desses casos aconteceu na Casa de Angola, em Lisboa. Uma delegação de cinco estudantes do MPLA foi pedir-lhe ajuda. Um deles, Venâncio Moura, disse-lhe: “Queremos correr com os fascistas angolanos que lá estão”. “Fiquei numa situação difícil. Das duas uma: ou corria com aquela gente, mandando o sentinela dar uns tiros para o ar, para os afugentar, ou tinha de resolver os problemas”, afirmou Otelo, reconhecendo que nem sempre tomou as melhores decisões.

Em setembro de 1975, militares do COPCON eram notícia por terem roubado cerca de mil espingardas G3 do Depósito de Material de Guerra, em Loures. A ideia era entregar as armas a grupos de extrema-esquerda, que deviam depois distribuí-las por militantes do PS, segundo avançaram os jornais da época.  “Sei pelo menos que as armas se encontram à esquerda e isso é uma satisfação muito grande. Se elas se encontrassem à direita é que era perigoso. Como se encontram à esquerda, para mim estão em boas mãos”, declarou então Otelo

O COPCON foi ganhando poder e, a determinada altura, tornou-se num sistema de informações, valorizando todo o tipo de denúncias. Elas eram muitas vezes anónimas, como aquela que levou à detenção de centenas de militantes do MRPP, entre eles o seu fundador Arnaldo Matos, sem qualquer investigação e só porque se dizia que se preparavam vários ataques a unidades militares do país.

O general Ramalho Eanes descreveu mais tarde Otelo como um verdadeiro ator que se “transforma” na personagem que encarna e se tornava sempre outra pessoa quando estava perante uma plateia. E assim foi quando uma jornalista da Rádio Renascença, já em 1975, lhe perguntou o que achava da onda de destruição que tinha havido contra as sedes de partidos de esquerda por grupos de extrema-direita como o ELP e o MDLP. “De facto, a situação é preocupante. Oxalá não tenhamos de meter no Campo Pequeno os contra-revolucionários que estão a fazer isso, os incêndios, as destruições de sedes, antes que eles nos venham a meter lá a nós”, respondeu Otelo. Uma frase que acabou celebrizada depois de ser reproduzida em vários jornais.

Em setembro de 1975, militares do COPCON eram notícia por terem roubado cerca de mil espingardas G3 do Depósito de Material de Guerra, em Loures. O plano inicial até previa o furto de dez mil. A ideia era entregar as armas a grupos de extrema-esquerda, que deviam depois distribuí-las por militantes do PS, segundo avançaram os jornais da época.  “Sei pelo menos que as armas se encontram à esquerda e isso é uma satisfação muito grande. Se elas se encontrassem à direita é que era perigoso. Como se encontram à esquerda, para mim estão em boas mãos”, declarou então Otelo.

Só o 25 de Novembro de 1975 viria a arrefecer aquele que ficou conhecido como o Verão Quente — e o COPCON foi dissolvido pelo Conselho da Revolução, na sequência de informações de que o órgão comandado por Otelo estava a apoiar os paraquedistas que ocupavam algumas unidades militares, exigindo a demissão dos seus comandos. Ramalho Eanes, que exercia as funções de Chefe do Estado-Maior do Exército, acabaria por mandar deter estes militares e, mais tarde, o próprio Otelo — que esteve preso durante 44 dias por abuso de poder. Entre as imputações que lhe eram feitas estava a emissão dos mandados de prisão em branco.

No despacho que o condenou pelo seu papel no Verão Quente anos depois, a 27 de agosto de 1979, o juiz afirmou que foi Otelo quem ordenou a ocupação das bases militares pelos paraquedistas. Mais tarde, no livro que escreveu para se defender do processo das FP-25, Otelo assumiu que, depois da revolução, criou-se uma “situação de ambiguidade” só ultrapassada com o 25 de Novembro, reconhecendo os seus excessos: “Extravasei largamente os limites a que a minha ação de comando militar devia ter-se circunscrito, guiado pela imperiosa necessidade de demonstrar concretamente ao povo que em nós tanto confiava que não eram vãs as esperanças de redenção que no MFA tinham depositado”.

Otelo já tinha estado preso durante 20 dias, em 1976, no Reduto Norte do Forte-Prisão de Caxias na sequência da participação numa reunião com os GDUP – Grupos Dinamizadores da Unidade Popular. Foi um de muitos processos que enfrentou, depois de ficar suspenso de funções na sequência do 25 de Novembro. Chegou também a ser alvo de processo disciplinar pelo que escreveu no seu livro “Alvorada em Abril”, considerando o Exército que desrespeitava a hierarquia militar. O Conselho Superior de Disciplina passou-o à reserva compulsiva em 1979, mas nesse ano foi aprovada uma amnistia proposta pelo PS para cobrir todos os crimes de carácter político cometidos desde o 25 de Abril, com principal incidência no 25 de Novembro. Otelo acabaria reintegrado no serviço em 1982, por se ter assumido que a sua passagem à reserva tinha motivações políticas. Seria a primeira amnistia de que beneficiava. Foi por esta altura que foi colocado na Direção da Arma de Artilharia.

De volta à cadeia militar, em 1984, agora por causa das ligações às FP-25 de Abril, Otelo continuava a ser tratado como uma estrela. Gozava também de condições especiais em relação aos outros reclusos, depois de terminado o período de incomunicabilidade determinado pelo juiz: podia circular livremente na prisão, usar o telefone, receber visitas e ir ao gabinete do comandante quando quisesse. O major Carmona Teixeira, comandante da prisão, era seu primo e logo que soube da detenção mandou os seus homens irem buscar roupa a casa de Otelo para que não lhe faltasse nada do que precisava.

Otelo viria a recorrer para o Tribunal da Relação da detenção ordenada pelo juiz Martinho Almeida Cruz, uma vez que não chegou a prestar declarações e nem sequer tinha um advogado para isso, mas a decisão só chegaria meses depois, logo após ser pronunciado — e não lhe foi favorável.

Naquele gabinete da Gomes Freire, o único que nunca teve um momento de perplexidade com a detenção de Otelo era o coordenador da investigação, António Coutinho, que já levava mais de um ano a construir o caso contra as FP-25. A procuradora Cândida Almeida estava ainda incrédula com o caso e o juiz Martinho Almeida Cruz fora completamente apanhado de surpresa.

Vasco Lourenço com Otelo Saraiva de Carvalho em Lisboa a 25 de abril de 1980. Um ano antes de ser detido, Vasco Lourenço disse-lhe para ter cuidado com as pessoas com quem andava

LUIZ CARVALHO/ARQUIVO DN

Um ano antes de Otelo ser detido, Vasco Lourenço — um dos capitães com quem fez a revolução — avisara o amigo para ter cuidado com as pessoas com quem andava. Ao Observador, outro Capitão de Abril, o agora coronel Rodrigo Sousa Castro, já reformado, e que assistiu a esse aviso, lembra que Otelo estava ligado a movimentos de esquerda radical que eram “verdadeiros bandos”. Meses depois, Otelo acabaria mesmo por ser informado de que iria haver uma operação policial.

As ligações à esquerda radical e a tentativa de ser Presidente da República

Em “Acusação e Defesa em Monsanto”, Otelo explicou que, dois meses depois de ser libertado do presídio de Santarém, onde esteve detido durante 44 dias após o 25 de Novembro, foi abordado na Aula Magna, onde decorria um colóquio do Grupo de Intervenção Socialista (GIS), por um grupo grande que o incentivou a candidatar-se à Presidência da República. A revista Mundial relata que foram cerca de 20 as pessoas que nessa altura lhe entregaram um abaixo-assinado para que se candidatasse.

Nos jornais iam-se adivinhando nomes para as eleições. A 3 de maio, o Diário de Lisboa dizia que Ramalho Eanes era o candidato militar mais certo a apresentar pelo Conselho da Revolução. Dois dias depois já se avançava com outras possibilidades: o então Presidente, general Costa Gomes, e o primeiro-ministro, almirante Pinheiro de Azevedo, e um candidato civil, Henrique de Barros. Só no final dessa semana apareceria uma notícia dando Otelo como uma possibilidade.

No seu livro, Otelo explicou que sentia “necessidade de agir”. “Os dirigentes do PRP (Partido Revolucionário do Proletariado) são os únicos a concordarem com as minhas análises”, concluiu, explicando que este partido apoiava a criação de uma organização de trabalhadores capaz de resistir a um golpe fascista, se ele viesse a desencadear-se. O PRP nascera ainda na clandestinidade, em 1973, fundado pela médica Isabel do Carmo e pelo seu companheiro, Carlos Antunes, ambos dissidentes do PCP. Os dois tinham primeiro criado as Brigadas Revolucionárias, um grupo armado que, defendeu Isabel do Carmo ao Observador, terá ajudado a criar um clima que influenciou a “queda da ditadura” e que à data fez vários assaltos a bancos e atentados à bomba.

“Para além das Brigadas Revolucionárias — as pessoas que entravam em ação — havia muitos que nos apoiavam e que tinham o mesmo sentido político do que nós. Havia necessidade de criar um partido, de encontrar toda a gente, e também de ter uma linha programática. Nunca gastámos muito tempo em reuniões a falar sobre ideologia, éramos mesmo um bocadinho contra isso, era um hábito dos dissidentes do Partido Comunista perderem o seu tempo a fazer papéis, mas de qualquer maneira havia necessidade de nos organizarmos”
Isabel do Carmo, fundadora das BR e do PRP

Isabel do Carmo e Carlos Antunes defendiam que, antes da revolução, se falava demais e que era preciso realizar ações armadas que pudessem abalar o sistema. Mais tarde, perceberam que precisavam de um partido — seria a componente política das BR. “Para além das Brigadas Revolucionárias — as pessoas que entravam em ação — havia muitos que nos apoiavam e que tinham o mesmo sentido político do que nós. Havia necessidade de criar um partido, de encontrar toda a gente, e também de ter uma linha programática. Nunca gastámos muito tempo em reuniões a falar sobre ideologia, éramos mesmo um bocadinho contra isso, era um hábito dos dissidentes do Partido Comunista perderem o seu tempo a fazer papéis, mas de qualquer maneira havia necessidade de nos organizarmos”, disse Isabel do Carmo ao Observador.

O ex-presidente da republica, Antonio Ramalho Eanes, chega ao tribunal de Monsanto para prestar declarações no processo das FP-25, em Lisboa a 3 de Outubro de 1986. GUILHERME VENÂNCIO/LUSA

O ex-Presidente da República, António Ramalho Eanes, a chegar ao tribunal de Monsanto para prestar declarações no processo das FP-25, em Lisboa a 3 de Outubro de 1986

GUILHERME VENÂNCIO/LUSA

A 24 de maio de 1976, já Ramalho Eanes tinha anunciado a sua candidatura à Presidência da República, o Diário de Lisboa dizia que Costa Gomes podia ainda avançar. A candidatura de Otelo Saraiva de Carvalho aparecia resumida em dois parágrafos do artigo, para explicar que o major ainda estava à procura de apoio para reunir assinaturas. O anúncio da sua candidatura tinha sido capa do jornal “Página Um”, dirigido por Isabel do Carmo, a 8 de maio, com o título “Com o apoio popular Otelo é candidato”.

Cinco dias depois, a 29 de maio, o vespertino Diário de Lisboa noticiava a lista final de candidatos: o então major Otelo Saraiva de Carvalho, apoiado pelo PRP e também pela UDP, MES e FSP (partidos que formavam os Grupos Dinamizadores de Unidade Popular – GDUP); Octávio Pato, candidato e dirigente do PCP; general Ramalho Eanes, apoiado por PS, PPD, CDS e PCTP; e o almirante Pinheiro de Azevedo, candidato independente, que em plena campanha eleitoral teve de ser internado por causa de um problema cardíaco.

O Diário de Lisboa informava a 7 de junho que mais de mil pessoas tinham esperado Otelo no Parque Eduardo VII, em Lisboa, numa ação de campanha

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O Diário de Lisboa informava a 7 de junho que mais de mil pessoas tinham esperado Otelo no Parque Eduardo VII, em Lisboa, numa ação de campanha. Num debate com Eanes, Pinheiro Azevedo e Octávio Pato na RTP, Otelo, sentado mais à esquerda e com o candidato comunista à sua direita, era visto como uma “figura romântica”, como definiu o moderador, Joaquim Letria. Uma das perguntas que lhe foi feita: “Como poria uma democracia de base a funcionar?”. “Cinco anos de mandato não seriam suficientes para pôr em prática uma democracia direta”, respondeu Otelo, que considerava que primeiro era necessário estabelecer organizações populares de base. “A minha ideia é que a solidificação da democracia significa poder do povo, embora nos últimos anos os burgueses tenham virado o sentido deste termo”, acusou. Quando lhe perguntaram por que se tinha candidatado, respondeu que o grupo que o abordou à porta da Aula Magna se multiplicou em “milhares de assinaturas” que lhe foram chegando depois.

Os resultados eleitorais foram conhecidos a 27 de junho. Eanes venceu com 61,5%, Otelo ficou em segundo lugar com 16,4% e o almirante Pinheiro de Azevedo em terceiro, com 14%. O único civil, Octávio Pato, ficou em quarto lugar com 7,5%.

Otelo perde as eleições e cria o Projeto Global

Otelo perdeu as eleições, mas manteve-se em reuniões com a esquerda revolucionária. Segundo ele, nesse verão é mesmo contactado pelo PRP e continuam “empenhados em consciencializar o povo para a luta pelos interesses da classe trabalhadora”.

Em diversas reuniões à porta fechada, como descreveu no seu livro, começou a falar-se na necessidade de constituir um movimento frentista que congregasse as diferentes formações partidárias da esquerda revolucionária. O ideal, concluiu, seria criar uma espécie de Exército Popular Revolucionário: uma força secreta, capaz de pegar em armas caso fosse necessário. Propôs então que se criasse uma Organização Política de Massas (OPM) legalizada enquanto associação ou partido político.

“Consubstancio assim uma organização complexa que designei por ‘Projecto Global’”, escreveu. O Projeto Global teria três componentes: uma aberta, que seria uma associação política, e duas fechadas – uma formada por civis (a Estrutura Civil Armada – ECA) e outra por militares (Quartéis), ambas destinadas a implementar o já referido Exército Popular Revolucionário. Segundo o Ministério Público, apoiado em documentos apreendidos a uma série de elementos da organização, a ECA transformar-se-ia nas FP-25.

A 14 de janeiro de 1978, Otelo presidiu a uma reunião com 150 delegados de todo o país no anfiteatro da Faculdade de Ciências de Lisboa. A esta reunião terão assistido José Manuel Rosa Barradas e José Alexandre Figueira, os dois dissidentes que seriam detidos cinco anos depois no Jardim do Carregal, no Porto, e que acabariam por contar à Polícia Judiciária como funcionavam as FP-25, gozando do estatuto de “arrependidos”.

Neste encontro foi aprovada a formação da OUT – Organização Unitária de Trabalhadores. Mas, meses depois, seriam detidos mais de vinte dirigentes e militantes do PRP que terão baleado um elemento da Polícia Judiciária, também no Porto, durante um assalto. Entre os detidos estavam Isabel do Carmo e Carlos Antunes, acusados depois da autoria moral de vários crimes feitos pelo grupo mas não do homicídio. O casal chegou a estar preso preventivamente durante quatro anos, enquanto decorria o processo que acabaria por ser alvo de uma amnistia. Os dois foram, porém, absolvidos.

Enquanto os dois estavam presos, José Plácido, militante que decidira abandonar o PRP, foi assassinado. Na cadeia, Isabel do Carmo e Carlos Antunes ainda foram interrogados para saber se tinham sido eles a ordenar o crime, mas o casal não só negou qualquer envolvimento como criticou publicamente o crime. “Fomos altamente prejudicados por essa ação e éramos completamente contra”, diz Isabel do Carmo, que estava em julgamento nessa altura. Ela e Carlos Antunes acabaram por ser expulsos do partido, mesmo estando ainda presos.

A 14 de janeiro de 1978, Otelo presidiu a uma reunião com 150 delegados de todo o país no anfiteatro da Faculdade de Ciências de Lisboa. A esta reunião terão assistido José Manuel Rosa Barradas e José Alexandre Figueira, os dois dissidentes que seriam detidos cinco anos depois no Jardim do Carregal, no Porto, e que acabariam por contar à Polícia Judiciária como funcionavam as FP-25, gozando do estatuto de “arrependidos”

“Na sequência desse assassinato, essas pessoas vêm a formar, uns três meses depois, as FP-25, que foi um movimento que incluiu pessoas oriundas do PRP, da área maoísta e também da área da LUAR”, resume a médica, mais de 40 anos depois, ao Observador.

Otelo Saraiva de Carvalho, que recusou sempre que este grupo estivesse ligado à organização que fundou, escreveu que o grupo de dissidentes do PRP acabaria por ir ter com ele propondo-lhe que dentro da OUT se criasse mais uma componente no seu Projeto Global: chamar-se-ia Óscar, e era composta exclusivamente por Otelo, funcionando como aglutinadora de todas as ramificações da organização.

A OUT começou então a desenvolver-se como uma associação política, com apoios vindos do exterior. Em fevereiro de 1979 dinamizou mesmo um encontro internacional de organizações de esquerda revolucionária. Meses depois a organização aprovou a criação da JAR (Juventude Autónoma Revolucionária), da CNASPEL (Comissão Nacional de Apoio e Solidariedade aos Povos em Luta) e anunciou, numa conferência de imprensa a 30 de janeiro de 1980, a intenção de criar a FUP – Força de Unidade Popular.

No Diário de Lisboa do dia seguinte, na primeira página, lia-se: “Depois da GDUP, a FUP”. Otelo explicava como pretendia fazer da FUP “um amplo movimento orgânico de massas”, capaz de vencer a direita. Ele seria o responsável pelo partido e na gestão dos fundos estaria Mouta Liz, que também foi detido por integrar as FP-25. A FUP viria a ser legalizada em finais de julho, a tempo de apoiar Otelo na sua segunda candidatura em eleições presidenciais, em dezembro de 1980.

Por esta altura, já as FP-25 se tinham apresentado – em abril – ao país, com o lançamento de petardos e um manifesto em defesa do povo trabalhador, reivindicando depois uma série de atentados.

“Na sequência desse assassinato, essas pessoas vêm a formar, uns três meses depois, as FP-25, que foi um movimento que incluiu pessoas oriundas do PRP, da área maoísta e também da área da LUAR”
Isabel do Carmo, fundadora das BR e do PRP

Otelo, no seu livro, e mesmo depois, tentou sempre demarcar-se deste grupo alegando que nada tinha a ver com a FUP e referindo que as FP-25 tinham sim nascido de “divergências insanáveis” entre as várias formações partidárias que deram origem à FUP — quando se “legaliza como partido para efeitos eleitorais apenas a integram, além de independentes oriundos da FSP (Frente Socialista Popular, originada numa cisão do PS liderada por Manuel Serra) e outros, a OUT e o PRP”.

A FUP serviu assim de apoio a Otelo para concorrer às presidenciais no final desse ano de 1980. Essas eleições seriam disputadas por Ramalho Eanes, que se recandidatou, e pelo também general Soares Carneiro, apoiado pela Aliança Democrática (AD), formada por PSD, CDS e PPM e liderada por Francisco Sá Carneiro — que morreria em Camarate na fase final da campanha. Eanes foi reeleito Presidente da República com 56,4%, ficando Soares Carneiro em segundo com 40,2%. Otelo teve uma enorme derrota, conseguindo apenas 1,4% dos votos.

Juiz Martinho Almeida Cruz calhou em sorteio. Todos ficaram apreensivos por ser ele

Entre 1980 e 1984, somaram-se dezenas de atentados reivindicados pelas FP-25, dos quais resultaram nove mortos e vários feridos. A escalada de violência foi tal que o próprio governo acabou a pressionar a PJ a agir. No início, as investigações da Judiciária eram feitas de forma isolada — só a partir de 1983 é que as autoridades começaram a olhar para as FP-25 como um todo. Começou então a preparar-se a operação de desmantelamento da organização, que acabou por ter de ser antecipada após surgirem informações de que os terroristas se preparavam para escalar a violência e começar a raptar pessoas.

Quando a operação Orion foi lançada, a 19 de junho de 1984, no edifício da Rua Gomes Freire era um entra e sai de pessoas. Nenhuma delas era ainda o juiz Martinho Almeida Cruz — tiveram de ir buscá-lo à embaixada de França, onde estava a fazer um exame na esperança de suspender as suas funções na magistratura e ir para aquele país estudar.

Aos 37 anos, Martinho Almeida Cruz estava separado da mulher, com quem tinha um filho, e a sua nova companheira vivia no Porto. A mãe, que morava em Coimbra, não se importava de lhe pagar as despesas caso mudasse de vida. Aliás, a entrada na magistratura nunca tinha sido sequer uma ambição sua. Martinho Almeida Cruz era um homem que adorava a noite, gostava de longos convívios, de conduzir bons carros, de velejar e, até, de pilotar pequenos aviões. E queria muito sair de Portugal.

"'O processo? O que será isto? O processo?' Abro a porta, entramos… Eu viro a primeira página e vejo uma fotografia enorme do Otelo. 'Olha que música! Está bem, vamos ver isto.' Sentei-me e estudei a coisa”
Martinho Almeida Cruz, juiz

Naquele dia, Almeida Cruz ficou surpreendido com o aparato com que se deparou. Ao chegar ao gabinete sentiu vários olhares estranhos sobre si. À sua espera estava o coordenador António Coutinho, que lhe disse: “Oh, sô doutor, desculpe lá mas tomei a liberdade de fechar o seu gabinete à chave porque o processo está ali”.

‘O processo? O que será isto? O processo?’ Abro a porta, entramos… Eu viro a primeira página e vejo uma fotografia enorme do Otelo. ‘Olha que música! Está bem, vamos ver isto.’ Sentei-me e estudei a coisa”, lembra ao Observador, em conversa numa esplanada no centro de Setúbal.

Começou a folhear o processo e viu as declarações dos dois arguidos que tinham sido detidos no Porto e que se tinham tornado fundamentais para a investigação policial. Percebeu que havia cerca de meia centena de suspeitos apanhados e foi aí que estranhou: os cinco cabecilhas não tinham sido detidos. Além de Otelo Saraiva de Carvalho, havia também o funcionário do Banco de Portugal José Mouta Liz, Pedro Goulart, Diniz Machado e José Linhas. “Evidentemente que percebi logo porquê. Não sei se perguntei ao Coutinho, mas creio que falei com o Dias Borges, o então diretor da DCCB: ‘Então, vocês deixaram a batata quente para mim?’”.

Os códigos nos papéis de Otelo e o dinheiro de países amigos

Otelo só voltaria à sala do quarto andar da Gomes Freire a 16 de julho — 26 dias depois de lhe terem comunicado que ficava preso em Caxias. Nesse período de tempo, foi proibido de manter qualquer contacto com o exterior porque os responsáveis pela investigação temiam que falasse com outros arguidos — a única visita que podia receber era a do seu advogado, embora apenas por tempo limitado e sempre na presença de alguém da PJ. Uma imposição de Martinho Almeida Cruz que à data estava prevista na lei, e que ele decidiu clarificar num despacho em resposta a vários requerimentos por parte da defesa dos arguidos — entre eles uma que queria ver o filho com menos de 2 anos — e de um apelo do próprio bastonário da Ordem dos Advogados, António Osório de Castro.

“Para desarticular a organização dentro da cadeia restou-me apenas uma solução, a do isolamento completo de todos os arguidos”, viria a justificar o juiz nas suas memórias.

Segundo as memórias que o juiz Martinho Almeida Cruz gravou após o processo, o Otelo que lhe apareceu naquele segundo encontro era um homem “de boa compleição física, um atleta, um homem do exército que, em princípio, tinha o corpo em dia”. O mesmo não podia dizer de si próprio. O magistrado, que sempre se descreveu como um bon vivant, considerava-se um homem “frágil”: “Não direi defeituoso, mas quase um handicapé em relação a homens que praticam desporto habitualmente”

Numa entrevista conjunta que deu aos jornais Expresso, Semanário e O Jornal dias depois dessa decisão, o magistrado explicava que estava a cumprir a legislação nacional e internacional — embora tenha admitido que a lei não tinha sido bem aplicada. É que, nos primeiros contactos, o inspetor da PJ ouvia a conversa entre defensor e arguido e o que dizia a lei é que devia limitar-se a estar presente na sala, sem ouvir a conversa sigilosa. Ainda nessa entrevista, o magistrado — que recusou ser fotografado — clarificou também que os arguidos presos, entre eles Otelo, estavam indiciados “somente pelo crime de participarem e dirigirem uma organização terrorista, não estando em causa, neste processo, o seu eventual envolvimento nos crimes normalmente atribuídos às FP-25”.

Nestes dias, o Ministério Público, a PJ e o próprio juiz de instrução desdobravam-se em interrogatórios e na recolha de prova. Localizavam sítios onde estavam escondidas grandes quantidades de explosivos, locais que serviam para reuniões secretas e outros onde tinham sido construídos cárceres, que deveriam passar a ser usados em breve naquilo que a organização chamava de “engarrafamentos” — que consistiam em raptar pessoas, colocá-las em cárceres privados e depois pedir um resgate.

Segundo as memórias que o juiz Martinho Almeida Cruz gravou após o processo, o Otelo que lhe apareceu naquele segundo encontro era um homem “de boa compleição física, um atleta, um homem do exército que, em princípio, tinha o corpo em dia”. O mesmo não podia dizer de si próprio. O magistrado, que sempre se descreveu como um bon vivant, considerava-se um homem “frágil”: “Não direi defeituoso, mas quase um handicapé em relação a homens que praticam desporto habitualmente”.

O juiz deu duas hipóteses a Otelo: ou o interrogatório era dividido em várias partes ou seria feito de “rajada”. Na esperança de ainda ir de férias com a família, Otelo aceitou sujeitar-se a um interrogatório intenso. E era mesmo isso que o magistrado pretendia — achava que assim podia enfraquecê-lo. Como estava habituado a passar muitas noites sem ir à cama, não só pelo trabalho mas também pelo seu gosto pela vida noturna, Almeida Cruz conhecia a sua resistência e queria aproveitar as fragilidades de Otelo, apanhando-o em contradição quando estivesse mais cansado.

“Creio que muito mais tarde se percebeu que o primeiro réu confesso das FP-25, como aliás declarei publicamente, foi o próprio Otelo”
Martinho Almeida Cruz, juiz

Nas instalações da Rua Gomes Freire estava agora um advogado chamado por Otelo. A escolha desse advogado foi escutada pela Polícia Judiciária logo após a sua detenção, quando, numa conversa telefónica com a mulher a partir da cadeia, explicou que não ia ficar com o advogado que já o tinha representando noutros processos, mas sim com Romeu Francês (que também chegou a ser investigado por alegadas ligações à organização). Na sala, onde havia duas mesas, estavam ainda a procuradora do Ministério Público, Cândida Almeida, o coordenador da PJ que sabia localizar todos os documentos da investigação, António Coutinho, e uma funcionária que registava na sua máquina de escrever tudo o que era dito.

Os advogados Romeu Francês, ao centro, e Salgado Zenha à direita, durante o julgamento das FP-25, em Lisboa, a 7 de outubro de 1985. ACACIO FRANCO/LUSA

Os advogados Romeu Francês (que representava Otelo), ao centro, e Salgado Zenha à direita, durante o julgamento das FP-25, em Lisboa, a 7 de outubro de 1985

ACACIO FRANCO/LUSA

Houve algo que o juiz considerou “bizarro”: Otelo apontava todas as suas respostas num papel. Neste dia, as perguntas focaram-se nos cadernos apreendidos a Otelo onde eram descritas algumas reuniões que os arguidos que estavam a colaborar com a PJ diziam ter presenciado.

“Creio que muito mais tarde se percebeu que o primeiro réu confesso das FP-25, como aliás declarei publicamente, foi o próprio Otelo”, escreveu o juiz, referindo-se aos cadernos e aos bilhetes que Otelo guardava e que lhe foram apreendidos e que tão bem revelavam a estrutura da organização e o que ali se discutia. Perante o juiz, porém, Otelo não conseguia dar explicações tão claras, entrando mesmo em contradição. “Não havia nada que não tivesse resposta, mas o normal era no mínimo ter três, quatro, cinco ou seis, muitas delas evasivas”, escreveu o juiz.

No caderno de capa verde, que depois de transcrito pela PJ passou a ocupar 98 folhas do processo, estavam apontamentos de reuniões ocorridas entre 5 de fevereiro de 1982 e 18 de março de 1984. Já as 20 folhas do caderno de capa preta, também transcrito pelas autoridades, foram escritas entre 23 de março e 4 de junho de 1984 — o último registo foi feito poucos dias antes da prisão. Otelo assumiu ser o autor destes cadernos, mas insistiu sempre que as reuniões ali descritas eram da Comissão Política da FUP e nada tinham a ver com as FP-25. Uma tese rebatida pelo Ministério Público, uma vez que encontrou discussões, reuniões e informações correspondentes, ou mesmo complementares, a outras apreendidas a operacionais das FP.

Cadernos de Otelo Saraiva de Carvalho apreendidos pela polícia. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR Cadernos de Otelo Saraiva de Carvalho apreendidos pela polícia. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR Cadernos de Otelo Saraiva de Carvalho apreendidos pela polícia. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Documento 16. O Papel da Luta Armada — Violência de Massas. Manuscritos de Otelo Saraiva de Carvalho apreendidos pela Polícia Judiciária

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

No caderno de capa verde há relatos de várias reuniões da organização. Em algumas delas discutiu-se os moldes de participação naquela que foi a primeira greve geral ocorrida em democracia, a 12 de fevereiro de 1982, contra o pacote laboral proposto pelo governo da Aliança Democrática. Havia ideias radicais que iam para lá da mera mobilização de trabalhadores: discutiram-se propostas para cortar a luz na cidade de Lisboa e a criação de um cordão que impedisse os fura-greves de passarem de carro para a capital. “O que fazer para lá da greve geral? Temos que desestabilizar mais a situação, criar uma guerra”, sugeria outro elemento. “Não há desestabilização do regime porque a burguesia ainda não encontrou um projeto unificado”, atirava outro.

Projeto Global: versão do tribunal

FUP

  1. OUT

    1. JAR

    2. CNASPEL

  2. ECA

  3. Quartéis

  4. Óscar

Para o tribunal não restaram dúvidas de que a ECA era a componente armada do Projeto Global de Otelo e que deu origem às FP-25, a componente ilegal da FUP à semelhança da ETA. Clique para conhecer cada uma das componentes do Projeto Global.

Projeto Global: versão de Otelo

OPM

  1. OUT

    1. FUP

    2. JAR

    3. CNASPEL

  2. ECA

  3. Quartéis

  4. Óscar

Otelo Saraiva de Carvalho manteve sempre em tribunal que o seu Projeto Global tinha um partido político: a FUP, e uma componente, a ECA, que viria a ser um Exército Revolucionário. Clique para conhecer cada uma das componentes do Projeto Global.

Algumas intervenções explicavam a visão da organização em relação ao poder político vigente e o referido objetivo de o “desestabilizar”, como viriam a fazer as FP-25. Estas informações foram suficientes para que o Ministério Público percebesse que aqueles diários de Otelo mais não eram do que o planeamento de uma organização terrorista.

Nas reuniões surgiam opiniões divergentes quanto ao recurso à violência: uns consideravam que não devia ser discutida ou planeada; outros achavam que sim. Mouta Liz foi claro numa das suas intervenções: “Qualquer táctica a definir por nós passa hoje obrigatoriamente pela questão da violência. Há que criar condições de desconfiança que impeçam o investimento, quer interno quer externo. Por outro lado, a corrosão a nível interno pode facilitar n/ intervenção a nível violência. A TÁCTICA NOSSA TEM QUE RESULTAR DA INTERVENÇÃO LEGAL ARTICULADA COM A VIOLÊNCIA”, lê-se no caderno de Otelo.

Mouta Liz, cujas intervenções nas reuniões são várias vezes referidas nos cadernos precedidos das letras “ML”, só seria detido meses depois da Operação Orion. Era funcionário do Banco de Portugal e um dos braços direitos de Otelo na organização — aliás, os dois e o advogado Romeu Francês viriam a criar uma empresa juntos já depois do processo. A Roteliz, como explicaria mais tarde Otelo, dedicava-se à importação e exportação de bens alimentares, mas chegou a pedir uma autorização para poder negociar diamantes em Angola. Ainda hoje está ativa com negócios naquele país, mas, explicou o próprio ao Observador, há anos que está na posse apenas da família Mouta Liz.

Para o juiz, Mouta Liz era o único que dentro do Projeto Global “tinha intervenções com o mínimo de consistência teórica”. “Todas as restantes intervenções eram um amontoado de impossibilidades. Lidas de fio a pavio, pode compreender-se que o terrorismo, do tipo que se praticava, embora selvagem como é evidente, era um terrorismo tipicamente lusitano, tão tacanho de objetivos”, lê-se nas transcrições das memórias do juiz.

Cadernos de Otelo Saraiva de Carvalho apreendidos pela polícia. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Documentos apreendidos a Otelo Saraiva de Carvalho e que resumem algumas ideias do Conclave.
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Cadernos de Otelo Saraiva de Carvalho apreendidos pela polícia. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Otelo fala numa organização à semelhança da ETA, mas "à portuguesa"
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Cadernos de Otelo Saraiva de Carvalho apreendidos pela polícia. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Otelo faz um resumo de como devem ser feitas as ações de violência
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Cadernos de Otelo Saraiva de Carvalho apreendidos pela polícia. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Estes documentos foram considerados essenciais na investigação
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O mesmo considerou o próprio Otelo numa entrevista que veio a dar em janeiro de 1998, já depois de condenado, ao jornal universitário da Faculdade de Direito de Lisboa: “O terrorismo das FP é um terrorismo perfeitamente caseiro. Aquilo não é terrorismo porque para haver terrorismo é necessário que a generalidade dos cidadãos tenha medo, como na Argélia. Têm que ter medo, saber que um dia podem ser degolados e verem-se sem cabeça”. Para Otelo, as operações das FP-25, nas quais recusa ter tido alguma responsabilidade, “foram ações perfeitamente selecionadas” para empresários com salários em atraso ou que declaravam falência “para depois sacarem a massa”. “Como a generalidade dos portugueses sabe que não está nesta situação, sabe que as FP, a matarem alguém, será um gajo com aquelas características”, argumentou.

Os cadernos de Otelo estão recheados de siglas que não são muito difíceis de descodificar. Ao juiz Almeida Cruz, Otelo começou por dar a estas letras significados completamente diferentes. “Respostas que eram de um ridículo perfeitamente atroz”, lembra o juiz ao Observador. A certa altura, conta, o seu advogado Romeu Francês fazia apenas uma figura de “corpo presente”, enquanto Otelo se defendia como podia, “de uma forma um bocado canhestra”.

“Aquilo era bastante claro e as siglas estavam de tal modo evidentes que não interpretámos duas ou três porque provavelmente ele se enganou a escrever, porque de facto estava lá tudo”. Otelo Saraiva de Carvalho, por exemplo, era “OSC”, Pedro Goulart era “PG”. “Depois das dezenas de detenções não era difícil atribuir os nomes”, lembra o juiz. “De tal modo que os companheiros, ao saberem o que estava naqueles cadernos, se viraram contra ele e foi quase preciso montar uma segurança para o proteger. Nesta altura ele estava na prisão militar de Caxias, mas de qualquer modo tomaram-se algumas medidas para que a coisa fosse mais segura”, disse ao Observador Martinho Almeida Cruz.

“O terrorismo das FP é um terrorismo perfeitamente caseiro. Aquilo não é terrorismo porque para haver terrorismo é necessário que a generalidade dos cidadãos tenha medo, como na Argélia. Têm que ter medo, saber que um dia podem ser degolados e verem-se sem cabeça”
Otelo Saraiva de Carvalho, em entrevista em 1998

Os cadernos de Otelo estavam escritos pelo seu punho, cheios de siglas e de informações retiradas de contexto que seriam tratadas em reuniões da organização — era preciso que Otelo descodificasse todo o seu conteúdo. Mas as explicações foram vagas.

No dia daquele segundo encontro entre o juiz e Otelo, o suspeito foi também confrontado com uma lista de matrículas que correspondiam a carros da Polícia Judiciária e que foi encontrada no material apreendido em sua casa. Segundo a transcrição do seu depoimento, que consta do processo consultado pelo Observador, um ano antes de ser detido alguém o avisara que a Direção Central de Combate ao Banditismo da PJ suspeitava da sua ligação às FP-25. Otelo tinha esta lista de matrículas para saber se estava a ser seguido, argumentou. Para o Ministério Público, porém, este documento teria servido, sim, aos operacionais da organização que faziam assaltos.

Neste segundo encontro, o magistrado perguntou também a Otelo o que significavam as siglas OPM, DIMA e DPM, que tantas vezes apareciam ao longo dos seus cadernos, mas Otelo disse que cabia aos dirigentes do partido esclarecê-las. Escudou-se sempre na “confidencialidade” da informação partidária. A PJ acabou por descobrir que OPM era “Organização Política de Massas”, DIMA era “Divisão de Intervenção e Militarização”, e DPM a “Direção Política Militar” (ver organograma).

Quando conduzia os interrogatórios a Otelo, Martinho Almeida Cruz tinha uma estratégia. Começava por questões de importância menor e chegava a fazer conversas paralelas sobre marxismo, a situação do país e política em geral, aproveitando a esperança que Otelo acalentava de que ainda poderia sair em liberdade. “Teve algum azar com isso”, considera o magistrado.

À medida que o interrogatório avançava, o juiz começava a perguntar a Otelo pelas contas da organização. A Polícia Judiciária suspeitava que ela era financiada pelos assaltos a bancos. Esse dinheiro permitia pagar aos operacionais e até às suas famílias, que muitas vezes tinham de viver na clandestinidade.

Martinho Almeida Cruz fez-lhe primeiro perguntas sobre uma empresa, a Import Export, cujos movimentos financeiros se cruzavam com os da FUP. Otelo reconheceu que a empresa fora criada em 1978, ainda no tempo da OUT, quando era dirigente da organização, para pagar as despesas da FUP. Mas como, por vezes, nem sequer tinha dinheiro para os salários, acabava por ser a FUP a financiar a empresa — uma vez, o partido fez uma transferência de 180 mil escudos. O tribunal viria a concluir que a empresa tinha uma contabilidade paralela para ocultar o dinheiro que viria dos crimes cometidos pelos operacionais das FP-25.

As autoridades também apreenderam cheques que andaram entre as contas do próprio Otelo e da FUP, às vezes de forma indireta. Entre esses cheques estavam dois assinados pelo próprio Otelo de uma conta em nome da FUP no Credit France Portugais de Lisboa: um no valor de 300 mil escudos e outro no valor de 200 mil escudos, passados à ordem de uma empresa de construção chamada Sadoset (este total de 500 mil escudos corresponderia hoje a 27,5 mil euros). Detalhe: essa empresa estava a construir uma casa de Otelo, na zona da Arrábida.

Otelo justificou ao juiz que esse valor era uma dívida que o partido tinha para consigo, na sequência de um empréstimo de mil contos em dinheiro que lhe fez em 1980. E de onde viera esse dinheiro? O militar explicou que tinha sido um presente de Natal de um diplomata de um país que não refere, mas que vivia em Madrid. As notas, em dólares americanos, até lhe tinham sido entregues embrulhadas. Segundo esta versão, os cheques que saíram da organização diretamente para a empresa que estava a fazer a sua casa mais não foram do que o saldar de uma dívida. O juiz não ficou convencido.

Otelo recusou sempre dizer que países tinham feito donativos à FUP. Mas usou estas contribuições para justificar a existência de uma conta na Suíça — que estava em nome de uma militante “de confiança” da FUP, Maria da Luz Santos —, que serviria para receber apoios financeiros no estrangeiro. Segundo Otelo, a conta estava em nome dessa militante, assim como vários outros bens do partido estavam em nome de outros, para protegê-los de “potenciais ataques policiais”.

Essa conta na Union des Banques Suisses, em Zurique, destinava-se a “depósitos vindos de países amigos, os quais impunham que os depósitos fossem efectuados em bancos suíços”, lê-se no seu depoimento. Apesar do silêncio de Otelo, o Ministério Público encontrou nos documentos da organização referências à Líbia, Argélia, Moçambique, País Basco e a alguns países árabes. Na entrevista, anos depois, à revista da Faculdade de Direito, Otelo admitiu ter estado no Iraque com Saddam Hussein em 1980 porque este era um dos países que ajudava financeiramente a FUP. Recebia também fundos da Argélia e da Líbia. Aliás, em 1983, tinha mesmo estado várias vezes com o líder líbio Muammar Kadafi.

Libyan Leader Qaddafi in Tent in Syrtes Desert

O líder líbio Muammar al-Qaddafi e alguns dos seus guarda-costas numa tenda no deserto de Syrtes na Líbia, em 1973. Otelo assumiu ter apoio líbio

Genevieve Chauvel/Sygma/Sygma via Getty Images)

Martinho Almeida Cruz e o coordenador da Polícia Judiciária ainda viajaram até à Suíça, mas não encontraram grandes valores depositados, muito menos com origem em países terceiros. A ideia com que ficaram foi a de que a conta serviria para o futuro.

O Ministério Público, em alegações finais já na fase de julgamento, viria a concluir que, de facto, a organização vivia em permanente rutura financeira, tantas eram as despesas que tinha. Segundo a contabilidade do Ministério Público, entre 1980 e 1984 entraram nas contas do Projeto Global 120 mil contos apenas, quase tanto como os 108 mil contos que a organização arrecadou num só assalto em fevereiro de 1984, antes das detenções. Um relatório apreendido à organização mostrava que, depois do assalto dos 108 mil contos, não se pagaram apenas dívidas como, na perspetiva do Ministério Público, até se esbanjou dinheiro. Aliás, numa reunião ocorrida a 25 de fevereiro de 1984, um dos participantes disse mesmo: “Daqui a pouco só gerimos empresas e não definimos políticas”.

Na tentativa de apanhar Otelo mais cansado — e, por isso, menos atento ao que dizia —, o juiz insistiu nas siglas referidas nos seus cadernos. Otelo aceitou explicar que CLCR era “Componente de Luta Contra a Repressão”, mas recusou revelar o significado da sigla DPM, insistindo naquilo que dizia ser a confidencialidade do partido. Lembrou ainda que a FUP era uma das componentes do Projeto Global e que as outras três estavam  abrangidas pela confidencialidade.

Já no final deste interrogatório, que acabou tarde, Otelo ainda convidou o juiz e a magistrada do Ministério Público para jantarem com ele. Mas ambos declinaram.

O dia em que o juiz decide mudar o interrogatório para Caxias

Ia ser mais um dia de interrogatórios no gabinete de Martinho Almeida Cruz e, lá dentro, ouviam-se já as sirenes e o aparato policial que envolvia a chegada de Otelo, vindo da cadeia de Caxias. Otelo era escoltado por um grupo de guardas prisionais que, em colaboração com a PSP, chegaram mesmo a fechar algumas ruas para a sua passagem. O juiz de instrução estava farto de ver a cidade virada ao contrário só para ouvir Otelo e, por isso, tomou uma decisão: o militar deixaria de ir ao seu gabinete e ele e a procuradora do Ministério Público passariam a deslocar-se ao forte-prisão de Caxias. Nessa manhã o interrogatório prosseguiu, mas à tarde já continuou em Caxias.

O juiz pensava que iria conseguir vencer o militar pelo cansaço e que Otelo ia acabar por falar, como tinham feito outros arguidos no processo, um deles com quem trabalhava de perto na organização, João Macedo Correia.

Neste terceiro encontro com o juiz, e o segundo de um efetivo interrogatório, Otelo apareceu “com ar bastante fresco”, recorda o juiz. Vinha sempre fardado de verde, com as suas galões de tenente-coronel, “com um à vontade perfeitamente notável”.

Antes da pausa para o almoço e do regresso a Caxias, Martinho Almeida Cruz ainda fez algumas perguntas, como se percebe pelas transcrições dos interrogatórios que constam no processo, arquivado nas catacumbas do Campus de Justiça, em Lisboa, e composto por 65 volumes e cerca de 90 apensos. Pegou na página 20 do caderno de apontamentos de capa preta de Otelo, que se refere a uma reunião do Comité Central da OUT ocorrida a 13 de março de 1982, e onde estiveram presentes 31 dirigentes de norte a sul do país.

Nessa reunião discutia-se se a FUP devia ser uma organização autónoma da OUT ou se devia substituí-la. As intervenções demonstram como os pontos de vista de cada um divergiam dentro do Projeto Global: havia quem considerasse que a OUT devia acabar, outros consideravam que a FUP estava ainda num fase de pouco alcance e que só a OUT chegaria a mais trabalhadores.

A certa altura Otelo dirigiu-se a Mouta Liz e perguntou-lhe se o partido devia ser autónomo e o que era, afinal, uma organização autónoma. A resposta, transcrita por Otelo, foi que “qualquer partido que cristalize em sistema organizativo deixa de ser revolucionário”. Mouta Liz não via na FUP um “projeto m-l” [marxista-leninista] por que esta não se assumia como uma frente de massas. “Desde que não haja confronto c/ tomada de poder pelos trabalhadores, não se choca nada em estar dentro da FUP c/ camaradas que tenham ideias ≠ s. Não se pode considerar haver m-l só pelo facto de as direções coincidirem”, escreveu Otelo resumindo a sua posição.

“É concluir que um punhado de revolucionários que nem sequer apresenta divergências ideológicas e se conhecem, não conseguiram até hoje entender-se, fazendo com que o Projeto Global não se tenha firmado”, responde a certa altura “Beleza”,  que seria o arguido Fernando Fonseca, mostrando como as divergências que estiveram na origem da criação do Projeto Global se mantinham.

Otelo explicou ao juiz de instrução que esta “organização autónoma” não era mais do que o repúdio da OUT às várias “formas vanguardistas e outras teses de teor marxista-leninista tradicional em benefício de posições teóricas mais ligadas ao basismo [teses da democracia direta]”. E a tese que manteve sempre é que o seu Projeto Global pretendia uma revolução socialista após a conquista do poder político pelos trabalhadores e que isso não era crime nenhum. No entanto, também defendia o fim do parlamento, o desmantelamento da máquina do Estado e o povo armado, para assim garantir o estabelecimento de uma forma política diferente. O objetivo era que os trabalhadores construíssem uma sociedade sem classes, mas ainda não tinha chegado o momento para a insurreição armada.

As FP-25, de que sempre se demarcou publicamente, já estavam, por seu turno, um passo à frente, provocando ações que procuravam desestabilizar a sociedade, invocando a defesa dos trabalhadores contra os patrões.

O juiz aproveitou então as respostas de Otelo para lhe perguntar sobre outra proposta de que falava nos seus cadernos: a Estrutura Civil Armada (ECA), o órgão que o Ministério Público considerou ser na prática as FP-25. Mas Otelo voltou a refugiar-se na confidencialidade. Já em fase de julgamento, mais de um ano depois, acabaria por afirmar: “A OUT e a FUP jogavam numa ação serena. Sentia-se a necessidade de radicalizar as lutas, nessa circunstância a ECA tinha a missão de motivar este tipo de lutas, ir até ao sequestro dos patrões… A FUP ia até um trabalho ordeiro. Depois intervinha a ECA…”, declarou a 21 de outubro de 1985, sem nunca assumir que a ECA mais não era que as FP-25.

Outro ponto importante dos cadernos de Otelo foi a referência ao “Conclave” — uma reunião secreta que ocorreu em abril de 1984, dois meses antes da Operação Orion, na Serra da Estrela. Todos os participantes, cerca de 30, estavam encapuzados e o local da sua realização não foi divulgado fora desse círculo restrito.  Neste encontro participaram os mais altos dirigentes do Projeto Global: Otelo, Pedro Goulart, Mouta Liz, César Escumalha, Macedo Correia. O objetivo era encontrar um rumo para a organização e discutir “todos os problemas de segurança da ECA”.

A Nuno Gonçalo Poças, que escreveu o livro “Presos por um Fio”, sobre as FP-25, Otelo explicou por telefone, a 4 de dezembro de 2020, que o Conclave não foi mais do que uma reunião que os responsáveis pelo Projeto Global tiveram com os dirigentes das FP-25 para tentar convencê-los a suspenderem as ações armadas, de modo a que a FUP pudesse concorrer imaculada às legislativas de 1985.

Mas os documentos que constam no processo sobre o que se discutiu no Conclave mostram o contrário: são as próprias FP-25 a querer afastar Otelo do Projeto Global por considerarem que politicamente nada se conseguiu — como, aliás, o resultado eleitoral demonstrava —, e propondo mesmo terminar com a componente Óscar. Deste encontro acabou por sair um documento que estabelecia regras para as ações armadas e para a forma como os operacionais deveriam decidir, por exemplo, se atiravam a matar ou apenas para as pernas dos seus alvos. Nos seus apontamentos, Otelo classifica como “Excelente” esse documento. E escreveu: “Contento-me com o perfil dos In a abater”. O Ministério Público concluiu que “In” seria a abreviatura de “inimigos”, como aliás mostram os documentos que o Observador consultou.

À entrada do forte de Caxias, as apertadas medidas de segurança acabariam por causar alguma confusão entre os militares e os polícias que faziam a segurança pessoal dos magistrados desde o dia em que lhes foi atribuído o processo. “Gerou algumas situações menos agradáveis”, lembra o juiz nas suas memórias.

Otelo teve de explicar outra expressão que escrevera nos seus cadernos: “Fazer juiz”. Para o Ministério Público, que cruzou esta informação com outra encontrada na sede da FUP, esta frase significava uma sentença de morte para um magistrado. Mas Otelo não perderia a calma ao dar a sua interpretação: podia ser uma referência a uma convocação do tribunal ou mesmo à ideia de fazer um tribunal no seio da organização, argumentou

Resolvidos esses problemas, o juiz e os seus seguranças subiram as escadas do forte e viraram à esquerda — a sala disponibilizada para o interrogatório ficava logo ali. Tinha duas portas, uma secretária grande e outra mais pequena ao lado, e uma cadeira para cada um dos participantes. Na parede, nem um relógio havia e os móveis estavam vazios de livros. A 20 metros da sala havia um bar, onde interrogador e interrogado acabariam por passar várias das pausas que fizeram no interrogatório, que se prolongou noite fora. Otelo bebia sempre descafeinado, Martinho Almeida Cruz preferia Coca-Cola. E bebia muitas, a par dos cigarros, que fumava uns a seguir aos outros. Ali no bar, onde todos tratavam Otelo como militar de Abril e não como arguido, passaram algum tempo a falar de outros assuntos — nomeadamente sobre histórias da vida de Otelo, que o próprio tinha gosto em contar.

Nessa tarde, segundo os depoimentos que o Observador consultou, foram redigidos mais dois autos de interrogatórios. Otelo nunca perdeu a calma nem se exaltou e foi sempre cordial ao tentar justificar as suspeitas da Justiça. O juiz chegava a ferver perante tantas contradições e respostas vazias, mas Otelo mantinha-se muito calmo.

Já no dia anterior, o juiz tinha guardado as perguntas mais duras para o final. “Propus-me fazer uma técnica de desgaste durante todas as horas do dia”, escreve. “Passava dias inteiros a falar de questões menores e, quando a noite começava a cair, com refeições, aliás, muito curtas (…) começava a apertar um bocadinho a tarracha”, escreveu.

Aquele dia tinha sido passado a “falar de nadas”. Depois da meia-noite, “mais um aperto”. Otelo teve de explicar outra expressão que escrevera nos seus cadernos: “Fazer juiz”. Para o Ministério Público, que cruzou esta informação com outra encontrada na sede da FUP, esta frase significava uma sentença de morte para um magistrado. Mas Otelo não perderia a calma ao dar a sua interpretação: podia ser uma referência a uma convocatória do tribunal ou mesmo à ideia de fazer um tribunal no seio da organização, argumentou. E sublinhava que muitos dos seus apontamentos eram “opiniões de outros”. Para o juiz, estes argumentos não faziam qualquer sentido. “Interrogar o Otelo é um pouco como interrogar crianças”, chegou a pensar o magistrado. Isto porque ele falava muito e tinha sempre novos argumentos, alguns contrários a outros que tinha utilizado antes. O interrogatório estendeu-se pela noite dentro. E, no final, o juiz decidiu: no dia seguinte, recomeçariam bem cedo.

Otelo está com a “pele mais pálida” e começa a acusar cansaço

O juiz estava a apostar tudo na estratégia de desgaste físico de Otelo. Entre o terceiro e o quarto encontro, foi a casa praticamente só tomar banho e regressou a Caxias para continuar o interrogatório. Nessa manhã, Otelo tinha a pele mais pálida e já denotava cansaço. Almeida Cruz tentou desarmar qualquer possível objeção do suspeito ao ritmo que estava a imprimir aos interrogatórios: “Fiz de novo apelo às suas virtudes militares, demonstrando-lhe, enfim, que o elo fraco da história era eu, ao que ele respondeu positivamente com um orgulho que lhe era típico”.

A opção do juiz parecia estar a começar a dar resultado. Neste terceiro dia, o militar “começa a cair em contradições”. “Esta queda de Otelo foi fatal”, viria a congratular-se Martinho Almeida Cruz para o gravador.

À pergunta sobre se seria o dirigente e fundador das FP-25, Otelo Saraiva de Carvalho respondeu negativamente, com um largo sorriso. No resto do interrogatório, o juiz correu o nome dos arguidos à espera que Otelo lhe dissesse de onde os conhecia. A maior parte, respondeu, eram da direção política da FUP. O seu advogado, Romeu Francês, que em 2011 seria expulso da Ordem dos Advogados por suspeitas de várias burlas cometidas com clientes, pouco dizia. Naquela altura, Romeu Francês era já considerado um advogado de topo, e foi aí que se manteve até cair em desgraça. Em 1975 foi ele, ainda recém licenciado, quem negociou com o COPCON — estrutura dirigida por Otelo — a libertação dos militantes do MRPP. E a PJ chegou mesmo a investigar alguns serviços que prestou à própria FUP. Depois de Otelo, teve outros processos mediáticos, como a defesa do padre Frederico, na Madeira.

Ao lado de Martinho Almeida Cruz estava a procuradora Cândida Almeida. Havia também uma secretária na sala a datilografar tudo o que se passava, numa altura em que não se gravavam nem filmavam interrogatórios. Cândida Almeida não se recorda mas, segundo o juiz, a procuradora terá chegado a deixar a sala por alguns momentos para ir descansar. O mesmo aconteceria às secretárias, que se iam revezando, lê-se nas memórias do juiz. Quanto ao advogado de Otelo, “pura e simplesmente dormia” à frente do magistrado, lê-se na reprodução das seis cassetes gravadas por Martinho Almeida Cruz com as suas memórias.

Entrevista a Cândida Almeida. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
A procuradora Cândida Almeida ainda hoje se recorda todos os pormenores do processo
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Entrevista a Cândida Almeida. Grande reportagem sobre as FP-25. Forças Populares 25 de Abril foram uma organização terrorista de extrema-esquerda que operou em Portugal entre 1980 e 1987. Parte significativa dos seus militantes procediam das antigas Brigadas Revolucionárias, organização portuguesa de extrema-esquerda criada no início dos anos 70 por dissidentes do PCP. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Cândida Almeida não queria acreditar quando se apercebeu do envolvimento de Otelo Saraiva de Carvalho no caso
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Enquanto Otelo depunha durante longas horas na prisão, os outros integrantes das FP-25 começavam a acusar medo do que ele pudesse estar a dizer. E isso também permitia à polícia ir obtendo mais informações por parte dos restantes suspeitos no processo. “Falar durante muitos dias é sempre sinónimo de que se diz alguma coisa. E, numa circunstância destas, falar é sempre forçosamente algo que vai contra um arguido. Sabe-se que a regra de ouro nesta matéria é negar sempre tudo. E negar é não dizer palavras. Ao dizer palavras deixa-se sempre de negar para se admitir algumas coisas, como era o caso”, problematizou o juiz. É que Otelo negava, mas dava “uma dezena de argumentos que o enterravam e o faziam cair em contradições”.

Otelo garante que FUP e FP-25 são independentes

Cinco dias depois, na sala despida do Reduto Norte do forte de Caxias, o juiz de instrução voltou a querer falar sobre a Sadoset, empresa que tinha sido encarregada das obras na casa de Otelo e recebera dinheiro vindo da organização. Mas, nesta fase do interrogatório, a pergunta já era outra: porque é que na sua agenda de trabalho Otelo escreveu “investimento Sadoset — 5 mil”?

O arguido explicou que esta empresa de construção, com sede em Setúbal, tinha como sócios Maximiano Ribeiro e Gregório Santos, ambos “camaradas da FUP”. O juiz perguntou-lhe se sabia que havia um terceiro sócio na firma: César Escumalha, ligado às FP-25. Otelo respondeu desconhecer a ligação deste também arguido à empresa, apesar de no processo ter ficado claro que foi na casa de Escumalha, em Montemor, que decorreram muitas das reuniões descritas nos cadernos de Otelo.

O militar explicou que os tais “5 mil” foram um empréstimo que iria fazer a título pessoal, através dos dinheiros que os países amigos davam à FUP, para que aquela empresa avançasse com um projeto de vivendas. O juiz ficou na dúvida sobre como podia ele usar dinheiro da FUP para conceder um empréstimo pessoal.

Na entrada da agenda de Otelo a 10 de abril de 1984 há outro registo que as autoridades consideraram suspeito: “Ir buscar uma encomenda ao aeroporto”. Otelo argumentou que se tratava de algo normal, uma vez que ele e a irmã, que vivia em Moçambique, trocavam encomendas com frequência e recusou que se tratasse de algum tipo de código.

Otelo Saraiva de Carvalho, líder da Frente Unitária popular FUP

Otelo Saraiva de Carvalho, líder da Frente Unitária popular FUP, durante uma conferência de imprensa. Lisboa, 23 de agosto de 1980

AMÉRICO DIÉGUES/ARQUIVO JN

Otelo insistiu sempre que as FP-25 eram “independentes da FUP”, embora acreditasse que, devido à origem militante comum, houvesse elementos das FP que eram também elementos da FUP — não havendo, porém, repetia, “qualquer ligação orgânica entre elas”.

O juiz perguntou-lhe então pelas reuniões secretas que conduziu ao lado de Pedro Goulart, Humberto Machado, Mouta Liz e César Escumalha para a criação de um Exército Revolucionário em que se propunham a tomar o poder pela luta armada. Estas reuniões, segundo os arguidos Barradas e Figueira — os primeiros arrependidos no processo que colaboraram com as autoridades — ocorreram precisamente no início dos anos 1980, meses antes de as FP-25 se apresentarem ao país.

Mas Otelo negou sempre a sua participação. “Nunca estive nessas reuniões”, afirmou. Mais tarde, viria a dizer publicamente que Barradas e Figueiras situaram mal estas reuniões no tempo. E que elas aconteceram, sim, em 1978, quando o PRP o apoiou na criação de um Projeto Global que unisse todos os movimentos da esquerda revolucionária.

A fotografia na prisão e uma capa no jornal, que não foi uma entrevista

Ainda antes de Otelo ter ficado detido no forte-prisão de Caxias, os reclusos e os funcionários já falavam dessa possibilidade. Maria Filomena, que era secretária do comandante da cadeia e que acabaria por apaixonar-se por Otelo nesse período, descreveu esses dias para o livro “Otelo – O Revolucionário”. Mesmo atrás das grades, era para todos uma “honra” poder tê-lo ali, onde a maior parte dos militares presos eram suspeitos de contrabando — à exceção de um PSP acusado de matar uma prostituta e de um sargento que tinha assassinado outro militar.

Otelo Saraiva de Carvalho na prisao de Caxias, 10 agosto de 1984. Foto: CARLOS GIL

Otelo Saraiva de Carvalho fotografado no forte-prisão de Caxias pelo Tal&Qual. A imagem foi publicada na edição de 10 de agosto de 1984

CARLOS GIL/PRODIÁRIO

Otelo gozava, por isso, de privilégios especiais: tinha autorização para se movimentar livremente na cadeia, para fazer telefonemas e para receber visitas. Mas não podia fazer tudo. A 28 de agosto de 1984, por exemplo, num requerimento escrito pela sua mão pediu ao juiz de instrução que o autorizasse a passar 24 horas fora da cadeia, saindo às 15h de sexta e só regressando à mesma hora de sábado, para passar em casa o dia de aniversário, 31 de agosto. O pedido foi recusado.

O jornalista encontrou na sala de visitas um Otelo pálido, mais gordo e envelhecido mas bem disposto, com “um bigodinho de duas semanas”. O militar contou que todos os dias corria dois quilómetros num corredor da prisão, logo às 8h da manhã, e garantiu que estava a ser muito bem tratado

Uma das visitas que Otelo recebeu na cadeia foi o jornalista do Tal & Qual José Rocha Vieira. Na segunda semana de agosto foi publicado um artigo com o título “Se não for posto em liberdade, Otelo vai queixar-se ao Tribunal Europeu”. No entanto, o trabalho jornalístico não era assumidamente uma entrevista, uma vez que para isso teria sido preciso obter autorização superior.

Rocha Vieira encontrou na sala de visitas um Otelo pálido, mais gordo e envelhecido mas bem disposto, com “um bigodinho de duas semanas”. O militar contou que todos os dias corria dois quilómetros num corredor da prisão, logo às 8h da manhã, e garantiu que estava a ser muito bem tratado. Também revelou que estava a escrever um romance policial, a partir da história verídica do assassinato do líder sindical Delmiro Cruel, na Marinha Grande, no início desse mesmo ano — um dos casos descritos nos seus cadernos. E confessou que tinha ainda a esperança de que o juiz, a cujas perguntas estava a responder em interrogatórios sucessivos, o deixasse sair em liberdade provisória, não o forçando a ficar na cadeia durante os seis meses que a lei previa para a pronúncia. Ficaria muito mais tempo do que isso.

Os últimos esclarecimentos de Otelo

A duas semanas de terminar o prazo para o Ministério Público proferir a acusação, Otelo e Romeu Francês deslocaram-se ao quarto andar do Tribunal de Instrução Criminal, na Rua Gomes Freire, para prestar alguns esclarecimentos adicionais ao juiz de instrução.

Otelo explicou então como tinha conhecido Mouta Liz, o arguido que o juiz considerava ser o mais bem preparado de todos. O militar recuou a 1978, ao anfiteatro da Faculdade de Ciências, quando se discutia a fundação da OUT, para recordar que Mouta Liz tinha sido aí escolhido para a comissão política. Oriundo do Movimento de Esquerda Socialista (MES), o partido por onde passaram figuras como Jorge Sampaio, Eduardo Ferro Rodrigues ou Alberto Martins, Mouta Liz era funcionário do Banco de Portugal e conseguiu escapar à Operação Orion. Entregar-se-ia apenas alguns meses depois e, durante esse período na clandestinidade, mudou de aparência e chegou a dar uma entrevista de mais de duas horas a O Jornal, durante um almoço de robalo grelhado e tinto de Reguengos. A polícia nunca o encontrou.

O juiz Martinho Almeida Cruz quis saber porque é que, a certa altura, nos cadernos de Otelo, se refere a intenção de Mouta Liz de se demitir. Mas Otelo respondeu de forma vaga que isso se deveu a algum desânimo com a atuação da FUP, sem se alongar muito mais.

O juiz fez-lhe também perguntas sobre Macedo Correia, conhecido pelas alcunhas “Poeta” ou “Engenheiro”. A polícia viria a encontrar na sua posse diversos materiais que mostravam uma ligação entre o Projeto Global e as FP-25. Mais uma vez, Otelo invocou razões de “confidencialidade” para não responder.

Martinho Almeida Cruz quis então saber mais informações sobre Eduardo Silva, do PRP. Otelo disse que o conheceu ainda na campanha das eleições presidenciais de 1976 e que lhe tinha pedido ajuda para entrar no mercado moçambicano — o que seria importante para a empresa de importação e exportação criada no seio da organização. Eduardo Silva ajudou-o e os dois até foram juntos a Moçambique.

O magistrado voltou a insistir nas siglas a que Otelo tanto recorria nos seus cadernos. Será a “ECA, a Estrutura Civil Armada” (as verdadeiras FP-25) do seu Projeto Global? E o “DPM será o Diretório Político-Militar”? E a “DIMA significa o Diretório de Intervenção Militar Armada”? E a OPM será a Organização Popular de Massas? E o que é o Conclave? A resposta foi sempre a mesma. “Pretende guardar confidencialidade”, lê-se nas transcrições que constam no processo.

Mais tarde, em resposta à acusação pelo crime de associação terrorista, Otelo daria explicações mais concretas. Começou por admitir ter criado uma organização política com o objetivo estratégico geral do socialismo, na qual vinha a trabalhar desde 1977. Para tal, criara uma Organização Política de Massas (OPM), que se concretizava através de uma associação política (OUT) e mais tarde de um partido político (FUP), cujo objetivo era contribuir para o socialismo em Portugal através da tomada de poder pelos trabalhadores.

No seio da organização, seria criada a Estrutura Civil Armada (ECA)  com vista à conquista do poder pelos trabalhadores, um Exército Popular Revolucionário (EPR) e uma componente denominada “Quartéis”, exclusivamente formada por militares, quer estivessem no ativo ou na reserva. Otelo garantiu, no entanto, que estas estruturas nunca tinham saído do papel. Este argumento não convenceu o Ministério Público, até porque tinham encontrado várias contradições nos seus depoimentos em tribunal.

Populares com tochas durante a vigília de solidariedade para com Otelo, detido no Forte da Caxias, na madrugada de 24 de abril de 1986. António Cotrim / Lusa

Populares com tochas durante a vigília de solidariedade para com Otelo Saraiva de Carvalho, detido no Forte da Caxias. Fotografia tirada na madrugada de 24 de abril de 1986

ANTÓNIO COTRIM/LUSA

Por exemplo: Otelo disse ao coletivo de juízes que o significado da sigla “FP”, que aparecia nos seus cadernos, era Frente Polisário. Segundo ele, este movimento revolucionário, criado para lutar pela via armada pela autonomia do território do Saara Ocidental, deveria dar formação a alguns portugueses. De acordo com o Ministério Público, ao revelar a existência destes treinos de guerrilha, Otelo acabava por confirmar que a componente Quartéis não era um mero projeto e que existia um Exército Popular Revolucionário. Para os magistrados, esta formação dada aos militantes em países estrangeiros era já a concretização prática dos planos de Otelo.

Na sua contestação, Otelo reiterou sempre que a FUP funcionava “desde 1980 como partido legalizado e que a ECA não era as FP-25”. Admitia apenas algo que viria a repetir anos depois em todas as entrevistas que deu: que elementos das FP-25, sem assumirem ou revelarem essa sua atividade clandestina, tinham militado no Projeto Global. “O Projeto Global e as FP-25 são duas organizações perfeitamente autónomas e distintas, fortemente diferenciadas pela sua praxis política”, repetia Otelo.

A defesa de Otelo insistiu sempre que ele só sabia das reivindicações do grupo terrorista pela comunicação social — como qualquer outro cidadão.

A conversa a sós com o juiz antes da acusação

Martinho Almeida Cruz e Otelo Saraiva de Carvalho voltariam a estar frente a frente naquela sala despida, no Reduto Norte do forte-prisão de Caxias, dez dias depois. Por esta altura, o advogado de Otelo já tinha pedido a sua libertação provisória, e o juiz tinha recusado.

Estávamos a 12 de outubro, tinham passado 115 dias desde a prisão e Otelo estava a cerca de 24 horas de saber se era acusado no processo — foi nessa altura que o telefone da prisão tocou. Martinho Almeida Cruz estava a ligar para pedir um encontro completamente a sós com Otelo. Meia hora depois, estavam juntos.

Segundo a memória atual do juiz, esse encontro não foi muito longo — mas Otelo descreveu-o num dos seus livros como tendo durado uma hora e meia. Martinho Almeida Cruz tinha uma proposta para fazer. Pretendia que ele colaborasse com as autoridades, como já tinham feito outros arguidos no processo, a quem a justiça chamou ora de “dissidentes” ora de “arrependidos” — e que decidiram falar movidos pela esperança de uma possível absolvição dos crimes de terrorismo e por uma nova vida no estrangeiro. No caso do homem que era visto como o fundador da organização, o juiz tinha mesmo pensado numa possível “liberdade provisória” enquanto decorria o processo.

Nessa altura, o Ministério Público estava a ultimar a acusação, que seria conhecida no dia seguinte — Otelo seria acusado com outros 76 arguidos de integrar uma organização terrorista. Terminada essa fase do processo, caberia ao juiz decidir se enviava os arguidos para julgamento. Se isso acontecesse, Otelo manter-se-ia em prisão preventiva — a não ser que colaborasse.

Martinho Almeida Cruz não tinha dúvidas sobre a ligação das FP-25 ao Projeto Global criado por Otelo, mas sabia que os interrogatórios que lhe fez ali, naquela mesma sala, não tinham levado a uma verdadeira clarificação da sua intervenção na organização e tinha esperança que Otelo acabasse por assumir “as suas responsabilidades”. Otelo nem sequer precisaria de denunciar ninguém. Aliás, para o convencer, o juiz chegou mesmo a dizer-lhe que estava sozinho e isolado e que na organização era já cada um por si. Até usou o nome de Macedo Correia — um arrependido que integrava também a componente política da organização e que agora era um dissidente. Otelo, porém, mostrou-se “insensível” aos seus argumentos.

Na cabeça de Otelo, aquele encontro era uma “manobra de aliciamento à delação de companheiros e das estruturas secretas da organização política, o Projecto Global”. Mais tarde acabaria por dizer publicamente que esta tinha sido uma proposta de libertação. Mas não era bem assim.

A proposta de enviar Otelo para o estrangeiro

Segundo Martinho Almeida Cruz, este encontro não foi uma ideia só sua. Aliás, o pedido para que ele se fizesse terá partido do então diretor da Direção Central de Combate ao Banditismo da PJ, Dias Borges, mas não por iniciativa própria, escreveu o juiz nas suas memórias: “Penso que por outras ordens e instâncias da magistratura do Ministério Público”.

Houve mais movimentações. Semanas antes, o juiz Martinho Almeida Cruz pediu ao então major Sousa e Castro, ex-conselheiro da Revolução e próximo do Presidente da República Ramalho Eanes, um encontro para lhe propor que “desse cobertura” a uma ação que passava por retirar Otelo de Caxias e colocá-lo num sítio à escolha no estrangeiro. Mais de 30 anos depois, o juiz lembra-se bem desse episódio. “O encontro existiu, sim, assumo”, disse ao Observador. “Queria propor a Eanes que me recebesse para lhe dar a versão do processo. Isto porque o Presidente da República era por inerência também o presidente do Conselho Superior da Magistratura”.

Sousa Castro também se recorda bem do que se passou. Ao Observador, diz que estava a trabalhar na comissão instaladora do Instituto Damião de Góis quando viu o juiz subir as escadas com vários guarda-costas atrás. Sousa Castro tinha sido avisado dessa pretensão do juiz por um amigo comum, à data jornalista do Jornal de Notícias. “Eu não estava dentro do assunto das FP-25, mas quando o vi chegar com aquela tropa atrás aquilo impressionou-me”, conta. “Disse-me que queria falar com o Eanes a propósito do processo, porque havia uma possibilidade de negociar uma solução que passava por Otelo ir para o estrangeiro.” A proposta surpreendeu-o: “Aquilo pareceu-me estranho mas, como eu sempre tive muito respeito pelos juízes…”. Em vez de esperar pelo habitual almoço de quarta-feira com o Presidente da República, Sousa e Castro decidiu telefonar logo a Ramalho Eanes — uma decisão que hoje considera ingénua. “Ó Sousa e Castro, o Presidente da República recebe qualquer cidadão na qualidade de cidadão”, respondeu-lhe Ramalho Eanes. E foi isso que transmitiu ao magistrado: teria de ir para a lista de cidadãos que queriam falar com o Presidente e esperar que o chamassem. Martinho Almeida Cruz não gostou da resposta e desistiu do encontro com Eanes.

Quase um ano depois da sua detenção, quando um grupo de dez reclusos conseguiu escapar do Estabelecimento Prisional de Lisboa, foi encontrada na cela de um deles uma carta de Otelo, com data de 19 de junho de 1985, em que recordava esse encontro com o juiz. Otelo pedia aos “companheiros” que se unissem cada vez mais, porque estavam a um mês do julgamento e sentia-se inquieto com a palavra “traição”

Sem o suporte do Presidente da República, o dia 12 de outubro de 1984 foi a última vez que Martinho Almeida Cruz entrou no forte de Caxias para tentar convencer Otelo a falar sobre o seu envolvimento nas FP-25. O magistrado estava a agir nos limites do que lhe era permitido. “A oferta do juiz constituiu um erro grave. Disse-me que a conversa era delicada ao ponto de nem me ter chamado. Mas não cabe a um juiz fazer isso”, afirmou o advogado Romeu Francês a António José Vilela, autor do livro “Viver e Morrer em nome das FP-25”.

Quanto a Otelo, não só não aceitou a proposta como reagiu de forma ríspida. Quase um ano depois da sua detenção, quando um grupo de dez reclusos conseguiu escapar do Estabelecimento Prisional de Lisboa, foi encontrada na cela de um deles uma carta de Otelo, com data de 19 de junho de 1985, em que recordava esse encontro com o juiz. Otelo pedia aos “companheiros” que se unissem cada vez mais, porque estavam a um mês do julgamento e sentia-se inquieto com a palavra “traição”. Revelava que, naquele encontro, Almeida Cruz lhe tinha dito que chegaria ao julgamento isolado. “Praticamente mandei-o à merda e não apostei porque não entro em jogos”, escreveu. “Temo é que haja gente a pensar que ou se lixam todos ou não se lixa ninguém.”

Queridos companheiros! E pronto! A brincar, a brincar está atingido o primeiro aniversário da “grelha” do pessoal. Haja saúde! Quando formos absolvidos intentaremos de imediato uma acção por perdas e danos contra o Estado português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, vou exigir uma indemnização correspondente a 1000 contos por cada dia de prisão. Hoje, por exemplo, já atingi a módica quantia de 364 000 contos, o que já satisfaz. É melhor que o Totoloto!

Bem, falemos de coisas mais sérias. Estamos praticamente a um mês do início do julgamento e vejo, com algumas preocupações, que a coesão que nos é tão necessária para a luta que se avizinha e adivinha difícil se está a esboroar, como argamassa pobre preparada com demasiada areia. NÃO PODE SER, companheiros! Vamos já acrescentar uma pazada de cimento à mistura. Não pode haver NADA, nesta fase, nem durante as sessões de julgamento que destrua a nossa serenidade e o nosso equilíbrio perante o inimigo (...).

Com inquietação vejo a palavra “traição” - palavra feia, pesada, agreste - a ser utilizada, por dá cá aquela palha, entre companheiros referindo-se a companheiros: há os que consideram que eu sou traidor porque recusei candidatar-me à merda das Presidenciais, uns consideram traição os outros não quererem jurados, outros apodam de traidores os que resolveram meter requerimento a pedir jurados. Mas afinal o que é isto, o que é que se passa? Que história, que descontrolo percorre o nosso pessoal auto-proclamado revolucionário que conduz tão fácil e rapidamente ao insulto grave, à auto-suspensão, ao corte de relacionamento, à perda de coesão imprescindível, perante o gáudio e o esfregar de mãos contente da Polícia, que espreita, qual abutre prestes a cair sobre a carniça o momento mais conveniente?

Quando o Almeida Cruz na sua manobra envolvente de aliciamento me disse e queria apostar que eu iria ter o desgosto de verificar, com a aproximação do julgamento e o decurso deste, que toda a unidade e camaradagem que eu lhe afirmara existir entre todos os camaradas e companheiros iriam soçobrar no meio do “salve-se quem puder" e que eu, que não queria colaborar, iria ver-me isolado e com todos os meus companheiros a atacarem-me. Praticamente, mandei-o à merda e não apostei porque não entro em jogos nem mesmo a feijões com gente daquele género.

Mas que diabo, por este andar a malta acaba mesmo por dar razão ao estupor! (...) Temo é que haja gente a pensar que ou se lixam todos ou não se lixa ninguém. (...) Talvez se revele difícil, em vez da posição pérfida e maximalista de “que se lixem todos” é sem dúvida mais inteligente e revolucionária a de pensar em salvar toda a mobília que for possível. Que o Espírito Santo os ilumine!... Quanto aos jurados, é coisa que não me causa apreensões de maior. Acho até que tem alguns aspectos positivos, sem dúvida.

O problema grave que se coloca (e se calhar é uma das ideias que preside à sua requisição) é a possibilidade que passa a existir de prolongamento do julgamento por longos meses (até anos, quem sabe?). Haverá vantagem em traçar uma táctica obstrucionista à efectivação do julgamento de forma a atingir o máximo de tempo permitido por lei e que obrigue a pôr o pessoal todo em liberdade? Aguentar-se-ão por todo esse tempo os apoios familiares e de amigos, os apoios financeiros necessários para alimentar o pagamento aos advogados e aos funcionários?

Simulação gráfica da carta enviada por Otelo

Além da carta de Otelo, houve outro documento importante que foi encontrado depois da fuga dos elementos das FP-25: era uma folha onde o juiz Martinho Almeida Cruz aparecia como um dos alvos da organização, juntamente com a procuradora Cândida Almeida. O magistrado lembra-se do que estava escrito: “O Martinho e a Candidinha continuam a fazer das suas. Como não sou defensor da pena de morte devem apanhar uma deficiência definitiva para se lembrarem sempre disto”.

Um dos últimos arrependidos no processo chegou a dizer ao coordenador da PJ que também corriam perigo o diretor-geral dos Serviços Prisionais, Gaspar Castelo Branco, e o primeiro dissidente das FP-25, José Barradas. Estariam ambos na mira da organização na sequência de decisões tomadas durante uma reunião informal de alguns dos seus elementos. Barradas foi assassinado no verão de 1985, antes do arranque do julgamento, e Gaspar Castelo Branco foi morto a tiro em fevereiro do ano seguinte, enquanto este decorria.

Um dia, apurou o Observador, Martinho Almeida Cruz estava na casa onde vivia em Cascais com outros magistrados — entre eles Joana Marques Vidal, que depois veio a ser procuradora-geral da República — quando os seus seguranças detetaram um carro estranho no exterior. Quem estava por dentro do processo acredita que só não lhe aconteceu nada porque naquele dia havia uma festa na casa e estavam lá muitas pessoas. Depois desse episódio, os polícias começaram a levar o juiz quase até à cama, para garantir que não havia intrusos no quarto. Martinho Almeida Cruz manteve a segurança pessoal durante anos até que, no final da sua ligação aos processos das FP-25, foi colocado em Bruxelas como conselheiro jurídico na Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia (REPER).

“Havia sérios problemas de segurança. Já existiam noutros países, Espanha, Itália, Alemanha, juízes que foram dépaysé por participar nos processos de terrorismo, Fui o primeiro em Portugal, mas não na Europa”, diz Martinho Almeida Cruz ao Observador.

Ainda voltou a Portugal e foi colocado como juiz desembargador no Tribunal da Relação — mas acabou por se reformar antecipadamente por stress pós-traumatico. Hoje, Martinho Almeida Cruz divide-se entre Portugal e Espanha, onde vive com a atual companheira.

Em 2001, ainda estava na Relação, ameaçou processar Otelo por difamação, quando o militar disse publicamente que Almeida Cruz “esteve nas mãos do PCP” e “teve de pagar a fatura”, que seria a sua detenção. “Só compreendo as acusações de Otelo numa lógica de desespero. Ele sabe que está tudo mais do que provado…”, disse à data o desembargador.

“Havia sérios problemas de segurança. Já existiam noutros países, Espanha, Itália, Alemanha, juízes que foram dépaysé por participar nos processos de terrorismo, Fui o primeiro em Portugal, mas não na Europa”
Martinho Almeida Cruz, juiz

Otelo foi condenado em primeira instância a 15 anos de prisão pelo crime de organização terrorista. Esteve cinco anos em prisão preventiva até ser libertado enquanto o processo era alvo de recursos para os vários tribunais superiores: Relação, Supremo e Constitucional. A última decisão do Supremo condená-lo-ia a 17 anos (depois de a Relação ter aumentado para 18), uma pena que acabaria perdoada com a lei da amnistia aprovada em 1996. A amnistia não lhe perdoou, porém, a autoria moral dos crimes de sangue: dez homicídios e sete tentativas, pelos quais foi julgado em 2001 mas absolvido, com o tribunal a justificar que não conseguiu provar quais os réus que cometeram cada um dos crimes. O caso transitou em julgado sem o recurso do Ministério Público, que deixou passar o prazo legal para o fazer.

O Observador tentou falar com Otelo Saraiva de Carvalho numa altura em que o militar se encontrava já com uma “saúde debilitada”. Uma fonte próxima garantiu, porém, que ele se recusava a falar ou a prestar qualquer esclarecimento sobre o tema. Otelo morreria a 25 de julho de 2021, aos 84 anos. Sofria de problemas cardíacos que se agravaram nos últimos meses depois da morte da sua primeira mulher, Dina, mãe dos seus dois filhos.

Os dois homens cruzaram-se uma última vez há alguns anos. Martinho Almeida Cruz estava a passear na rua, em Setúbal, quando viu um jipe. Lá dentro, estava Otelo Saraiva de Carvalho. Os seus olhares cruzaram-se. Otelo esboçou um sorriso forçado. O juiz fez o mesmo. E cada um seguiu o seu caminho.

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