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"Há um mês que parece que já se encerrou o ano de 2021, pelo menos na Cinemateca Brasileira", diz-nos o antigo programador da instituição

NurPhoto via Getty Images

"Há um mês que parece que já se encerrou o ano de 2021, pelo menos na Cinemateca Brasileira", diz-nos o antigo programador da instituição

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Sérgio Silva: “Quando Gilberto Gil foi ministro, a cultura era vista como um trabalho, não era diversão”

Realizador e ex-programador da Cinemateca Brasileira, Sérgio Silva foi jurado no DocLisboa. Em entrevista, fala dos filmes como "guia para o mundo" e do estado da cultura brasileira.

“A Terra Segue Azul Quando Saio do Trabalho”, o mais recente filme de Sérgio Silva, teve honras de sessão de abertura na última edição do DocLisboa. É a história de um filme imaginário de um funcionário de um arquivo cinematográfico. É rude, a obra possível sem meios e em estado de confinamento. Nas entrelinhas ouve-se o Brasil atual e a vida do realizador, antigo programador da Cinemateca Brasileira.

Sérgio Silva trabalhou na Cinemateca desde 2007 e em entrevista conta-nos como as condições de trabalho na instituição se deterioraram a partir de 2013, sobretudo nos últimos anos. Ao falar sobre o seu filme, nos seus trabalhos enquanto realizador e programador, percebe-se o seu fascínio pelos arquivos, a história do cinema e a sua constante reescrita graças à forma como o passado vai sendo reconstruído, graças às novas tecnologias. O recente incêndio na Cinemateca Brasileira põe em causa a descoberta desse passado e de um constante estímulo pela reescrita da história do cinema brasileiro e não só.

Atualmente, vive afastado da Cinemateca Brasileira. Está exausto com a situação do setor cultural – subentende-se nas suas palavras – e saiu de São Paulo para viver na Bahia, numa zona onde nem tem rede de telemóvel. Ao longo da conversa, mostrava-se feliz por ter saído de uma certa bolha, causada pela sua situação na Cinemateca e pela pandemia, e por ter encontrado uma nova realidade em Portugal, uma que o acarinhou – como demonstrado pela forma como fala de como o seu filme foi recebido – e por estar a viver de perto outras formas de programar e de pensar o cinema.

[o trailer de “A Terra Segue Azul Quando Saio do Trabalho”:]

O que tem feito nestes últimos dias em Portugal?
O meu filme irá passar em Coimbra daqui a uns dias. Tenho feito algumas coisas de trabalho, por resolver. Tudo no Brasil tem ficado em suspenso. Trabalhar com cultura no Brasil já era complicado, agora é quatro vezes mais.

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O seu filme passou na sessão de abertura do DocLisboa…
Foi incrível. É um filme muito pequeno, muito caseiro. Pude fazer coisas nele que não costumo fazer, tive menos pudor neste filme. Fazia algum tempo que não conseguia experimentar enquanto filmava, porque passei muito tempo a fazer filmes de ficção com atores, ficção, com texto muito marcado. Quando se tem dinheiro em jogo na produção de um filme, as coisas começam a separar-se.

E imagino que com algum dinheiro envolvido não dê para experimentar tanto.
Por vezes não. Com este filme queria falar de certas coisas e queria vivenciá-las de outro género. Faço filmes como um processo terapêutico, este era um filme pequeno, íntimo, feito a pensar – a princípio – numa tela pequena. Mandei o filme para o DocLisboa, quando recebi o convite para a sessão de abertura fiquei meio chocado. Mas fica muito bem no festival, pela sua seleção de filmes. O festival tem muitos filmes pessoais, reflexivos, que mostram coisas que de outra maneira não se consegue filmar. Por vezes não se consegue filmar por impedimentos políticos… mas também emocionais, reencenar certas coisas é difícil. Quando pensei neste filme, queria separar o som e imagem e lidar com as imagens de arquivo pensadas por personagens fictícias, vivendo num mundo de arquivos. Senti que o filme aqui teve uma aceitação que eu não esperava que pudesse ter. E foi bem recebido… acho que o filme às vezes é um bocado ofensivo.

"Comecei a relacionar-me com o cinema de uma maneira que as crianças hoje se relacionam com a internet: via filmes porque se passava em algum local que queria descobrir. Usava para pesquisar coisas. Para mim era quase um Google: como saber algo sobre."

Porquê?
Vivemos um momento muito cosmético das coisas, preocupado com o acabamento. Os filmes ficam produtos mais bem acabados e cada vez se usa menos o cinema para um esboço de ideias. Têm de estar acabadas e prontas. Eu costumava fazer filmes com este processo muito aberto e descobria o filme na finalização, por exemplo, que tom irá ter o som deste filme, como irá soar: mesmo com um roteiro fechado, no final é possível experimentar outras coisas. Neste filme permiti-me menos articulações, menos coisas, me cobrei muito menos, em como ele poderia soar. Tudo me soava muito arranhado no filme. Tudo isto por causa de recursos técnicos, decidi que em termos de som e imagem o filme não conseguiria ser mais agradável. Tecnicamente iria ter esses problemas. E esses problemas seriam o filme. E alguns problemas até aumentei: se é esse o caminho que vou fazer, então posso atrapalhar mais [risos].

Como se torna realizador num país onde é tão difícil ser realizador?
Quando era criança tinha problemas de saúde, convulsões, sopro no coração, e ficava muito em casa: a minha mãe era muito preocupado. O meu médico proibiu-me de fazer coisas. A chegada de um aparelho de videocassetes mudou a minha vida. Comecei a relacionar-me com o cinema de uma maneira que as crianças hoje se relacionam com a internet: via filmes porque se passava em algum local que queria descobrir. Usava para pesquisar coisas. Para mim era quase um Google: como saber algo sobre. Foi também numa altura em que se celebrava o centenário do cinema e saíram muitas listas, listas e listas.

Os arquivos fascinam-no?
Sim. E a ideia de filmes perdidos. Filmes de ficção… filmes que se perderam, ideias que parecem jogadas em alguns arquivos, em algumas estantes. A história do cinema, sobretudo a história do cinema brasileiro – à qual me dedico mais – é muito cheia de buracos. Os filmes perdem-se…

"O trabalho de programação é um trabalho de pregar para os menos convertidos", diz-nos Sérgio Silva

Há muitos filmes que se perderam?
Sim. A produção de cinema silencioso, do mundo todo, se perdeu um bocado. Por causa do nitrato, que se incendiava, muitos filmes do começo do século XX não existem. Por outro lado, a gente sabe da existência desses filmes porque existem as sobras, fragmentos de um filme perdido. Os pesquisadores debruçam-se muito tempo para provar que um filme existiu a partir de recortes do jornal, pessoas que estiveram envolvidas na produção, sobreviveram e falam da existência desse filme. Esse é um género que também produziu muita literatura. Tem tantas biografias ou autobiografias de artistas, sobretudo dos pioneiros do cinema, que é uma coisa que adoro, eles criam uma indústria do cinema – viveram um período –, que a gente não consegue mensurar. E não conseguimos ver, porque alguns desses filmes não existem. Tudo é baseado nos indícios da existência e relato das pessoas. O relato parece sempre uma grande aventura, sobretudo no início de um século novo, que trazia modernidade. Essa coisa de se perder documentos, neste caso, filmes, num século onde isso foi tão popular e que aquilo parece tão parte da vida dos envolvidos, lidar com isso foi algo que sempre me interessou. Ocupa o campo da memória mundial, pelo menos em termos audiovisuais, que pode ser segurado, ainda. Os fragmentos misturam-se com os relatos, com o que imaginou que aconteceu, porque as pessoas não se conseguem lembrar passados 60, 70, 80 anos. A recuperação dos filmes nos arquivos é um trabalho incrível; mas tem esse lado da recuperação dos indícios. Esses indícios criam uma história do cinema e podem criar outras histórias do cinema que não teremos oportunidade de ver. E isso interessa-me, até para se pensar noutros filmes.

Na apresentação do seu filme no DocLisboa disse que estava a pregar para convertidos. Como programador de cinema, como se prega para não convertidos, ou seja, como se convence as pessoas que não percebem a importância do cinema a darem importância ao cinema?
Isso tem sido muito difícil. O trabalho de programação é um trabalho de pregar para os menos convertidos. Trabalho quase sempre com programação de cinema brasileiro, é desconhecido em grande parte do mundo. Mesmo no Brasil, vai ser sempre desconhecido, porque esteve sempre distante do público. Essa aproximação com o público é um complicador que está sempre presente. Sobretudo ligando com pessoas mais jovens, isso era algo bom de fazer na Cinemateca, que era fazer sessões pensando em pessoas que vão ter pela primeira vez o contacto com uma sala de cinema: isso era muito comum. Tenho a sensação de que isso vai ser cada vez mais, tem muito trabalho com escolas, temos visto muita gente jovem indo ao cinema. E também há os não tão jovens.

Que filmes tenta mostrar desse cinema brasileiro?
Gosto de mostrar os filmes brasileiros a que consegui aceder de alguma maneira e sei que não estão tão acessíveis. Esses filmes entusiasmam-me muito. Tem muitos filmes no Brasil que ficam inacessíveis, desconhecidos, ou porque são cópias únicas, não tiveram boa distribuição ou não chegam à sala de cinema. Muitas vezes vemos grandes filmes no meio dessa massa. Descobrir esses grandes filmes e como se conectam com a história do cinema e a história mundial.

"Manter uma Cinemateca não é barato. A produção brasileira já era muito distante da preservação de filmes, de um modo geral. Preservar filmes é mais barato do que fazê-los, mas num país onde é tão difícil fazer cinema, dificilmente irá ver uma classe que irá lutar por guardar, preservar os filmes, como você vê o tempo todo para financiamento, para a produção de novos filmes. Porque as pessoas precisam de sobreviver."

Falando agora da Cinemateca Brasileira. Sentiu alguma repressão nos últimos anos?
Há a repressão económica, que é a maior de todas nestes tempos. Sobreviver é uma luta constante, temos de estar sempre a trabalhar e lutar para ganhar dinheiro num trabalho que não dá muito dinheiro. A preservação de filmes é muito caro. Manter uma Cinemateca não é barato. A produção brasileira já era muito distante da preservação de filmes, de um modo geral. Preservar filmes é mais barato do que fazê-los, mas num país onde é tão difícil fazer cinema, dificilmente irá ver uma classe que irá lutar por guardar, preservar os filmes, como você vê o tempo todo para financiamento, para a produção de novos filmes. Porque as pessoas precisam de sobreviver. A Cinemateca já vivia um distanciamento nesse sentido.

Mas há muito tempo?
Sim, porque desde 2013 teve uma primeira interrupção na estrutura da Cinemateca como ela se tinha dado neste século. Em termos de setor, equipas.

Estava lá desde quando?
2007. Em 2013 a gente teve essa primeira interrupção violenta de corte de recursos e demissão de toda a equipa. Em 2014 voltei, eu e outros, mas uma equipa muito pequena, menor do que aquela que havia em 2012. Desde então, até 2020, havia a iminência dos contratos acabarem. Sempre que havia um contrato por acabar… sentia-se que era o fim. Era tudo muito interrompido, fazíamos o trabalho, tínhamos um bom fluxo de formação de público, uma boa média de público na salas. O trabalho era feito por poucas pessoas, mas ia acontecendo. Sentiu-se de maneira mais brutal com a mudança da presidência, primeiro com a saída da Dilma, porque houve a extinção do Ministério da Cultura, passou a ser uma Secretaria. Esse desprestígio da cultura, pelo Estado brasileiro, descuido mesmo… antes havia algo ligado ao prestígio, mais pela vaidade, por ter a imagem de um povo, do que pela perceção da importância da cultura – isto no período anterior. Quando o Gilberto Gil foi ministro, a cultura era vista como um trabalho, não era diversão. Era trabalho.

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"A Cinemateca interrompeu os contratos de trabalho com as pessoas, já não recebemos os nossos salários desde janeiro do ano passado, foi um semestre sem salários e com os contratos existindo"

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E agora?
Existe uma tentativa de desmoralização da classe. Tornar a ideia que é uma classe corrupta, que vive de benefícios em suas casas, enquanto o povo brasileiro trabalha para sustentar estes artistas que têm financiamento. No entanto, foram os artistas que tornaram a vida possível nestes períodos de quarentena. Seria insuportável não ter filmes para ver, livros para ler, música para ouvir. Mas, sobretudo, filmes. O cinema tem aquele todo, de imagem, som. O cinema é o que consumimos mais no dia a dia, ele permite abstração, é uma imersão muito poderosa. E que ajuda muito a saúde mental nestes períodos. A grande violência, a grande repressão que aconteceu, foi de que as pessoas que produzem cultura foram sendo colocadas como os grandes beneficiadores de uma sociedade que trabalha. Como se não fosse um trabalho. É difícil não olhar para o seu próprio trabalho como um trabalho, você não conseguir… a sociedade pensar “são só filmes”. Por isso, ter um filme tão pequeno a passar num festival deste tamanho, é um orgulho muito grande.

Há uma intenção de destruir a Cinemateca e apagar a memória de alguma cultura brasileira?
O governo não parece importar-se com 600 mil mortos. Muito se alertou sobre todos os perigos e pessoas morreram. A gente precisou de levar um ano e meio para seis estados brasileiros não registarem qualquer morte por Covid. É terrível. A Cinemateca interrompeu os contratos de trabalho com as pessoas, já não recebemos os nossos salários desde janeiro do ano passado, foi um semestre sem salários e com os contratos existindo. Escrevi diversos emails para as pessoas que me contrataram, tentando perceber a situação, ou conversar sobre. Nunca tive resposta. A direção da Cinemateca alertou a Secretaria da Cultura para o que estava acontecendo.

E ninguém deu resposta?
Parece que nunca entrava nos ouvidos. Entrava em processos burocráticos. Da maneira que demora, posso pensar que é um desejo. Pelo menos isso. Apesar dos alertas, o Estado não fez nada para reverter a situação. Só pode ser intencional, um desejo.

"Perderam-se dados muito importantes para historiadores, sobre como se fazia a produção. Dados científicos sobre produção cultura de um país, num período de ditadora militar. Que é um período que interessa o atual governo: podiam fazer bom uso daquilo também."

Que impacto teve o incêndio?
Em termos de dados precisos não tenho. Distanciei-me um pouco da equipa neste último ano, mudei de estado, saí de São Paulo, vivo no interior da Bahia, num local que não tem sinal de celular. Não queria ficar à espera de uma solução, durante muitos anos fiquei à espera de uma solução. Foram muitos meses à espera que o telefone tocasse para voltar ao trabalho. Mas foi divulgado que se perderam filmes de distribuidoras estrangeiras. Provavelmente haveria lá alguns filmes brasileiros, mas a grande maioria será de produção francesa, italiana, filmes independentes, alguns clássicos do cinema americano, francês. Uma coleção importante que a Cinemateca tinha desses títulos que estavam nesses galpões e era o que alimentava a sala de cinema da Cinemateca. Não pode exibir sempre os filmes brasileiros no seu formato original, por razões de preservação, mas os filmes de difusão, os não-brasileiros, esses títulos foram os mais danificados. E uma grande parte de documentos em papel, sobre a Embrafilme, que era uma das empresas estatais que mais filmes produziram no Brasil. Perderam-se dados muito importantes para historiadores, sobre como se fazia a produção. Dados científicos sobre produção cultura de um país, num período de ditadora militar. Que é um período que interessa o atual governo: podiam fazer bom uso daquilo também.

E como vê o futuro?
Todas as soluções têm sido jogadas para 2022. Me dá a sensação que nada vai acontecer este ano. Há um mês que parece que já se encerrou o ano de 2021, pelo menos na Cinemateca Brasileira.

Tenciona voltar para lá?
Não sei dizer…

Está concentrado na carreira de realizador?
Não, interessa-me programar filmes, mas não sei se na Cinemateca Brasileira. Para isso ser um desejo, precisaria de condições de trabalho que nunca tive, que imagino que nunca vá ter. No atual momento, precisava de me emancipar daquele lugar. É uma coisa incrível, trabalhar nisto é uma delícia. E uma vez contaminado, fica difícil distanciar-se e dizer que não quer mais. Felizmente, outras coisas foram acontecendo que me dizem que existem outros mundos para além daquilo. Agora é que percebo que há outro mundo além das portas do acervo da Cinemateca. Sinto que é preciso que as coisas saiam de lá, não é possível que um arquivo com dimensões nacionais, num país daquele tamanho, ficar concentrado num bairro. No final de contas, se uma Cinemateca não tem condições ideais, ela só vai impactar um bairro. A Cinemateca deve ter capacidade de fazer mais do que isso.

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