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§A encíclica Sublimis Deus, promulgada a 29 de Maio de 1537 pelo papa Paulo III, teve ponderosas consequências históricas. Considerando que “não é concebível que alguém possa possuir tão pouco entendimento a ponto de desejar a fé e, ainda assim, ser destituído da faculdade mais necessária a recebê-la”, o papa, contrariando os que, inspirados pelo Diabo, “não hesitam em propalar mundo afora que os índios […] deveriam ser tratados como animais brutos criados para o nosso serviço, pretextando que seriam incapazes de receber a fé católica”, proclamou que os indígenas do Novo Mundo “não devem em absoluto ser privados de sua liberdade ou da posse de suas propriedades, ainda que sejam alheios à fé de Jesus Cristo; e que eles devem livre e legitimamente gozar de sua liberdade e da posse de sua propriedade; e não devem de modo algum ser escravizados; e se o contrário vier a acontecer, tais actos devem ser considerados nulos e sem efeito”.

A encíclica punha assim termo, com toda a clareza, ao debate – não estritamente teológico e nada desinteressado – sobre se os habitantes indígenas do Novo Mundo seriam ou não dotados de alma. A encíclica era, todavia, omissa sobre a licitude de subjugar e privar de liberdade povos pagãos de outros continentes, pelo que o tráfico de escravos provenientes de África pôde prosseguir e prosperar.

Frei Bartolomé de las Casas (c.1474-1566) foi uma das vozes mais influentes na defesa dos indígenas do Novo Mundo. Quadro de Felix Parra, c.1875

Quase cinco séculos após a encíclica de Paulo III, o psiquiatra Pier Vincenzo Piazza pretende demonstrar, no livro Homo biologicus (publicado originalmente em França no ano passado e que nos chega em edição Bertrand, com tradução de Rute Mota), que os seres humanos, sejam eles americanos, africanos, europeus ou asiáticos e seja qual for a cor da sua pele e a forma dos seus olhos, não são dotados de uma alma imaterial e que esta não passa de uma lenda, na qual fomos levados a acreditar porque o Ocidente passou 1200 anos sob “a dominação total do cristianismo”.

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A capa de “Homo Biologicus”, na edição da Bertrand

A biologia explica tudo

No entender de Piazza, o humanocentrismo dualista que postula que o homem é constituído por um corpo material e uma essência imaterial “não resulta apenas das crenças religiosas. É promovido também por algumas correntes do nosso sistema cultural laico, algumas escolas daquilo a que chamamos ciências humanas e sociais e que abrangem a filosofia, o direito, a sociologia e os principais ramos da psicologia, [que] estudam os aspectos do comportamento do homem que se julga não dependerem da biologia, ou não serem explicados por ela”, e apelam “implicitamente [à existência de] uma entidade não-material”.

A Ilha dos Mortos, por Arnold Böcklin, 1.ª versão, 1880

Porém, afirma Piazza, “a biologia permite hoje explicar facilmente a nossa natureza em constante mutação, as nossas aspirações por vezes fúteis, os nossos excessos cada vez mais notórios”. Os progressos da biologia ao longo do século XX “não colocaram verdadeiramente em causa a existência de uma essência imaterial não-biológica. O que fizeram foi deslocar a velha fronteira de 16 séculos entre o domínio da alma e do cérebro”. Pouco a pouco, comportamentos específicos foram sendo “explicáveis de forma determinista” através de factores biológicos, mas continuavam por compreender “certos aspectos da natureza humana, a sua faceta mutante e imprevisível, o facto de depender das nossas experiências e da nossa cultura”. Porém, “ao longo dos últimos 30 anos, descobriu-se […] que a biologia não é determinista […] Sabemos hoje que não há uma relação estrita de causa e efeito entre os elementos que nos constituem e as suas funções. […] É certo que um gene produz uma proteína, mas a sua função pode ser muito diferente consoante… inúmeras coisas, e sobretudo em função do contexto presente e das experiências passadas. […] A biologia, como a compreendemos hoje, não está de todo em oposição com a nossa ideia de espírito: ela inclui essa ideia […] Graças às descobertas do século XXI, já não temos necessidade de recorrer a uma entidade imaterial para explicar a nossa humanidade […] A biologia do século XXI reconcilia a mente com a matéria. Ela não nega a mente ou a alma, simplesmente materializa-as”. Mais à frente afirma, sobre a alma, que “nunca ninguém a viu e já não é necessária, a probabilidade da sua existência torna-se de súbito muito reduzida”.

Alma levada para o paraíso, por William Adolphe Bouguereau, c.1878

Afirma Piazza que a visão determinista da biologia assenta numa concepção errada: a de que o património genético é “uma gravação que produz sempre a mesma música. Na verdade, o nosso genoma não é uma gravação, mas, antes, um instrumento musical, capaz de gerar um número infinito de melodias”. Durante muito tempo, concentrámo-nos nos 25.000 genes que constituem o DNA humano, esquecendo que estes genes – a sequência codificante, que contém a informação necessária para produzir as proteínas – são apenas 3% do genoma; os outros 97%, que constituem a sequência reguladora, vão modular a expressão da sequência codificante, fazendo com que um homem e um rato, embora partilhem 99% da sequência codificante, sejam organismos tão diferentes.

“Igualdade perante a morte”, por William Adolphe Bouguereau, 1848

Tão importante quanto a percepção do papel da sequência reguladora foi “a descoberta de que a função das proteínas varia em função do contexto”. “As pessoas da minha geração cresceram com a ideia de que a função é uma propriedade inerente, própria de um gene e da sua proteína. Esta concepção é verdadeiramente a pedra angular do determinismo biológico: se eu conhecer os vossos genes, conhecerei também as proteínas que irão produzir, pelo que poderei prever as vossas características e também as doenças que se arriscam a desenvolver”. Porém, agora sabemos que “são muitos os contextos que alteram a função de uma proteína […] Partindo do interior para o exterior, começamos por encontrar o compartimento da célula no qual ela se localiza. Depois, o órgão, por exemplo, o cérebro, o coração ou o fígado, que contém a célula que exprime a proteína. De seguida, os indivíduos portadores desse órgão e, para terminar, o ambiente exterior”.

Molécula de DNA

As proteínas e a não-inscrição

As descobertas mais recentes na área da neurologia trouxeram outro contributo decisivo para a “materialização da alma”: “sabemos hoje”, escreve Piazza, “que todas as actividades, mesmo as mais ‘espirituais’, alteram a nossa estrutura cerebral. Podem estar certos de que o vosso primeiro beijo, a leitura do primeiro livro que vos comoveu ou a dor intensa do vosso primeiro desgosto de amor marcaram, em poucas horas, o vosso cérebro para sempre”. Porém, para que estas experiências induzam modificações no cérebro, é necessária a “activação do teclado do genoma e [a] produção de novas proteínas […] durante as horas que se seguem à experiência. Se, durante este período, bloquearmos a síntese delas no nosso cérebro, a nova experiência não poderá ser registada e será perdida”.

Corte sagital mediano do cérebro, numa ilustração de Nicolas Henri Jacob (1782-1871), no Traité complet de l’anatomie de l’homme, de Jean Baptiste Marc Bourgery (1797-1849), publicado em Paris entre 1831 e 1854

É irresistível articular esta indispensável mediação da síntese proteica no processo de incorporação de experiências com o conceito de “não-inscrição” explanado pelo filósofo José Gil em O medo de existir (2004). Para Gil, Portugal é o país da “não-inscrição”, onde os acontecimentos não deixam marcas, não determinam reconfigurações dos indivíduos nem da sociedade, não influenciam a vida, não permitem aprender com a experiência nem apurar responsabilidades – é como se não tivessem acontecido. A propensão portuguesa para a não-inscrição permitiria explicar que os portugueses dêem crédito, em simultâneo, a teorias contraditórias, a que se declarem católicos e nunca tenham aberto a Bíblia e nada saibam sobre o seu conteúdo, a que votem regularmente em políticos cujos antecedentes desaconselhariam seriamente a sua eleição para qualquer lugar de responsabilidade e, usando exemplos mais comezinhos e mais próximos no tempo, a que achem natural que Jorge de Jesus regresse triunfalmente e com poderes reforçados ao Benfica e Cristina Ferreira regresse triunfalmente e com poderes reforçados à TVI, depois de terem saído de ambas as “instituições” em termos acrimoniosos e de terem ido oferecer os seus serviços aos respectivos rivais figadais.

Isto sugere uma área promissora para a neurobiologia nacional: investigar o cérebro dos portugueses, para apurar se neles existe um mecanismo de bloqueio da síntese de proteínas que impede o registo de experiências e nos condena a viver numa amnésia permanente, a não conseguirmos ter pensamentos que não sejam frívolos e actos que não sejam inconsequentes e a comportarmo-nos, no plano moral, como se não tivéssemos coluna vertebral.

O livre-arbítrio é uma ilusão

Sem surpresa, Piazza também põe em causa o conceito de livre-arbítrio, característica que seria, supostamente, exclusiva do ser humano: “a biologia pode explicar as aspirações modernas da liberdade, inclusiva as mais fúteis e as mais contraditórias, que, até ao momento, considerávamos como características da nossa essência imaterial”.

Segundo Piazza, todos os comportamentos humanos, por mais bizarros, inúteis e insondáveis que possam parecer, podem ser explicados pela articulação entre três mecanismos regulatórios de natureza biológica e, na sua essência, similares aos que operam em todos os seres vivos: “a prestase, com origem na necessidade”, a endostase, que satisfaz as necessidades presentes, e a exostase, que antecipa as carências futuras”.

Embora a perspectiva da natureza humana perfilhada por Piazza difira da concepção determinista da biologia clássica, os resultados práticos não são muito diversos: na sua óptica, cada um de nós é uma máquina biológica cujo comportamento não resulta da nossa (ilusória) vontade mas da complexa interacção entre o nosso património genético, o meio em que crescemos e as experiências de vida por que passámos. Na verdade, de acordo com Piazza, somos desprovidos de alvedrio em todos os domínios da nossa existência: se somos obesos ou viciados em cocaína, não é por escolha nossa e o livro inclui capítulos – “A obesidade: Um cérebro adoecido pelo seu ambiente” e “A toxicomania: Um cérebro cada fez mais doente” – dedicados especificamente a estes dois “comportamentos irreprimíveis”, ou seja, em relação aos quais a nossa “vontade” nada pode.

O marquês Alessandro del Borro, marechal-de-campo do Sacro Império Germânico, num retrato atribuído a Charles Mellin, c.1630

E a quem creia que algo tão abstracto quanto as convicções ideológicas resultam do livre-arbítrio, Piazza desfaz o equívoco na secção “O conservadorismo e o progressismo também têm origem biológica”: “o pensamento conservador tem a sua origem no sistema endostático e na satisfação trazida pela sensação hedónica de felicidade”, que rejeita a introdução de novas experiências. Já o pensamento progressista “é produzido, claramente, pelo sistema exostático”, em que a fruição resulta da exposição a alguns estímulos externos capazes de nos darem prazer” e que valoriza sobremaneira as novas experiências. Uma vez que este “efeito amplificador da novidade se deve à libertação, no cérebro […] da dopamina”, presume-se que será possível influenciar o voto dos eleitores através de manipulação química. Se um militante convicto do CDS-PP for aspergido na cabina de voto com dopamina irá ele mudar de ideias e colocar o “X” no quadrado à frente do Bloco de Esquerda? É mais uma área de investigação que solicita a atenção urgente dos neurobiólogos.

Pelo seu lado, politólogos e comentadores políticos terão de rever em profundidade as suas grelhas de análise: o desempenho dos políticos nos debates televisivos ou no parlamento ou o desempenho da economia tornam-se praticamente irrelevantes face à revelação do fundamento biológico das preferências do eleitorado. A tradicional clivagem entre Direita e Esquerda – que algumas vozes isoladas têm vindo a apontar como inadequada para representar a realidade política do século XXI – deverá ser substituída pela oposição entre o “Homo endostaticus [que] procura exclusivamente a felicidade do equilíbrio e será ferozmente conservador e espiritualista [e] o Homo exostaticus [que] explora incessantemente novos estímulos que lhe permitam prazer [e é] um progressista materialista”.

Seria pois aconselhável que se deixasse de empregar a expressão “eleições livres”: mesmo nos países em que os candidatos da oposição não são sistematicamente difamados, intimidados, coarctados, presos ou eliminados fisicamente e os media não são completamente dominados pelo partido no poder, nenhum eleitor escolhe livremente onde coloca a cruz no boletim de voto.

“A Liberdade guiando o povo” (1830). Quando pintou este quadro, Eugène Delacroix, não poderia adivinhar que não existe liberdade e que somos escravos da biologia

Somos todos inimputáveis

Uma coisa é reconhecer que existe uma predisposição genética e “ambiental” para a adopção de comportamentos adictivos (o que tem sido comprovado por vários estudos científicos), outra coisa bem diversa é remover completamente da equação a vontade própria, como faz Piazza. Mas se admitirmos que aquilo a que chamamos “mente”, “espírito” ou “alma” mais não é do que uma complexa interacção entre genética e ambiente e o livre-arbítrio é pura ilusão, as implicações dessa mundividência não podem ficar-se pela obesidade e pela toxicodependência e deverão ser alargadas a todos os domínios do comportamento humano, de que resultará a inevitável conclusão de que somos todos inimputáveis e estamos fora da alçada quer da justiça quer da reprovação moral da sociedade.

Cena de tribunal, gravura de Thomas Cook a partir de William Hogarth (1697-1764)

O homem que espanque a ex-companheira com uma moca de pregos por não admitir que ela não queira prosseguir a vida em comum é vítima de um qualquer desequilíbrio no cacharolete de hormonas e neurotransmissores que leva a que perfilhe uma versão enviesada do conceito de afecto e de fidelidade conjugal. Quem sequestre mulheres que pedem boleia na berma da estrada, as leve para sítios ermos e as viole, apenas tem o comportamento expectável de um macho ibérico na sua coutada, tanto mais que é sabido que “a atracção pelo sexo oposto é um dado indesmentível e por vezes não é fácil dominá-la”. Um governante que urda uma complexa teia de corrupção e tráfico de influências, com o fito de assegurar para si mesmo um trem de vida luxuoso que envolva fatos de bom corte, férias desafogadas em lugares exóticos, distribuição generosa de prendas e benesses entre familiares e amigos e apartamentos amplos nos bairros mais caros das grandes metrópoles é vítima de um mecanismo exostático desregulado. O banqueiro que conceba um maquiavélico esquema em pirâmide para tentar tapar o “buraco” gerado por uma série de investimentos ruinosos responde apenas a uma compreensível necessidade de preservar o seu faustoso trem de vida, a sua reputação de gestor talentoso e a agradável sensação de poder que lhe é conferida pela corte de aduladores e subservientes. Um empresário que defraude o Estado com esquemas de facturas falsas fá-lo apenas porque não consegue encontrar forma mais expedita de equilibrar os modestos rendimentos do seu mister com o ilimitado apetite por lagostas e automóveis desportivos que os seus genes e as suas experiências de vida inculcaram no seu cérebro. O assassino em série que mate e esquarteje duas dezenas de vítimas também não é senhor dos seus actos, pois um exame atento dos seus genes, da sua amígdala, das humilhações que sofreu na escola primária ou da sua desastrosa iniciação sexual encontrará certamente uma explicação para os seus juízos morais pouco ortodoxos.

Vítimas do regime do Khmer Rouge, em fotos tiradas pelos seus próprios carrascos, no Museu do Genocídio de Tuol Seng, em Phnom Penh, no edifício onde funcionou a Prisão de Segurança 21. Se todos os nossos actos são ditados pela biologia, quem pode julgar os regimes de Pol Pot ou de Hitler?

E se o facto de todos os nossos comportamentos serem integralmente explicados pela biologia anula as noções de culpa e de responsabilidade, o mesmo se passa com o mérito: as pessoas que se se distinguem pela perícia com que chutam bolas de futebol, compõem sinfonias e espalham pigmentos sobre uma tela ou pela abnegação com que consagram a vida a ajudar os desvalidos apenas o fazem porque assim dita a resultante dos seus genes e das suas experiências de vida. No caso dos desportistas, já se sabia que o património genético herdado dos progenitores era determinante na compleição física e na coordenação motora, mas os argumentos que Piazza agora apresenta tornam os expoentes atléticos ainda menos dignos de admiração, pois as qualidades espirituais, como a perseverança, a disciplina e a capacidade de concentração, que agem em sinergia com as qualidades físicas e que se julgava dependerem da vontade, são afinal também elas um produto da biologia. Cessem, pois, de Cristiano Ronaldo e de Lionel Messi os grandes golos que marcaram; cale-se de Serena Williams e Roger Federer a fama das vitórias que tiveram; pois apenas fizeram o que a sua biologia determinou.

A abolição dos conceitos de responsabilidade e mérito, à luz da biologia, tem também importantes implicações no plano socio-económico: se cada um de nós faz o que a sua genética e as suas circunstâncias permitem, extinguem-se as distinções entre madraços e diligentes, entre trabalho especializado e não-especializado, entre cargos de responsabilidade e trabalhadores genéricos e facilmente substituíveis, pelo que a remuneração deverá ser igual para todos. É bem possível que, enquanto não é implementada esta reforma salarial, o Dr. Piazza, que, além de exercer a profissão de psiquiatra, é director de investigação no INSERM (Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica francês), autor de livros e conferencista, prescinda da fatia (certamente substancial) dos seus proventos que fica acima do salário médio francês e a reparta com a empregada de limpeza do INSERM e com o técnico de equipamentos audio-visuais das salas de congressos onde é convidado a proferir palestras.

A famosa frase de Karl Marx, “De cada um segundo as suas capacidades para cada um de acordo as suas necessidades”, ganha um novo significado à luz da revelação que as nossas capacidades e necessidades são determinadas apenas pela biologia

A alma imaterial é inimiga do ambiente físico?

Para Piazza, o dualismo que faz coexistir no ser humano um corpo físico e uma alma e que nos foi inculcado pelas religiões com maior difusão – cristianismo, judaísmo, islamismo, hinduísmo e budismo – “pode ser uma das razões que explicam o porquê de continuarmos a destruir, inexorável e estupidamente, o mundo que nos rodeia”. “A ideia de que somos uma alma etérea e imortal, apenas de passagem, priva-nos de um verdadeiro sentimento de pertença à natureza e ao nosso planeta. Pois, em última análise, para quê respeitar e proteger uma realidade a que não pertencemos? […] Causaríamos nós tantos danos ao nosso planeta, à sua flora, à sua fauna e aos outros humanos se nos considerássemos apenas mais uma matéria entre tantas outras?”.

Piazza parece aqui confundir alguns conceitos. É verdade que na concepção cristã o Homem é o pináculo de glória da Criação, pairando muito acima dos animais e plantas, que foram colocados no mundo para que o homem deles se servisse como bem entendesse – e é lícito argumentar-se que esta visão terá contribuído para moldar a atitude da civilização ocidental perante a natureza. Porém, essa noção de superioridade absoluta do homem não decorre necessariamente de se crer na existência de um alma imaterial, como atesta o facto de o hinduísmo e budismo terem atitude bem mais compassiva para com os animais e até admitam que as almas humanas podem encarnar naqueles.

Por outro lado, a febre consumista de bens, serviços e confortos que devora o planeta atingiu a sua expressão mais desenfreada nas sociedades mais desenvolvidas do século XXI, regidas por princípios e critérios materialistas, com proporções de ateus e agnósticos que superam as de qualquer era precedente e cujos membros dedicam muito pouco (ou nenhum) tempo por dia a pensar na salvação da alma. Mesmo que muitos membros destas sociedades se declarem “crentes”, a “crença” está reduzida, cada vez mais, a rituais anódinos, pontuais esvaziados de sentido, enquanto as suas acções são norteadas pela maximização do consumo – quantos dos mais de oito milhões de portugueses que se vêem a si mesmos como “cristãos” consagram os feriados religiosos a estudar a Bíblia e a meditar nos seus pecados e na Vida Eterna? A expectativa da maioria dos “cristãos” em relação ao dia do Corpo de Deus é que seja agraciado com céu azul e calor – e se esta esperança for defraudada e a praia não for opção, a alternativa será o centro comercial, não “a adoração e a veneração para com a Santíssima Eucaristia”.

E se passarmos dos consumidores finais para os perpetradores efectivos dos “crimes contra o ambiente” – o aterro de sapais, os derrames de petróleo, as chaminés fumegantes – é claro que estes são o Grande Capital, os grandes conglomerados multinacionais regidos estritamente pela maximização do lucro para os seus accionistas e completamente desprovidos de alma ou de considerações espirituais. Aliás, nos nossos dias, nenhum país encarna melhor a agressão contra o ambiente do que a República Popular da China, que é regida por uma síntese pragmática e ultra-materialista de comunismo e capitalismo, em que as considerações sobre a existência de uma alma imaterial não têm qualquer lugar.

Por outro lado, quando se invoca o sentido de responsabilidade do homem para com a natureza, invocam-se frequentemente palavras sábias de líderes tribais dos índios norte-americanos ou de sábios budistas, cuja argumentação assenta na crença em entidades imateriais (que não são exclusivas dos humanos e podem habitar em ursos-pardos, sequóias e rios). Aliás, entre os defensores de causas ambientais há uma elevada proporção de pessoas que, rejeitando em simultâneo o dualismo judaico-cristão e o reducionismo da ciência cartesiana , aderiram às “novas espiritualidades”, uma beberagem onde flutuam nacos de budismo, taoísmo, teosofia, antroposofia, medicinas alternativas, “desenvolvimento pessoal”, mindfulness, yoga, astrologia e esoterismo.

Não há, pois, vínculo entre a crença numa alma imaterial e a atitude extractivista em relação à natureza.

Abram alas para o homem-couve

Piazza dá mostras de estar seriamente preocupado com a forma como o Homo sapiens ameaça o equilíbrio do planeta e equipara-o a um parasita demasiado voraz, “que está em vias de consumir toda a biosfera”: “A nossa espécie está verdadeiramente num impasse, os recursos da Terra tornam-se cada vez mais insuficientes para um número de seres humanos que cresce de forma exponencial”.

Não têm faltado sugestões sobre formas de buscar um equilíbrio mais harmonioso entre homem e natureza, mas nenhuma é tão descabelada quanto a que Piazza propõe: “poderíamos tentar utilizar a energia solar e o dióxido de carbono como as plantas”. E, argumenta, como a perspectiva de a nossa espécie poder adquirir espontaneamente capacidade fotossintética é “pouco provável” [sic], Piazza propõe que o façamos nós mesmos, “através da modificação do nosso património genético”. Uma vez que “ao longo dos últimos 20 anos desenvolvemos uma capacidade incrível de modificar o património genético de outros seres vivos, para os pormos a fazer coisas naturalmente impossíveis”, Piazza afirma que “o tempo necessário para dar a um animal a capacidade de produzir glucose através da fotossíntese seria de umas dezenas de anos”.

Se esta proposta tivesse surgido numa pulp magazine de ficção científica da década de 1930 suscitaria um sorriso divertido, vinda de um médico proeminente e director do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica é alarmante, pois revela uma profunda ignorância sobre o mundo em geral e sobre a fisiologia humana em particular. E pensar que Donald Trump se tornou alvo de chacota generalizada quando propôs combater a covid-19 injectando desinfectante nas veias ou irradiando os pulmões com luz ultra-violeta…

Na visão simplória de Piazza, bastaria cortar uma sequência de genes que determinasse a produção de cloroplastos e enxertá-la no DNA humano para que o homem passasse a fazer fotossíntese – é como acreditar que basta dotar um ferro de engomar com uma hélice para que esta se converta num helicóptero plenamente funcional ou que um moinho de café pode ser facilmente convertido numa máquina de barbear. Piazza parece crer que fazer um símio tornar-se numa criatura fotossintética é só um nadinha mais complicado do que inserir no genoma de um rato um gene que codifica a produção de GFP (proteína fluorescente verde) nas medusas, não percebendo que os ratos (e coelhos, macacos e porcos) fluorescentes criados por técnicas transgénicas são animais essencialmente indistinguíveis dos seus pares e que a sua diferença é meramente “cosmética”, enquanto existem diferenças estruturais, radicais e profundas entre plantas e animais superiores.

Ratos sob luz ultra-violeta: os da esquerda e da direita são ratos transgénicos com capacidade para sintetizar GFP, o rato do meio é “normal”

Bastaria meditar um pouco para concluir que, apesar de a natureza ter tido muitas centenas de milhões de anos para fazer experiências e de, nesse interim, ter gerado um total de 5 mil milhões de espécies , nunca ter produzido o ovo de Colombo que é o animal fotossintético. Na verdade, seria muito mais acessível à engenharia genética criar um homem dotado de asas plenamente funcionais ou capaz de respirar debaixo de água do que um capaz de sustentar-se pela fotossíntese.

Mas, chegados a este ponto do livro, a imaginação de Piazza parece ter tresvariado e escorraçado o mais elementar bom senso: “Uma evolução deste género da nossa espécie teria certamente uma enorme influência na sua estrutura socio-cultural. Haveria provavelmente uma relocalização das populações para zonas mais ensolaradas e uma modificação radical na nossa forma de vestir, de modo a permitir que a nossa pele ficasse exposta ao sol. Haveria também uma obsolescência progressiva de inúmeras actividades em torno das quais se construiu a nossa sociedade, nomeadamente a criação de animais e a agricultura. Com a diminuição acentuada da necessidade produzir ou obter bens de primeira necessidade, as guerras desapareceriam progressivamente, excepto as que se destinassem a ganhar um local ao sol […] Pouco a pouco, perderíamos o nosso comportamento espaventoso para adquirir um mais minimalista, como o das plantas”. Dir-se-ia que Piazza já representa o primeiro passo nessa transição: pensa como um nabo.

Entre os inúmeros absurdos da proposta para a criação do Homo photosyntheticus, consideremos quatro.

1) Uma vez que a energia solar se apresenta sob forma muito difusa, as plantas necessitam de possuir uma proporção área/volume muito elevada, de forma a maximizar a superfície exposta à luz e à absorção de dióxido de carbono (a excepção são as plantas carnudas). Os animais são, comparativamente, muito mais compactos, possuindo uma proporção área/volume baixa. Algumas plantas, sobretudo as espécies arbóreas, podem possuir troncos volumosos, mas a maior parte do volume dos troncos corresponde a células mortas, enquanto toda a massa corporal dos animais corresponde a células vivas (com excepção de pêlos, cabelos, cornos e outras “excrescências”) e, logo, a elevados consumos de energia.

2) O metabolismo dos animais superiores – mesmo dos mais lerdos, como as preguiças e as tartarugas – consome quantidades de energia muito superiores às de uma planta de massa idêntica. Esta diferença radica, entre outras razões, no facto de os animais serem móveis e capazes de reacções rápidas, enquanto as plantas são, basicamente, estáticas. Apesar da sua relativamente baixa proporção área/volume, um cacto de 70 Kg é capaz de produzir por via fotossintética toda a energia de que necessita, mas essa energia é uma pequena fracção da que é necessária para manter vivo um animal de 70 Kg, mesmo que este abandone o seu “comportamento espaventoso para adquirir um mais minimalista”. Os músculos dos animais e, em particular, o cérebro dos humanos são tremendos sorvedouros de energia, que nunca poderia ser assegurada pela capacidade fotossintética dos nossos corpos. E, nos animais de sangue quente, há que contar com o consumo de energia adicional necessário para manter a temperatura corporal constante.

3) Os organismos cuja fonte de energia é a fotossíntese têm, naturalmente, de maximizar a exposição solar. Isto teria implicações muito mais sérias para o Homo photosyntheticus do que deixar de usar roupa ou trocar a enevoada Escócia pela soalheira Maiorca: implicaria passar todo o dia no exterior (de preferência imóvel, para poupar energia), fossem quais fossem as condições atmosféricas – algo para que o corpo humano não está preparado (mesmo que não sucumbisse às temperaturas extremas e à desidratação, morreria provavelmente de cancro da pele).

4) Mesmo que, por absurdo, esta grotesca utopia transgénica fosse viável e o homem-couve se tornasse auto-suficiente em termos de alimentação, isso não resolveria o problema do esgotamento dos recursos do planeta. As necessidades calóricas do Homo sapiens rondam as 2000-2500 kcal/dia (variando consoante o peso, o clima e a actividade física), mas a energia e recursos naturais envolvidos na alimentação, entendida na sua forma mais simples, são uma pequena fracção do consumo de energia e recursos do homem do século XXI. Os hominídeos de há um milhão de anos, desconhecedores do uso do fogo e de utensílios sofisticados, não requeriam mais de 2000 kcal/dia, mas o Homo sapiens caçador-recolector de há 100.000 anos já consumia 2.5 vezes esse valor, pois queimava lenha para cozinhar e para se aquecer. Quando o Homo sapiens começou a praticar uma forma primitiva de agricultura os requisitos energéticos subiram 2.5 vezes em relação ao estádio anterior. A escalada no consumo energético foi acompanhando a sofisticação civilizacional e estima-se que atinja hoje c. 230.000 kcal/dia. Deste consumo de energia, apenas 10.000 kcal correspondem à alimentação – as necessidades do nosso corpo mantêm-se nos 2000-2500, mas a produção, distribuição, processamento, refrigeração e confecção dos alimentos consome actualmente muito mais energia do que a que está contida nos alimentos. As restantes 220.000 kcal/dia correspondem à construção e manutenção de edifícios e infra-estruturas, ao aquecimento, refrigeração e ventilação das nossas casas e locais de trabalho e lazer, aos transportes, ao fabrico da miríade de produtos que satisfazem as nossas necessidades e caprichos – sim, ao contrário do que pensam Piazza e muitos ambientalistas desorientados que nos exortam a salvar o planeta trocando o bife pela salada de legumes comprados a agricultores locais, a produção de alimentos é apenas uma pequena parte da pegada ecológica da humanidade

Para diminuir drasticamente o consumo de energia e recursos naturais não é preciso que a engenharia genética invente um improvável Homo photosyntheticus, bastaria que o Homo sapiens regressasse à sua vida de caçador-recolector ou agricultor rudimentar, quando os seus requisitos energéticos eram uma pequena fracção do que são hoje.

Australian natives preparing meal from animal they have hunted.

Aborígenes australianos, gravura c.1895

Em conclusão, no que à crise ambiental diz respeito, Piazza vem somar-se a uma legião de eco-pregadores com graves lacunas e ideias equívocas no que respeita ao funcionamento dos sistemas nacionais e das sociedades humanas e que propõem medidas desprovidas da mais elementar sensatez e fundamentação. No que à mente humana diz respeito, Homo biologicus providencia um resumo acessível e claro de alguns avanços na área da biologia nas últimas décadas, sobretudo no que diz respeito às interacções entre genoma, cérebro e estímulos exteriores, permitindo iluminar muitos aspectos do comportamentos humano e pondo em causa a concepção dualista do ser humano como estando dividido entre um corpo material e uma alma imaterial.

É inevitável fazer-se um paralelo entre Homo biologicus e a trilogia Sapiens: Breve história da humanidade (ver O macaco que se converteu em Deus), Homo Deus (ver Quer tornar-se num deus? Pergunte como a Yuval) e 21 lições para o século XXI (ver O que devemos ensinar aos nossos filhos? Há um guru que mostra o caminho), de Yuval Noah Harari, até porque a escolha do título do livro de Piazza sugere que se pretende capitalizar o sucesso desmedido de Homo Deus entre as elites da economia e do poder. A ideia de que “as nossas memórias, ilusões e pensamentos não existem numa qualquer área imaterial mais elevada. Em vez disso, são avalanches de sinais eléctricos disparados por milhões de neurónios”, expressa por Harari em Homo Deus, é central à mundividência de Homo biologicus e quer Harari quer Piazza estão convencidos de que daqui decorre que o livre arbítrio humano é uma ilusão e que “tal como os ratos, também os humanos podem ser manipulados e que é possível, estimulando os locais certos do cérebro, criar ou eliminar até mesmo sentimentos complexos como o amor, a raiva, o medo e a depressão” (in Homo Deus). Enquanto Piazza sugere que o futuro da humanidade poderá estar no homem fotossintético, Harari, propõe uma utopia menos pueril e bem mais sinistra: a de descartarmos o nossa velha e obsoleta carcaça e nos convertermos num cérebro imerso numa solução salina, que é estimulado por descargas eléctricas e químicas que lhe produzem a ilusão de viver uma vida recheada de emoções.

A recomendação anteriormente feita em relação à trilogia de Harari – ler com infinitas cautelas, pois as reflexões válidas estão disseminadas num caldo de meias-verdades, falácias, tolices e ideias perigosíssimas – aplica-se também a Homo biologicus.