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Reza a lenda que o primeiro festival literário a existir em Portugal foi o Correntes d’Escrita na Póvoa de Varzim (isto se descontarmos o festival RTP da Canção, que realmente fez o povo comover-se e cantar poesia, fosse ela de Ary dos Santos ou de Manuela Bravo). Foi em 2000 que Francisco Guedes conseguiu trazer para a lusa pátria o modelo francês dos festivais e uma utopia: uma cidade de província, escritores fora do seu habitat natural (as cidades), e um povo ávido de livros e cultura. Estiveram 70 pessoas.
Dezassete anos depois, em fevereiro de 2016, a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, organizadora do evento, anuncia triunfante: estiveram 700 pessoas. O que é que se passou durante este tempo que fez das Correntes d’Escritas um evento glossy onde todos querem ir ver e ser vistos? Terão sido as anedotas de Onésimo Teotónio de Almeida que em 17 anos se tornaram mais engraçadas? Foram as preleções de Ana Paula Tavares e Manuel Rui, eternos representantes de Angola ou a poesia de Luís Carlos Patraquim, eterno representante de Moçambique, que se tornaram de súbito imperdíveis para os portugueses? Ou terão sido Rui Zink e Inês Pedrosa, Manuel Jorge Marmelo convidados para todas as edições do Correntes desde 2001 até agora, que ganharam o estatuto de ícones da literatura portuguesa? Quem sabe se, 522 anos depois do Tratado de Tordesilhas, o espanhol José Manuel Fajardo (em todas as edições desde 2001) nos pôs a querer saber tudo o que se passa na literatura espanhola?
Quem também lá esteve desde o início é o vereador da Cultura da Póvoa, Luís Diamantino, um dos arquitetos do festival que diz custar cerca de 70 mil euros, dos quais 30 mil são pagos pela autarquia e os outros por patrocínios e parcerias. Interrogado pelo Observador sobre o facto de o Correntes d’Escritas ter um núcleo de escritores que lá estão todos os anos, independentemente do tema discutido, de terem ou não livros novos, de terem ou não coisas relevantes para trocar com o público (que é quem efetivamente paga este evento), o vereador escolheu legitimar esta escolha falando da existência “de uma lógica de afetos entre estes escritores e o público”.
Esta “lógica de afetos” (como comprovam estudos sociológicos feitos em torno do mítico festival teatral de Avignon, França) é uma das mais utilizadas pelas organizações de eventos deste género, para justificar a recorrência dos mesmos convidados. Afinal, parece que a tendência de brincar aos habitués não é apenas um problema luso. O próprio modelo de festivais parece alimentar-se desta lógica. Veja-se os festivais de música onde o fenómeno dos “convidados habituais” se repete. Contrariando o discurso oficial assente na ideia de renovação e desenvolvimento.
Dezassete anos e muitos milhares de euros depois, temos então um núcleo de escritores que, quer se goste, quer não se goste, quer sejam ou não escritores e poetas relevantes, quer façam ou não grande literatura, quer sejam ou não pensadores originais e oradores iluminados, estão sempre no Correntes d’Escritas.
Onésimo Teotónio de Almeida, Manuel Rui, Ana Paula Tavares, Inês Pedrosa, Rui Zink, José Manuel Fajardo, Luís Carlos Patraquim, Manuel Jorge Marmelo, Lídia Jorge, Ana Luísa Amaral, Patrícia Reis, Francisco José Viegas, Valter Hugo Mãe, Mário Cláudio, João Luís Barreto Guimarães. Mas há também os jornalistas habitués como José Carlos Vasconcelos, Ana Sousa Dias, Maria Flor Pedroso, Vítor Quelhas, João Gobern, José Mário Silva).
Mas não pode dizer-se que não há renovação: a partir de 2005, há que contar com a presença anual de Manuel Alberto Valente e Maria do Rosário Pedreira, em 2006 entram para o grupo dos indispensáveis João de Melo, Karla Suarez (escritora cubana), Fernando Pinto do Amaral, Maria Manuel Viana e Luís Sepúlveda. Com o passar dos anos, o grupo alargou-se a Maria Teresa Horta, Pedro Vieira, Afonso Cruz. Em 2016, todos eles continuavam na lista dos 70 convidados do festival.
Nos cinco dias de festival, pode sentir-se verdadeiramente essa familiaridade conquistada, como quando em 2012, Inês Pedrosa saltou da plateia para o palco para falar com Rui Zink sobre “aquele vez em que eu fui jantar em tua casa”. As performances de menino maroto de Valter Hugo Mãe, a novela que Manuel Jorge Marmelo conta sobre a sua vizinha e à qual todos os anos acrescenta um capítulo, até João de Melo (prémio Vergílio Ferreira, 20015), cuja participação já consistiu em contar o caminho que fez desde casa até ao festival.
É uma “grande família” como gosta de dizer o vereador Luís Diamantino. “Não são apenas escritores, são editores, jornalistas, que aqui se encontram, se conhecem, que aqui fazem negócios. Como dizia o meu pai: ‘uma mão lava a outra e as duas lavam a cara'” afirma em conversa telefónica com o Observador. Provavelmente, o provérbio mais adequado de sempre à Cultura portuguesa.
O LEV e os Booktailors, uma parceria criticada
Quando pensamos em festivais literários pensamos em cultura, em literatura, em escritores (OK, há quem só pense em escritores e só vá para os ver e não para os ler). Voltamos a França e aos festivais culturais criados nos anos 50 pelo famoso ministro da Cultura, André Malraux. O pilar era a utopia de que estes eventos poderiam gerar mudanças profundas e duradouras na relação entre o povo e a cultura. Uma relação idealizada, que só poderia acontecer na província e nunca nas cidades (onde, como se sabe, era suposto só os burgueses lerem livros e irem ao cinema). A tudo isso, juntava-se a vontade de descentralização e revitalização dos equipamentos e edifícios históricos da província.
Este paradigma parece só ter caído em céus portugueses no ano 2000 mas está agora na sua máxima ebulição, sobretudo em autarquias a norte do Tejo (o Alentejo e Algarve quase não aparecem na rota dos festivais literários). A empresa Maratonas de Leitura, à qual pertencem os Booktailors, tem somado contratos com autarquias nortenhas para organizar festivais literários. Belmonte, Santo Tirso, Castelo Branco, Matosinhos (LEV e Festa da Poesia), Bragança, Porto, Lousada, Oeiras, Cascais.
Querendo deixar as coisas bem claras, Paulo Ferreira, da Booktailors, declarou ao Observador que a empresa “não organiza eventos” mas sim “produz eventos” (embora no seu site a empresa use também a expressão ‘organizar’). Sabemos que a empresa é pioneira na criação de festas da literatura e tem vindo a facilitar a perceção das autarquias das potencialidades de um festival literário: estrelas da literatura, jornalistas, humoristas, uso dos tais “equipamentos” que custaram milhões, um lugar para os autores locais e muito mediatismo para a região e seus autarcas.
Paulo Ferreira esclarece que os eventos literários feitos pela sua empresa “são desenhados à medida dos objetivos que cada parceiro estabelece como fundamentais. Há eventos desenhados essencialmente para a comunidade escolar, há eventos que são orientados para comunidades desfavorecidas, há eventos orientados para segmentos profissionais, há eventos orientados para o público em geral. Neste último caso, os eventos podem ter como objetivo a divulgação da literatura portuguesa e noutros casos ter a presença de autores internacionais.”
Este desenho “feito à medida” só parece ter duas invariantes: as presenças de Francisco José Viegas, escritor, editor da Quetzal, diretor da revista Ler, ex-diretor da Casa Fernando Pessoa e ex-secretário de Estado da Cultura, e de Afonso Cruz, escritor, músico, ilustrador e fazedor de cerveja. Dois autores que os Booktailors mantêm em todos os tipos de “desenho” que fazem, seja prosa ou poesia, escolar ou não escolar, em Portugal ou no estrangeiro.
Questionado sobre as relações que o Festival Literatura em Viagem (LEV) e a Festa da Poesia de Matosinhos têm com os Booktailors, o vereador da Cultura de Matosinhos, Fernando Rocha, explicou que depois da saída, em 2013, de Francisco Guedes (que em 2006 criou o LEV em conjunto com a Câmara Municipal de Matosinhos), a organização do festival foi entregue aos Booktailors.
Os Booktailors, além de produzirem eventos culturais, são também uma agência de escritores. Ou seja, são pagos por vários escritores nacionais para os representaram em vários aspetos da sua vida literária, nomeadamente, na divulgação das suas obras e das suas pessoas. A lista de escritores agenciados pelos Booktailors pode ser vista aqui.
Logo no primeiro ano em que organizou o LEV, os Booktailors fizeram convidar vários dos escritores que agenciam: Francisco José Viegas, Pedro Vieira, Teolinda Gersão, Miguel Miranda, Carla Maia Almeida, Jerónimo Pizarro, André Letria, Alex Gozblau (ilustrador que que entretanto deixou os Booktailors). Nos anos seguintes, a agência diminuiu o número de autores seus no LEV. De pedra e cal, mantêm-se apenas Francisco José Viegas, já agendado para este ano ser o cicerone do escritor e ensaísta italiano Claudio Magris.
Fernando Rocha assume que passou a reunir-se com os Booktailors e a “separar as águas” entre o LEV e a agência. Já em relação a Viegas, o vereador assume que “foi alguém que ajudou a fundar o LEV e enquanto eu estiver aqui ele estará cá todos os anos.”
Quem contesta esta versão é Francisco Guedes, hoje à frente do festival literário “Entre Douro”, em Sabrosa, Trás-os-Montes. Guedes diz que não deixou o LEV, mas que foi “afastado” com o festival de 2013 “praticamente preparado, para que a organização fosse entregue aos Booktailors”. Guedes acusa ainda esta empresa de funcionar como um “braço armado do grupo Porto Editora”.
Matosinhos, logo ali ao lado da Póvoa de Varzim, certamente a partilhar o mesmo público leitor, tem também os seus habitués, entre os quais Inês Pedrosa, Patrícia Reis, Manuel Jorge Marmelo, Fernando Pinto do Amaral, Pilar del Rio a representar a Fundação Saramago (fundação que entregou a feitura dos seus livros aos Booktailors).
Apesar de Fernando Rocha garantir ao Observador a “separação das águas” entre os festivais pagos pela autarquia de Matosinhos e os autores dos Booktailors, em 2013 o LEV convidou nove escritores da sua agência. Em 2013, apenas cinco (Paulo Moura, Bruno Vieira Amaral, Pedro Vieira, Luís Miguel Rocha, entretanto falecido, e, naturalmente, Francisco José Viegas). Em 2015 já só estiveram três: Joel Neto, Mário Cláudio e Francisco José Viegas.
Para 2016 já há pelo menos três nomes garantidos: Inês Pedrosa, Patrícia Reis e, como já referimos, Francisco José Viegas.
Para quem serve um festival literário?
Questionados sobre o facto de produzirem festivais públicos sempre com os mesmo autores, os Booktailors defendem-se: “Faça-se um paralelo com os grandes festivais de música em Portugal para ver que muitos dos participantes são repetidos. E isto numa realidade em que o leque de escolhas é incomparavelmente maior e onde existem outros orçamentos que permitem trazer, por exemplo, muitos estrangeiros. Não creio que alguém se queixe por ter repetidamente em Portugal Springsteen, U2, Rolling Stones, ou outros.”
De facto, a recorrência dos convidados é uma verdade em qualquer tipo de festival cultural. E uma das suas zonas problemáticas. Seja Avignon, Gijon, Rio de Janeiro, Paraty, ou Castelo Branco, os festivais servem para legitimar a carreira de alguns autores, sem que isso tenha necessariamente que ver com vendas (assim sendo, teríamos que ter em todos os festivais José Rodrigues dos Santos e Pedro Chagas Freitas, dos mais vendidos em Portugal) ou com a sua qualidade.
Servem ainda para acelerar a projeção de algumas carreiras apesar do discurso festivaleiro falar em renovação, descoberta de novos talentos, etc. Parte-se ainda do princípio de que a mera existência de um evento dito “cultural” é uma máquina de fabricar público interessado em Cultura. Na verdade, sob uma capa de glamour, reproduzido nos media, aquilo que fazem os festivais literários é uma “literatura para o povo” com tudo o que isto tem de condescendente.
Segundo a opinião dos Booktailors e dos autarcas entrevistados, o povo quer ver sempre os mesmos escritores. Talvez seja por isso que em todos os festivais organizados por esta empresa, seja no Funchal ou em Belmonte, seja em Cascais ou em Oeiras, estejam sempre presentes Valter Hugo Mãe, Afonso Cruz, Inês Pedrosa, Patrícia Reis, Adélia Carvalho, Maria Manuel Viana, Pedro Vieira, Júlio Magalhães, Laborinho Lúcio, Lídia Jorge, Miguel Real, entre outros.
Vale a pena consultar os programas dos festivais Fronteira (Castelo Branco), Novo Jornalismo (Santo Tirso), Diáspora (Belmonte, 2014, 2015), Afinidades Electivas (Goethe Institut, Lisboa, 2013), Festival Literário de Bragança (2014), Festival da Cultura de Cascais (2015), Festival Literário do Romance Histórico (Oeiras, 2015), Festival Literário Tinto no Branco (Viseu, 2015), Jornadas Pedagógicas da Lousada (2014, 2015), Feira do Livro do Porto (2015). Além da Feira do Livro de Bogotá, em 2013, cuja participação portuguesa foi organizada pelos Booktailors e contou com nove autores da sua agência.
É que, ao contrário dos festivais de música e das suas estrelas, os festivais literários são da responsabilidade de entidades públicas, ou seja, são total ou parcialmente pagos por todos nós. E a pergunta impõem-se: quando se faz um festival literário está a promover-se a Cultura portuguesa, ou a carreira de alguns escritores portugueses?
Questionado pelo DN se havia em Portugal escritores para tantos festivais, Paulo Ferreira declarou: “É verdade que não temos tantos escritores para tantos festivais”, pelo que tem sido necessário convidar cantores, humoristas e outros agentes culturais. Ferreira declarou ainda que o seu sonho “era fazer um festival sem escritores”. Uma coisa é certa: se esse dia chegar, Francisco José Viegas estará lá na mesma.
Mas afinal não há outros escritores em Portugal?
Segundo Paulo Ferreira, dos Booktailors, não há. Mas segundo os organizadores dos outros festivais também não há. Assim, todos festivais literários e todos parecem enfermar do mesmo mal: Festival Folio, em Óbidos, Festival Literário da Gardunha, Festival Literário Entre Douro, Sabrosa, Festival Literário de Macau, Festival Tabula Rasa em Fátima, Escritaria em Penafiel, Festival Livros a Oeste na Lourinhã ou Festival Literário da Madeira no Funchal. Em todos eles o leque de convidados repete-se ano após ano. São os mesmos escritores que circulam de festa em festança, com as mesmas editoras associadas, as mesmas tendências literárias, as mesmas histórias, os mesmos debates. O único critério parece ser: se foste àquele também vens a este. Depois é só garantir que se passa a fazer parte de uma lista de habitués, como nas discotecas e nos restaurantes da moda onde não é preciso cortejar o porteiro para entrar.
Basta uma rápida pesquisa pelos programas destes festivais para se duvidar que haja um pensamento definido, estruturado, sobre o que é a literatura, o que é a cultura, o que é “dar a conhecer”. Que critérios têm estes eventos para todos os anos Valter Hugo Mãe, Afonso Cruz, Ana Paula Tavares, Maria Manuel Viana, José Manuel Fajardo, Rui Zink, Pedro Mexia, José Luís Peixoto, Tiago Salazar, Miguel Real, Inês Pedrosa, João de Melo, Bruno Vieira Amaral, Gonçalo M. Tavares, João Tordo, Karla Suarez, Patrícia Reis, Sandro William Junqueira, Pedro Vieira aparecerem? Com eles estão também os habituais poetas de festivais: Hélia Correia, Filipa Leal, Luís Barreto Guimarães, Renato Filipe Cardoso, Ana Luísa Amaral. E os dois intelectuais mais requisitados em Portugal, Fernando Pinto do Amaral e Eduardo Lourenço.
Há mesmo o curioso caso da Lourinhã, onde não existe uma livraria mas existe um festival literário, que todos os anos convida (estais preparados?): Afonso Cruz e Rui Zink , além de outros incontornáveis festivaleiros como: Tiago Salazar, Pedro Vieira, Miguel Real, Nuno Camarneiro. É caso para perguntar porque não um consórcio entre Afonso Cruz e Rui Zink para abrirem uma livraria na Lourinhã?
É certo que à exceção do LEV e do Fólio, os festivais não pagam nada aos escritores convidados. Coisa que já mereceu um reparo da jornalista e escritora Alexandra Lucas Coelho, ela própria muito assídua festivaleira. Mas não sejamos ingénuos acerca dos ganhos simbólicos da participação num festival: ampla cobertura mediática, subida nas vendas, mais divulgação da obra e imagem dos escritores e poetas.
Os invisíveis, os ausentes e os esquecidos
Se há escritores e editoras hiper-representados nos festivais, como é o caso óbvio da Quetzal, da Tinta da China, da D. Quixote, da Porto Editora, ou da Alfaguara/Objectiva, há outros que permanecem na sombra. Há aqueles que nunca estão nos festivais, raramente estão nos media, embora por vezes tenham um papel importante em fazer mover as placas tectónicas da cultura literária e poética.
Um exemplo flagrante é Francisco Vale, da Relógio D’Água, responsável pela edição de dois autores que mais agitaram os leitores portugueses no último ano: Elena Ferrante e Karl Ove Knausgård. Para além de ser a editora de escritores determinantes na literatura portuguesa, como Maria Gabriela Llansol ou João Miguel Fernandes Jorge, entre outros. Francisco Vale confirmou ao Observador que foi algumas vezes convidado para festivais, mas sente, em relação a eles, “uma resistência instintiva”. Considera que “os autores perdem a aura de mistério que é fundamental para a sua relação com os leitores” e, sobretudo, acha que “os festivais são uma forma de as autarquias instrumentalizarem os escritores em seu benefício”. “Não considero os festivais literários um modo adequado de projetar livros”, conclui o editor.
Quem também nunca foi visto em festivais foi Vitor Silva Tavares, editor da mítica & Etc, ou Manuel Rosa, fundador da Assírio & Alvim e hoje na editora Sistema Solar. António Lobo Antunes também não é festivaleiro, a não ser que o festival inteiro seja em volta dele como aconteceu no Escritaria de 2012. Só o Festival Literário do Funchal (depois da saída dos Booktailors da organização) abriu algum espaço para vozes que já são incontornáveis na nova poesia portuguesa, como Raquel Nobre Guerra, Diogo Vaz Pinto, Vasco Gato ou Golghona Anghel. Isto apesar de também por lá terem passado os habituais Agualusa, Manuel Jorge Marmelo, Luís Barreto Guimarães, Miguel Real, Valter Hugo Mãe…
Rui Nunes, António Barahona, João Barrento, Luís Quintais ou António Mega Ferreira são outros exemplos de autores que raramente ou nunca são vistos em festivais, apesar de constituem uma parte viva e pujante da nossa literatura. Já para não falar de tantos outros romancistas, poetas e ensaístas que nunca foram convidados para um festival literário.
O jornalismo cultural tem aqui um papel crucial. É ponto assente que o que faz crescer os festivais é a sua divulgação nos media e não a sua descoberta por operários fabris, empregados de café ou bancários. Como mostram também os estudos sobre Avignon, décadas e décadas de festivais de teatro alargaram o público mas não modificaram a sua origem. O operário e o bancário não estão geralmente nas suas audiências.
Se os festivais tendem a convidar os escritores mediáticos, os jornais tendem a falar exclusivamente dos que já são famosos. E entra-se numa espiral que só pode ser perversa para ambos os lados, pois tudo é reduzido aos habitués. E o público não reclama, ou porque não volta no ano seguinte, ou porque o festival se tornou o evento em si mesmo; vai-se ao festival, não se vai à procura de descobrir literatura.
Este ano, no Correntes d’Escrita, um acontecimento ilustrou bem esta mecânica. A marcar os 40 anos da União de Escritores angolanos (UEA), as Correntes lá fizeram a mesa redonda sem a tríade habitual (Agualusa, Manuel Rui e Ana Paula Tavares), apostando antes nos escritores angolanos Lopito Feijóo, Manuel Rui Monteiro e Carmo Neto – contista e Secretário-Geral da União de Escritores. Apesar do nosso enorme desconhecimento da literatura angolana para lá de Ondjaki, Agualusa, etc., nenhum media falou na presença em Portugal destes escritores. Como desabafa Ulika da Paixão Franco, assessora da UEA:
“Fazia-se 40 anos da União e Angola deu-se ao trabalho de se organizar e estar presente em Portugal. Creio que foi uma demonstração de respeito e afeto. Teve algum eco? Não, não teve e não terá nunca. A falta de interesse da imprensa espelha o que é a lusofonia: uma farsa. Odiamo-nos uns aos outros. No entanto, as secções culturais dos nossos jornais acharam importante entrevistar a Ana Zanatti – que não é escritora – ou destacar o Governo Sombra – que não é literatura.”
Festivais Literários: uma arena de luta pela visibilidade
Aqui chegados há várias questões que se impõem:
- O que é um festival literário, promoção de cultura, ou entretenimento popular?
- Que Cultura é essa a que os festivais literários supostamente respondem?
- Que critérios presidem à escolha dos protagonistas destes eventos?
- Em que medida é que estes protagonistas, as obras que escrevem ou que editam vão ao encontro da dinâmica cultural que se quer promover?
- A quem se quer chegar? A um público que procura cultura? A um público que procura entretenimento? À promoção da leitura junto dos mais jovens? Dos mais velhos?
- Porque é que os festivais literários em Portugal estão claramente ao serviço da promoção do romance e não da poesia ou do ensaio?
- Que consequências reais, efetivas terão os muitos milhares de euros gastos anualmente em festivais literários, para além da promoção de alguns autores e suas obras?
Tomemos como exemplo o mega festival literário Folio, em Óbidos, que teve a sua primeira edição em 2015 e já está a preparar a de 2016, o que mostra que os festivais literários são um negócio que está longe de ter atingido o seu pico. Isto significa que alguns escritores terão mesmo que começar a pensar numa forma de ubiquidade para poderem não faltar a nenhum. É que apesar deste festival ter seis curadores, muitas atividades paralelas e muito dinheiro para gastar, as escolhas de 2015 voltaram a passar por: Afonso Cruz, Patrícia Reis, Karla Suarez, Nuno Camarneiro, Fernando Pinto do Amaral, Tiago Salazar, Pedro Mexia e… Francisco José Viegas.
Naturalmente, as entidades promotoras e organizadoras sofrem pressões das editoras, dos patrocinadores, para escolherem uns autores em detrimento de outros. Neste caso, os grandes conglomerados editoriais saem a ganhar. Pois além dos inúmeros recursos financeiros que despendem em campanhas de promoção dos seus autores, beneficiam ainda da promoção dada aos festivais literários feitos com dinheiros públicos. Já as pequenas editoras, apesar de serem a grande novidade do panorama literário português, não têm qualquer representação. Em que festival está uma Douda Correria, uma Língua Morta, uma Artefacto, uma Averno?
Os Booktailors confirmam ao Observador que só neste ano se preparam para realizar 30 eventos em Portugal e no estrangeiro. Do público leitor, espera-se que continue a querer ir ver os escritores famosos à província.
* O objetivo deste artigo era focar a presença/ausência de escritores portugueses em Festivais Literários. Os autores estrangeiros que vêm aos eventos serão tema num próximo artigo.