Se a Justiça portuguesa se caracteriza na área económico-financeira por processos morosos que costumam demorar vários anos, por norma, então o segundo julgamento de Armando Vara poderá fixar um novo paradigma.
Estão marcadas apenas três sessões, sendo que a última (a 23 de junho) já foi definida como sendo a sessão para as alegações finais. É, assim, expectável que a leitura da sentença ocorra ainda antes das férias judiciais, marcadas para dia 15 de julho.
Sem grandes imbróglios jurídicos à vista, o coletivo de juízes, contudo, tem uma decisão para tomar no início do julgamento: há duas testemunhas indicadas pelo Ministério Público (MP) que pediram para ser excluídas. Porquê? São arguidos da Operação Marquês que invocam o princípio da não auto-incriminação para não testemunharem.
A contestação que não contesta e as testemunhas que não querem ser testemunhas
Se no processo Face Oculta estavam em causa vários crimes de tráfico de influências, que valeram a Armando Vara uma pena de prisão de cinco anos que começou a cumprir a 16 de janeiro de 2019 no Estabelecimento Prisional de Évora, no julgamento que vai iniciar-se esta quarta-feira no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Vara será julgado apenas um crime de branqueamento de capitais.
O julgamento arrisca ser supersónico, quando comparado com os dois anos e 10 meses que durou o julgamento do processo Face Oculta. Precisamente porque apenas tem Armando Vara como arguido e apenas serão ouvidas 11 testemunhas, enquanto que o famoso caso do sucateiro Manuel Godinho tinha 34 arguidos e um número de testemunhas incomensuravelmente superior.
O coletivo de juízes que julgará Armando Vara será liderado pelo juiz Rui Coelho, sendo que um dos asas será o juiz Francisco Henriques. No julgamento de Ricardo Salgado, estes dois juízes invertem posições.
Ao contrário do que aconteceu com Salgado, a defesa de Armando Vara entregou bem antes do final do prazo a sua contestação à pronúncia do juiz Ivo Rosa. Na prática, o advogado Tiago Rodrigues Bastos optou por não contestar os factos que são imputados ao seu cliente — o que não quer dizer que não o faça durante o julgamento.
Rodrigues Bastos indicou quatro testemunhas abonatórias, das quais se destacam dois socialistas: Edite Estrela, ex-presidente da Câmara de Sintra e grande amiga de José Sócrates, e Mota Andrade, ex-deputado e ex-presidente da distrital do PS em Bragança. Carlos Santos Ferreira, ex-líder da Caixa Geral de Depósitos e do Banco Comercial Português que levou Vara para as administrações daqueles dois bancos, é outra testemunha do ex-ministro do Desporto de António Guterres.
No caso das sete testemunhas escolhidas pelo MP, destacam-se o suíço Michel Canals, gestor financeiro de Armando Vara, Bárbara Vara (filha do ex-ministro do Desporto), Joaquim Barroca (ex-vice-presidente do Grupo Lena), Rui Horta e Costa (ex-acionista do Grupo Vale do Lobo) e Diogo Gaspar Ferreira (ex-administrador do Grupo Vale do Lobo).
No caso destas últimas três testemunhas, estão em causa arguidos da Operação Marquês que eram suspeitos de vários crimes de corrupção, sendo que Barroca foi acusado de corromper José Sócrates, e Horta e Costa e Gaspar Ferreira por alegadamente corromperem o ex-primeiro-ministro e o próprio Armando Vara.
Ora, é precisamente esta condição processual que levou Rui Horta e Costa e Diogo Gaspar Ferreira a requererem ao juiz Rui Coelho que os dispense de ser testemunhas. Invocando o facto de a decisão instrutória do juiz Ivo Rosa — que não os pronunciou por nenhum dos crimes imputados pelo MP — ainda não ter transitado em julgado devido ao recurso que o procurador Rosário Teixeira deverá apresentar até julho, Horta e Costa e Gaspar Ferreira querem ser excluídos da lista de testemunhas da acusação.
Horta e Costa chega mesmo a dizer que não responderá a perguntas relacionadas com os factos que o MP imputou no despacho da acusação da Operação Marquês, em nome do princípio da não auto-incriminação.
A decisão de Ivo Rosa que levou Vara a julgamento
O crime pelo qual Armando Vara irá responder no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa está indiretamente ligado ao chamado caso Vale do Lobo — um dos três segmentos da acusação da Operação Marquês contra José Sócrates que incluía o ex-ministro.
Na prática, o MP imputava a Sócrates, enquanto primeiro-ministro, e a Vara, enquanto administrador da Caixa Geral de Depósitos (CGD), um crime de corrupção passiva em regime de co-autoria por alegadamente terem sido corrompidos por via de pagamentos de um total de dois milhões de euros para facilitarem a aprovação de um empréstimo de 284 milhões de euros na CGD, em benefício de um grupo de investidores que queriam adquirir o resort algarvio de Vale do Lobo. Rui Horta e Costa e Diogo Gaspar Ferreira seriam os alegados corruptores ativos.
Ora, Ivo Rosa considerou que os autos não continham prova indiciária da prática de tais crimes de corrupção e não pronunciou os arguidos. O juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal desvalorizou ainda os circuitos financeiros que indiciam que Diogo Gaspar Ferreira e Rui Horta Costa terão transferido cerca de dois milhões de euros para uma conta de Carlos Santos Silva na Suíça, tendo, posteriormente, o alegado testa-de-ferro de Sócrates transferido cerca de um milhão de euros para Armando Vara.
Vara acabou por ser pronunciado por um crime de branqueamento de capitais devido à forma como reuniu cerca de dois milhões de euros numa conta bancária aberta na Suíça em nome da sociedade offshore Vama Holdings — fundos esses que são classificados por Ivo Rosa como sendo “montantes não declarados, em sede fiscal, em Portugal”, logo tendo na sua origem “ilícitos de fraude fiscal”.
Vara fez circular esses fundos por outras empresas offshore por si controladas (como a Walker Holdings, Orsatti Corp., Zelo Holdings e Desrel Holdings), até uma parte do dinheiro chegar a Portugal para financiar a aquisição de um apartamento em Lisboa. Daí a pronúncia por um crime de branqueamento capitais.
E por que razão Ivo Rosa não pronunciou igualmente Armando Vara por fraude fiscal? Porque os quatro crimes de fraude fiscal qualificada imputados pelo MP já estariam prescritos no momento em que foi deduzida acusação contra o ex-gestor da CGD.
As explicações que Vara deu perante Ivo Rosa
Apesar de a Agência Lusa ter noticiado que a saída precária de Armando Vara do Estabelecimento Prisional de Évora lhe permitirá estar presente na primeira sessão do julgamento, não é certo que o ex-ministro do Desporto venha a depor. Como o fez perante o juiz de instrução Ivo Rosa no início de fevereiro de 2019.
A motivação de então já não existe: Armando Vara queria afastar qualquer culpa da sua filha Bárbara Vara, que tinha sido acusada pelo MP da alegada prática de dois crimes de branqueamento de capitais. O grande amigo de José Sócrates — e que, como o ex-primeiro-ministro, também abandonou o PS — assumiu perante Ivo Rosa que a sua filha nada tinha a ver com a criação da Vama Holdings e explicou a origem dos fundos: remuneração e prémios pela sua atividade como consultor após ter saído do Governo de António Guterres em 2000, devido ao escândalo da Fundação para a Prevenção e Segurança Rodoviária.
Vara afirmou que tal trabalho de consultor — que se desconhecia até ao momento das suas declarações — ocorreu durante a fase em que também foi diretor da CGD e antes de iniciar funções de administrador da Caixa por nomeação do Governo de José Sócrates, tendo sido prestado a empresas portuguesas com operações no leste.
Por várias vezes, Armando Vara recusou-se a revelar os nomes ou até o setor da atividade de tais sociedades, acrescentando apenas que foi remunerado em numerário, vulgo ‘dinheiro vivo’, que nunca declarou tais rendimentos ao fisco português e que utilizou a famosa rede de branqueamento de capitais do Monte Branco para fazer chegar o dinheiro ‘limpo’ à Suíça, entregando para o efeito malas de ‘dinheiro vivo’ na loja do cambista Francisco Canas na baixa de Lisboa.
O gestor disse ainda que era compatível ser diretor de um banco público e, ao mesmo tempo, ser consultor para entidades terceiras, assegurando que não estava impedido de fazer consultadoria. Mas, durante o interrogatório de Ivo Rosa, Armando Vara não deixou de admitir que os prémios de sucesso pelos seus alegados trabalhos como consultor acabaram por ser pagos quando já era administrador da Caixa e que, enquanto gestor do banco público, não podia receber verbas como consultor e muito menos em numerário.
Daí ter pedido à sua filha mais velha que desse o nome às sociedades e abrisse as contas bancárias, até porque esta estava a começar a sua carreira profissional.
Tendo em conta que o juiz Ivo Rosa não deu credibilidade a estas — e a outras — explicações, resta saber se Armando Vara aceitará falar perante o coletivo liderado pelo juiz Rui Coelho.